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No olho da rua

Postado em 16/12/2003


 Foto: Gabriel Cabral

Albergues e abrigos procuram oferecer apoio à população sem teto

NATALIA VIANA

Nas grandes cidades brasileiras, o número de pessoas que vivem nas ruas não pára de crescer. No município de São Paulo, há cerca de 10 mil nessas condições, segundo a Secretaria de Assistência Social. São chefes de família que perderam o emprego, donas-de-casa abandonadas pelo marido, migrantes que buscavam oportunidades que não encontraram, etc. Segundo levantamento feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 2000, a maioria (66%) trabalha para sobreviver, e a ocupação mais comum é a de catador de materiais recicláveis, ou "carrinheiro" (cerca de 35%), com renda média mensal de R$ 295.

São vários os motivos que levam alguém à situação de morador de rua. Para Alderón Pereira da Costa, da ONG Rede Rua de Comunicação, que trabalha há 12 anos com essa realidade, o processo de degradação geralmente começa com a falta de trabalho, passa pela perda da casa e culmina com o rompimento dos laços afetivos. Na rua, uma sociedade à parte se desenvolve, com leis e rotinas próprias, completamente alheias às do dia-a-dia dos demais habitantes da cidade. "Não podemos ver essas pessoas pela ótica dos nossos valores. Em vez disso, precisamos compreender a cultura da rua, que é um outro mundo. Quem está nessa condição também deseja viver o melhor possível dentro daquelas circunstâncias", diz Alderón.

Nesse mundo, a demarcação de espaço costuma ser bem definida, como explica o baiano Carlos Alberto Santos, que, após rodar o Brasil com uma banda de forró, veio para São Paulo há dez anos em busca de oportunidade e hoje, como ele diz, mora com a esposa na "Frei Caneca, 385" – na verdade o casal dorme na calçada em frente a esse endereço. "Quando chega gente nova, precisamos saber quem é, se tem algum problema.

Então é estabelecido o local em que cada um vai dormir." Segundo ele, a primeira regra para viver na rua é andar sozinho ou, no máximo, em dois. "Sempre dá briga, porque um fica de olho gordo no que é do outro, principalmente se estiverem bêbados." Na hora de dormir, o cuidado deve ser redobrado, já que é muito comum ocorrerem roubos durante a noite. Qualquer roupa diferente, sacola nova ou rádio de pilha vira alvo de cobiça. E, não raro, com os ânimos acirrados pelo álcool, pode se tornar motivo de briga e até de morte. Como as querelas se dão em torno de objetos de baixíssimo valor, que podem ser rapidamente vendidos ou trocados, não há a quem se queixar.

A ausência total de segurança agrava a violência e, pior, muitas vezes as agressões partem de policiais. A pesquisa da Fipe mostrou que, dentre os entrevistados em logradouros, 60,2% já haviam sofrido algum tipo de violência – 30,6% foram agredidos pelos próprios moradores, 22,8% por transeuntes e 13,3% por policiais. Quanto ao tipo de agressão, 52,2% sofreram espancamento, 29,7% receberam facada, tiro ou pauladas e 26,5% foram vítimas de roubo ou furto. "Os policiais batem, chegam agressivos quando deveriam conversar. Aí as pessoas se tornam violentas também, para se defender", diz João Marcos de Souza, de 43 anos, que saiu de casa aos 14. Ele trabalhou em fazendas de São Paulo e do Mato Grosso, em garimpo no Pará e vendendo feijão em beiras de estrada em Goiás, até vir morar num albergue na capital paulista há dois anos.

João Marcos acha que a agressividade do morador de rua é reflexo também do preconceito da sociedade. "Eu senti na pele o que é ser discriminado. É chegar a um lugar e ser olhado de rabo de olho, é a polícia te parar na rua e dar uma revista geral. É entrar num bar, querer usar o banheiro e o sujeito não deixar. É não ter voz ativa para nada. Assim, a gente vai se apequenando diante das coisas."

Por outro lado, há a solidariedade da rua. "Se você conhece alguém do grupo, é muito bem recebido por todo mundo. Se uma pessoa tem comida e outra, não, elas dividem", conta Alderón. Na verdade, esse tipo de comportamento é responsável pela recusa de grande parcela da população em sair da rua e ir para um albergue. Esse é o caso do jovem Gaúcho. Mesmo após ter sido hospitalizado por atearem fogo em sua perna, ele diz nem pensar em abandonar a rua. "A melhor coisa é a liberdade, preparar uma comida gostosa com os amigos e depois beber cachaça." Viajado, ele conheceu boa parte dos países da América Latina fazendo bicos. "Sou trecheiro", orgulha-se, usando a gíria que define o andarilho moderno.

