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A arte da resistência

Postado em 08/04/2004


Mestre Miguel Machado, do grupo Cativeiro, e aluno / Foto: Marco Antonio Sá

Atividade que mistura luta e dança busca independência

TELMA EGLE

A dúvida existe desde os primeiros registros da prática da capoeira no Brasil: teria ela sua origem nas aldeias africanas ou nas senzalas brasileiras? As opiniões de mestres e praticantes se dividem. Mas a grande maioria dos autores que escrevem sobre a história da capoeira concordam com a tese de que ela teria sido criada no Brasil por escravos africanos, como instrumento de luta e resistência. Como explica o presidente da Federação Internacional de Capoeira e doutor em antropologia cultural Sergio Luiz de Souza Vieira, o que se sabe de certo é que não existe capoeira na África e em nenhum outro país onde houve escravidão africana. "Pelo que indicam alguns documentos, trata-se de uma manifestação cultural que surgiu no Brasil, fruto do encontro de nossas matrizes étnicas: o índio, o branco e o negro. Cada qual transferiu seus elementos ao jogo da capoeira."

O tema vem sendo bastante investigado, e não faltam pesquisadores sobre ele. No site do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq ), por exemplo, há registro de inúmeros estudos sobre capoeira. E os curiosos e interessados no assunto que acessarem o sistema Google de busca na Internet encontrarão mais de 4 mil referências a esse tipo de luta.

Apesar dessa profusão de fontes, as polêmicas sobre o assunto se justificam pela dificuldade em encontrar documentos que relatem a vida dos escravos no Brasil. Basta dizer que, com o intuito de apagar da memória brasileira essa "lamentável lembrança", Rui Barbosa, ministro da Fazenda em 1890, mandou queimar todos os papéis que se referiam à escravidão.

Nesse ano, aliás, a prática de capoeira foi proibida, e passou a ser punida com pena de até seis meses de detenção. A interdição perdurou até 1937, mas mesmo assim a atividade sobreviveu. A partir do final dos anos 30, ela começou a ser ensinada também em academias. Um momento importante ocorreu em 1953, quando Manuel dos Reis Machado, o mestre Bimba, e seus discípulos apresentaram-se no palácio do governo da Bahia, numa demonstração especial para o presidente Getúlio Vargas.

Hoje, entretanto, uma nova discussão se desenvolve no universo da capoeira, uma vez que praticantes, mestres e dirigentes de entidades do setor estão empenhados na regulamentação da profissão de capoeirista. Estima-se que existam cerca de 6 milhões de lutadores no Brasil, incluídos nesse número tanto os que fazem demonstração nas ruas como os que se dedicam à atividade em academias. São Paulo é o estado que tem mais academias – 3 mil –, enquanto o nordeste, especialmente a Bahia, conta com o maior número de praticantes de rua registrados. Nessa região, o espetáculo da capoeira ao ar livre é uma constante no dia-a-dia das pessoas.

Além de ser amplamente divulgada no Brasil, a capoeira está presente também em outros países. Apesar disso, "ela não tem o reconhecimento devido e merecido por aqui", segundo a opinião unânime dos participantes do Congresso Nacional de Capoeira, realizado na cidade de São Paulo, em agosto de 2003. Esse encontro representou, aliás, um esforço para consolidar a profissão no Brasil e, a partir daí, elaborar propostas para aperfeiçoar sua prática.

Uma das conclusões do evento foi propor ao governo federal a adoção de uma política nacional relacionada à questão. Segundo os organizadores, trata-se de uma das poucas atividades que podem unir esporte, cultura e história, o que a transforma em poderoso instrumento de inclusão social. "A população pobre, especialmente os jovens, consegue a perspectiva de uma vida melhor por meio da prática esportiva. Trabalhar por esse objetivo é a própria essência da capoeira, que nasceu da resistência à escravidão", avalia Jairo José Júnior, membro da coordenação nacional do congresso.

Polêmica

Outros encontros como esse já ocorreram no país. O último foi em 1968, quando ainda estavam vivos os mestres Bimba e Vicente Pastinha – personagens representativos da história da capoeira. E o de agosto foi precedido por 20 congressos estaduais e centenas de reuniões preparatórias. Na pauta das discussões, além da regulamentação da profissão e seu reconhecimento como esporte nacional, constou igualmente a polêmica em torno da relação da categoria com o sistema Confef/Cref (Conselhos Federal e Regional de Educação Física).

De acordo com uma lei aprovada em setembro de 1998, esse órgão, juntamente com os conselhos regionais, tem competência para fiscalizar a profissão de capoeirista. Assim, a regulamentação da profissão somente poderá ocorrer no âmbito dessa entidade, o que se revelou uma fonte de controvérsias. Os mestres de capoeira, assim como instrutores e professores de dança, ioga e artes marciais, devem inscrever-se no Confef, que exige formação em educação física.

Segundo Jairo José, dessa forma os capoeiristas passaram a ser controlados por um órgão que não é composto por profissionais da área. "O Confef existe para fiscalizar a prática da educação física, e não da capoeira", afirma. "O que o órgão quer é obrigar o capoeirista a pagar anuidade. É uma ingerência absurda."

O presidente da entidade, Rogério Gomes dos Santos, se defende: "Entendemos que, para ser um profissional, o capoeirista deve objetivar um melhor condicionamento físico, primando pela saúde e pela qualidade de vida". Em sua opinião, esse profissional precisa ter um mínimo de formação, de conhecimento do corpo e da mente humana, bem como das fases de amadurecimento motor próprias de cada faixa etária, o que estaria ao alcance somente dos profissionais registrados no sistema Confef/Cref.