A vida no albergue

Acostumados ao cotidiano da rua, muitos moradores não se adaptam à disciplina dos albergues da prefeitura, onde recebem comida, roupas e uma cama para dormir. Ali, são obrigados a seguir horário fixo, tomar banho, trocar de roupa e não beber. De manhã, devem acordar e voltar para a rua. "Logo cedinho já vêm os homens cutucando e mandando a gente trabalhar", reclama o baiano Eginaldo Barreto Cruz, cantor, dançarino e, atualmente, catador de papelão. Ele também alega falta de higiene em certos albergues: "Sujeira a gente ainda ignora, mas pulga não dá".

Mesmo assim, são poucos os moradores de rua que não recorreram pelo menos uma vez a um albergue, numa noite fria. Os candidatos ao pernoite têm de amargar uma demorada fila de espera do lado de fora. E, com essa freqüência esparsa, a tendência é reproduzirem lá dentro alguns padrões da rua. Como têm de dormir em salões enormes, com até 60 camas, não são raros os roubos, discussões e brigas. Não há dados oficiais que contabilizem essas ocorrências, mas a maioria acaba sendo resolvida entre eles mesmos.

Além disso, a falta total de privacidade, tanto no quarto quanto nos chuveiros, geralmente coletivos, acaba incomodando o albergado, segundo João Marcos, que atualmente mora no Abrigo São Francisco de Assis, no Carandiru. "Procuro chegar bem tarde, porque às vezes você tem um dia bom e aquela realidade acaba te entristecendo." Ele reclama, ainda, do fato de nenhum dos albergues da cidade ter sido projetado para esse fim. "No nosso abrigo, o problema é o banheiro. Somos cento e poucas pessoas e temos dois chuveiros e quatro sanitários. Imagine a fila..." Essa falta de estrutura acaba gerando também algumas aberrações, caso dos albergues Reciclázaro Gasômetro, no Brás, e Projeto Social da Comunidade Metodista do Povo da Rua, na Bela Vista, construídos sob viadutos, onde carros passam durante toda a noite, comprometendo o sono das pessoas.

Outra queixa freqüente refere-se a maus-tratos por parte dos funcionários. Um morador do Projeto Gente, no Canindé, que não quis se identificar, afirma ter visto um funcionário bater em um idoso, e outro assediar mulheres do alojamento. Porém, segundo João Marcos, não se pode generalizar. "Existem bons e maus funcionários. Alguns procuram conversar, e outros são autoritários, agem como se fossem donos do lugar."

Mudanças

Apesar de tantos problemas estruturais, é inegável que está havendo na cidade de São Paulo uma verdadeira revolução no trato das pessoas de rua. A mudança teve início em 1997, com a aprovação da lei 12.316, que criou políticas de atenção a essa população, de autoria da então vereadora Aldaíza Sposati, atual secretária da Assistência Social. A lei só foi regulamentada em 2001, pela prefeita Marta Suplicy, por meio do decreto 40.232. "A lei e o decreto garantem os direitos da população em situação de rua, e a prefeitura deve zelar pelo seu cumprimento", afirma Aldaíza.

Desde que a atual administração assumiu, o número de albergues e de abrigos aumentou de 14 para 33, e a quantidade de leitos dobrou – hoje chega a 5 mil. Foram criadas a Casa de Cuidados Maria Carolina de Jesus, no Canindé, que acolhe moradores de rua convalescentes e em situação pós-operatória, e a Casa das Mulheres, no mesmo endereço, exclusiva para o sexo feminino, destinada a abrigadas com ou sem filhos.

Além disso, a secretaria implantou um programa de moradias provisórias, casas ou apartamentos divididos por até 15 moradores em situação de reinserção social, que hoje conta com 13 unidades. A maior delas funciona num edifício de seis andares na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. São 24 apartamentos onde cerca de 115 pessoas, todas com renda própria, podem permanecer por no máximo um ano. Cada habitação aloja até seis pessoas, e a cozinha é compartilhada. "Ao contrário dos abrigos, aqui a comida, a higiene pessoal e a limpeza ficam por conta dos residentes, mas eles começam a ter autonomia", explica a coordenadora Ligiane Bezerra Teixeira Lucas. O aluguel é pago pela prefeitura, e os ocupantes dividem o valor do condomínio – R$ 25 para solteiros e R$ 35 para famílias. A limpeza das áreas comuns fica a cargo dos próprios moradores, que também participam de grupos com psicólogos, oficinas de culinária e encontros mensais de acompanhamento individual. Como em todos os projetos da prefeitura, a coordenação é feita por uma entidade associada, neste caso, a Associação Evangélica Beneficente.

Nos projetos já existentes, porém, afirma Alderón, houve poucas mudanças. "Não há profissionais capacitados, como educadores que busquem descobrir a história da pessoa, propor uma formação e criar vínculos." Adelina Barone, coordenadora do programa População de Rua, da Secretaria de Assistência Social (SAS), admite que ainda há problemas, mas diz que as reclamações em relação a funcionários têm diminuído. "Promovemos cursos e reuniões para constante reciclagem dos profissionais, com vistas a uma melhor capacitação. Casos de maus-tratos são esporádicos e devidamente averiguados e punidos."

Para melhorar o atendimento, a SAS criou em junho de 2003 o Conselho de Monitoramento da População em Situação de Rua. Ainda em fase de implementação, o órgão tem 19 membros, entre representantes do fórum de ONGs que trabalham com população de rua, de empresas de responsabilidade social, das secretarias do Trabalho, da Assistência Social, da Saúde e da Habitação, além de três usuários dos serviços – João Marcos é um deles. "Para conseguir uma aproximação com a pessoa de rua, é preciso falar a linguagem dela, e por isso tenho sido muito procurado pelos albergados. Levamos os problemas para o conselho e buscamos saídas, como foi o caso do atendimento de saúde. Havia muito preconceito, quando o morador de rua chegava a um posto de saúde era um problema, o médico parecia ter nojo. Agora não temos mais tantas reclamações."

Mas a menina-dos-olhos da prefeitura é mesmo o Projeto Oficina Boracea, inaugurado em junho do ano passado na Barra Funda. Com um orçamento de quase R$ 4 milhões, o local tem 17 mil metros quadrados e capacidade para abrigar 400 pessoas. Idealizado para carrinheiros, o Boracea dispõe de estacionamento para carrinhos e canil para cachorros. "É uma maneira de mostrar ao catador que aqui é um lugar bom para que ele possa reconstruir sua vida, desde a parte de higienização até a formação cultural", explica a coordenadora, Lindamar Saba Silva. A megaestrutura conta ainda com um telecentro, onde serão ministrados cursos de inclusão digital, uma cozinha de uso comunitário, um cinema com programação de filmes nacionais, uma cozinha-escola, salas de aula, cursos de jardinagem e horta, pequenos reparos, pintura e alfabetização, além de uma agência bancária. "Na Caixa Econômica Federal, os catadores podem abrir uma conta isenta de taxa", conta Lindamar, acrescentando que a equipe procura instruí-los a não gastar todo o dinheiro que ganham. Estão previstas ainda a construção de um centro para venda de materiais recicláveis e a formação de cooperativas de catadores no local. Tudo isso para promover a inserção social. "Quem está na rua não é considerado cidadão, porque não tem casa nem documento, não paga imposto, não vota, não tem conta bancária. Aqui ele é acolhido com dignidade, respeitado como ser humano, cidadão, e recebe capacitação", explica Lindamar.

Círculo vicioso

Embora seja um grande avanço, o trabalho da SAS esbarra na complexa questão do acelerado crescimento da pobreza na cidade. O papel do Boracea é questionado pelo fato de dar abrigo provisório ao catador da região central, que mesmo após o acolhimento não tem outra opção senão continuar na rua, pois seus rendimentos não cobrem um aluguel na área onde trabalha. "O albergue é um paliativo. A pessoa fica três meses em um, depois vai para outro, depois para outro e, assim, cria-se um círculo vicioso", diz Flávio Nicolau Júnior, de 40 anos, que prefere permanecer na rua. "A gente da rua não quer nada de provisório, quer moradia e trabalho. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) não oferece nenhum plano para nós. E não estamos pedindo esmola, não. Temos dinheiro para pagar."