Outra preocupação dos capoeiristas refere-se aos mestres mais antigos, ou aqueles já formados pelas diversas entidades e grupos de capoeira. A exigência se aplicaria a eles? Segundo o Confef, os que estão atuando como instrutores e mestres têm o direito de continuar exercendo sua função como "provisionados", ou seja, com um registro válido em todo o território nacional. Em outras palavras, quem é mestre, vai continuar assim, sem maiores exigências burocráticas. "O mestre apresenta a documentação, a entidade comprova, avaliza, e ele é dispensado do curso preparatório para os novos formados e entra para o Confef por notório saber", explica Souza Vieira, o presidente da Federação Internacional, que é também chanceler da Universidade Livre de Capoeira e Artes Marciais e professor de educação física. "Os demais são pessoas que se auto-intitularam mestres", acrescenta.

A Federação Internacional de Capoeira, entidade que congrega cerca de 12 mil instrutores de capoeira habilitados, foi fundada em 1999, em São Paulo, por decisão das federações nacionais, que por sua vez foram criadas pela Confederação Brasileira de Capoeira. O objetivo do órgão é determinar a padronização técnica, cultural, desportiva e administrativa da modalidade em todo o mundo, assim como estabelecer competências, habilidades, conteúdos programáticos e requisitos para o exercício das funções de técnico, treinador desportivo, árbitro e docente de capoeira. À Confederação Brasileira cabe implantar essas diretrizes no Brasil.

Projeto de lei

Como costumeiramente acontece em eventos desse tipo, no congresso realizado em agosto do ano passado não faltou um representante da classe política prometendo aos capoeiristas apoio legislativo para suas reivindicações. O deputado federal Luiz Antonio Fleury Filho, ex-governador de São Paulo, afirmou ser autor de um projeto de lei que retira a dança, as artes marciais e a ioga do âmbito do Confef. Há outra proposta em curso, esta do deputado federal Arnaldo Faria de Sá, que assinou projeto que regulamenta a profissão de capoeirista. Esse interesse do Legislativo agradou aos profissionais de capoeira, como afirmou Fátima Colombiana, conhecida como mestra Cigana, do Rio de Janeiro. "Acredito que o saldo do congresso tenha sido positivo, pois chamou a atenção para a importância da arte afro-brasileira da capoeiragem. Temos agora apoio do governo, representado, por exemplo, pelo Ministério do Esporte", opinou ela.

Graças à atração que exerce entre as classes menos favorecidas, a capoeira tem sido amplamente utilizada em projetos sociais de diversas entidades e mestres. O trabalho do capoeirista João Américo Júnior, o mestre Ganga Zumba, de São Paulo, é um bom exemplo. Há 20 anos na atividade, ele participa do Projeto Arquimedes, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, como professor contratado para dar aulas de capoeira para crianças. Hélio Menezes da Silva Reis, o mestre Hélio, diretor da Associação Brasileira de Capoeira (Abracap) e há mais de 25 anos na ativa, também realiza um trabalho social com crianças e jovens carentes no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo.

Angola x regional

Até a década de 30, a capoeira não apresentava divisões ou modalidades. Era capoeira pura e simples, muitas vezes denominada "capoeira de angola" pelos que acreditavam em sua origem africana. Mas a partir dessa época, o mestre Bimba – responsável por profundas transformações nessa arte – criou a capoeira regional, com a preocupação de distingui-la da de angola. Os angoleiros evidentemente passaram a defender sua modalidade como a única de raiz, autêntica, a capoeira negra, em contraponto à de brancos de classe média, desvirtuada pelo mestre Bimba. Eli Pimenta, o mestre Eli, do Grupo Cativeiro, de São Paulo, discorda: "A capoeira regional que o mestre Bimba criou é profundamente arraigada na tradição, em todos os preceitos. Não foi simplesmente uma coisa inventada".

Na verdade, a de angola tem muito mais malícia e floreio, com golpes dissimulados. É realizada preferencialmente no chão, com cadência mais lenta. A regional é mais rápida, jogada por cima. Tem ritmos próprios, é mais definida e nela o aspecto luta é mais visível.

Distanciando-se da polêmica, o mestre Eli adotou identidade própria, uma maneira inconfundível de jogar. E se propôs a ensinar os dois estilos, cada um com sua complexidade e especificidades, "sem fazer nenhuma salada. Estamos conseguindo trabalhar com equilíbrio", afirmou.

Há também outra corrente que defende uma nova modalidade de capoeira, embora ainda sem definição precisa: a contemporânea, que é igualmente alvo de algumas críticas por desprezar legados culturais do passado.

Um dos representantes desse estilo é Carlos Alberto Rosa, o mestre Rosa, do grupo Baraúna, no município paulista de Moji das Cruzes. Com 22 anos de capoeira, ele defende a modalidade como espetáculo, competição e luta: "É o caminho para chegarmos a uma Olimpíada", diz, a bordo de uma van colorida, com letreiros que anunciam uma apresentação de capoeira. "Há 15 anos vivo somente disso. Faço programas de televisão, participo de feiras de beleza. A modalidade sempre teve seu lado show, e o capoeirista precisa aceitar isso".


A força do som

Entre os instrumentos utilizados numa roda de capoeira, os mais importantes são o berimbau, o pandeiro, o atabaque e o agogô. Conheça um pouco de cada um:
Berimbau
– É o instrumento que cria o clima. Existem três tipos: médio (que determina o jogo), viola e berra-boi.
Pandeiro
– Instrumento de percussão que requer muita técnica. Seu som cadenciado acompanha o caxixi (pequeno chocalho) do berimbau.
Atabaque
– Marca o ritmo das batidas. Juntamente com o pandeiro, acompanha o solo do berimbau.
Agogô – Instrumento de origem africana, faz parte da "bateria" nas rodas de capoeira de angola.

 

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