Aldaíza Sposati admite que parte dos usuários permanece na rede social por um longo tempo. "Menos de 20% dessa população continua utilizando os serviços de atenção por motivos de saúde, falta de equilíbrio emocional e pela questão mais importante: não há emprego para todos, muitos viverão sempre de ‘bicos’." Pelo mesmo motivo, os cursos de capacitação oferecidos pelos serviços da prefeitura desagradam aos críticos. Em artigo publicado no jornal "O Trecheiro", da Rede Rua, o albergado Clodoaldo Santos da Silva expõe claramente o problema: "Conheço aqui mesmo no albergue diversos profissionais que atuaram por anos nas áreas que esses cursos oferecem e estão desempregados. Imagine se eu me apresentar numa empresa com um certificado de um curso profissionalizante de quatro meses. Vão rir na minha cara". Para Alderón, a solução passa pela oferta de emprego, e não só de formação, uma questão que envolve a necessidade de uma ação intersecretarial na prefeitura. "Uma das reivindicações das entidades é que em toda obra da prefeitura seja empregada uma porcentagem de pessoas em situação de rua." Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, não há atualmente nenhum projeto específico para moradores de rua.

Assim, após recuperar a auto-estima, os usuários da rede de proteção social têm pouca chance de melhorar efetivamente de padrão de vida. Sem apoio, o máximo que conseguem é continuar trabalhando muito e ganhando o mínimo para sobreviver. Muitas vezes, a recuperação dura pouco.


Som e arte de sucata

O bater de latas anuncia o início de mais um ensaio. Um grito: "Unidos da Sucata chegou", e a cantoria começa na garagem do Serviço de Apoio Socioeducativo de Capacitação e Orientação Profissional (Sasecop). Coordenado pelo Instituto Lygia Jardim, o grupo utiliza latões de lixo, cabides, galões de água e canos como instrumentos musicais. Há três anos, dez pessoas em situação de rua juntaram-se, sob a supervisão da professora Maria Anunciação Silva, para tocar samba.

Marco Antônio Gomes, um dos fundadores do grupo, atualmente dedica o tempo livre a aprender a tocar cavaquinho e a compor. "Já fizemos mais de 200 apresentações", diz, orgulhoso. Seguindo seus passos, outros integrantes acabam descobrindo no bater ritmado das latas um motivo de alegria. É o caso de Doraci de Lima, que nunca havia tocado até dois anos atrás, quando viu um ensaio enquanto fazia um curso de cabeleireiro no Sasecop. "O que mais gosto é do fato de que ninguém dá nada para a sucata, mas ela faz um som legal, é como se fosse mágica." No palco, de moradores quase invisíveis da cidade, os integrantes transformam-se em atração principal. "A gente não recebe dinheiro, só aplausos, mas isso é muito bom!", diz Doraci. Para Anunciação, a "rainha da sucata", a mágica tem nome: auto-estima.

Motivar o morador de rua através da arte também foi a intenção do secretário de Cultura Celso Frateschi ao convidar o grupo de teatro Cia. São Jorge a "ocupar" o Projeto Oficina Boracea para lá realizar um trabalho permanente, com ensaios, apresentações, oficinas e espetáculos de convidados. A idéia apaixonou os integrantes, que, mesmo antes da inauguração do Boracea, se instalaram no albergue Projeto Gente, no Canindé, em março do ano passado, onde fazem ensaios abertos e apresentam a montagem "As Bastianas", todo sábado e domingo. "Queríamos ter contato com as pessoas, então viemos para cá", conta Rogério Tarifa, membro do grupo. "Aqui temos uma convivência verdadeira, sem máscaras." A relação é tão estreita que os albergados participam da peça cantando, dançando e, também, dando palpites.

Outras iniciativas procuram incentivar os moradores de rua a fazer arte e deixar de ser apenas espectadores. O Refeitório Comunitário da Rua Penaforte Mendes, coordenado pela Rede Rua, já oferece quinzenalmente um ateliê de vídeo, com aulas ministradas por professores de cinema. "Estamos fazendo um filme", diz, entusiasmado, Carlos Alberto Santos, que freqüenta a oficina com a esposa. Segundo Lindamar Saba Silva, coordenadora do Projeto Boracea, o local vai ganhar em breve uma oficina nos mesmos moldes. "Sempre assistimos a filmes sobre a população de rua, mas feitos por outras pessoas. Aqui, não. Eles é que vão contar a própria história."

 

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