Fechar X

Em pauta
União civil

Postado em 01/10/2003

Muito se tem falado sobre o projeto de lei que asseguraria a casais homossexuais os mesmos direitos e benefícios garantidos, hoje, a cônjuges do sexo oposto e a membros da família. A questão é polêmica, mas igualmente complexa e ainda confusa para a maioria das pessoas. No Em Pauta deste mês, detalhes jurídicos são revelados em artigos assinados por juízes e advogados

Diga não ao casamento gay
por Ana Elisa Siqueira Lolli

Casamento ou matrimônio são termos usados unicamente para a união entre um homem e uma mulher, com todas as suas implicações e conseqüências ideológicas e religiosas.
Sendo um sacramento, o casamento tem um status único. A expressão "casamento gay" é sempre usada de forma inadequada, senão leviana, para designar a união CIVIL de pessoas do mesmo sexo.
Pensar na união de pessoas do mesmo sexo como "casamento gay" é perigoso, pois fomenta a discriminação e acaba por afastar a noção do afeto que envolve os relacionamentos homossexuais.
Com a evolução dos costumes e a mudança dos valores, o tema referente à orientação sexual deixou de ser "assunto proibido" e hoje é enfrentado abertamente, sendo retratado no cinema, nas novelas, na mídia como um todo.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprem os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, é inquestionável que o vínculo afetivo, independentemente do sexo, gera direitos e obrigações que merecem a proteção do Estado e do Direito.
A Constituição Federal consagra a existência de um Estado Democrático de Direito. O núcleo do atual sistema jurídico brasileiro é o respeito à dignidade da pessoa humana, baseado nos princípios da liberdade e da igualdade.
A orientação sexual não pode ser uma característica que justifique um tratamento jurídico diferencial, já que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção da dignidade da pessoa humana*.
O único projeto de lei que se encontra em tramitação é o de nº 1.151/95, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e vem regulamentar, através do direito, uma situação que há muito já existe de fato. E o que de fato existe, de direito não pode ser negado.
A parceria civil registrada guarda perfeita harmonia com os objetivos da República Federativa do Brasil - de construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, I e IV CF).
O projeto, mesmo já sendo considerado atrasado, em face dos avanços legislativos de outros países, por uma dezena de vezes foi pautado para votação, mas nunca chegou a ser apreciado.
Enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, os aplicadores do Direito exercem a função de levar ao Judiciário essa nova realidade, de forma a evitar grandes injustiças.
A dificuldade está em reconhecer a existência de um vínculo afetivo entre as pessoas como fundamento das pretensões deduzidas em juízo. Essa dificuldade tem levado à concessão de restritos direitos e ao deferimento de bem poucos benefícios.
Presentes os requisitos legais - vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas -, não se pode deixar de conceder-lhe os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.
Se o enlaçamento das relações afetivas é tratado pelo Direito de Família e a moderna doutrina e jurisprudência definem a família pela presença de um vínculo de afeto entre as partes, as relações homoafetivas devem ser reconhecidas.**
Há muito o casamento deixou de ser requisito para identificar uma família, assim como a função procriativa, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer pela evolução da engenharia genética, desatrelou-se dos conceitos de sexo, casamento e reprodução.
Legislações do mundo todo já regulamentam relações de pessoas do mesmo sexo, e a própria jurisprudência brasileira já reconhece sua existência, ora definindo-as como sociedade de fato, ora como união estável.
As relações homossexuais, que de acordo com a melhor doutrina, são chamadas de uniões homoafetivas, sempre foram relegadas à marginalidade, por constituir tema cercado de preconceitos e tabus, e são alvo da omissão legal, e o temor judicial impede que se lhes conceda tutela jurídica, gerando profundas injustiças para tantas pessoas que, estando inseridas no contexto social, têm direito à felicidade.
Independentemente de quais sejam os direitos reclamados em juízo, a maioria dos julgados reconhece a presença de uma sociedade de fato, dando à relação homoafetiva característica de negócio jurídico, colocando a discussão no Direito Obrigacional, sem status de uma entidade familiar, e é esta diferenciação que impede que se dêem aos relacionamentos homossexuais todos os efeitos jurídicos concedidos sempre aos relacionamentos heterossexuais no Direito de Família.
Na Justiça do Rio Grande do Sul, após decisão (AI nº 599.075.496), todas as ações envolvendo relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são tratadas nas Varas de Família, concedendo desta forma status de família para esses relacionamentos. É neste Estado que vamos encontrar as decisões que mais se adequam ao preceito de igualdade proferido em nossa Constituição Federal.
Mais do que uma sociedade de fato, os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo devem ser caracterizados como uma sociedade de afeto. Na lacuna da lei, há de se estabelecer analogia com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.
Hoje, muitos casais, sabendo da dificuldade de terem seus direitos decorrentes da união tratados em Varas de Família, recorrem aos contratos de convivência formulados com base na declaração de vontade de ambos os contraentes, com objetivo de especificar a destinação de direitos patrimoniais e fazer prova da união em eventuais batalhas jurídicas decorrentes não só da dissolução da parceria, mas também da morte de um dos contraentes.
Esses contratos preservam o casal perante a sociedade, enquanto a lei não vem, e driblam essa omissão legislativa que ainda discrimina em tempos onde a cidadania e a inclusão de excluídos são tão valorizadas.
Em um país em que a Carta Magna prevê como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade, não podemos aceitar que ainda exista, e seja defendida por muitos, a marginalização do afeto entre pessoas do mesmo sexo.

* RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
** DIAS, Maria Berenice.União Homossexual, o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora.

Ana Elisa Siqueira Lolli é advogada e coordenadora da Subcomissão de Orientação Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo

A união já é uma realidade
por Ruy Alberto Leme Cavalheiro e Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro

O século XX observou grandes mudanças nos direitos individuais, reconhecendo-se, talvez não no plano ideal, mas pelo menos de um modo muito mais avançado, que há um direito ao exercício da singularidade humana.
A filósofa Hanna Arendt, inclusive, identifica a diversidade e a pluralidade humanas como integrantes da própria condição humana. Ou seja, sem as diferenças entre as pessoas, a humanidade como a conhecemos deixaria de ser humanidade, pela padronização de etnias, credos, opções políticas e filosóficas, e mesmo sexualidade.
Diante desta premissa é possível dizer que faz parte da condição humana a homossexualidade. Os historiadores demonstram que sempre existiram relacionamentos homossexuais e pesquisas recentes apontam que a homossexualidade é uma realidade para patamares equivalentes a, em números modestos, pelo menos 10% da população humana.
Ou seja, milhões de pessoas desejam para si pessoas do mesmo sexo como companheiros sexuais ou afetivos. E ao fazerem a escolha de tornar realidade o que seus corações pedem, estas pessoas se inserem no mundo do Direito, pois suas ações e as ações dos outros em relação a elas geram direitos, deveres e conseqüências.
A união de pessoas do mesmo sexo é uma realidade, afirmada historicamente e necessitada, atualmente, da tutela específica de nosso ordenamento jurídico. Sim, pois a base para este raciocínio, além de ser filosoficamente aceita, encontra sustentação na própria Constituição Federal, que no inciso IV de seu artigo 3º estabelece que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Observe-se que o legislador, além de utilizar a expressão "todos", demonstrativa do alcance de seu interesse, ainda foi específico ao afastar qualquer possibilidade de discriminação. Ou seja, é objetivo da República promover o bem de todas as pessoas que nela se encontrem.
Tratando em seguida dos direitos e garantias fundamentais, o artigo 5º da Constituição Federal coloca que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes".
Uma vez mais o constituinte se valeu da expressão "todos", estabelecendo expressamente o princípio da igualdade para a análise de direitos e deveres. Estas previsões constitucionais de igualdade se aplicam, portanto, a todos, quer sejam pobres, ricos, brancos, negros, homens, mulheres ou hétero e homossexuais.
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já o reconheceu como aplicável à homossexualidade, conforme o julgamento do Recurso Especial nº 154.857-SP.
Mas o obstáculo apontado pelos opositores do casamento homossexual como impedimento ao seu reconhecimento se encontra na própria Constituição Federal, que no artigo 226 estabelece que a família é a base da sociedade, mas em seus parágrafos 3º e 5º reconhece a união estável somente entre homem e mulher e que os direitos e deveres da sociedade conjugal serão exercidos pelo homem e pela mulher exclusivamente.
Ou seja, o casamento e a união estável que são preservados e aceitos pela Constituição são para os heterossexuais, por força da previsão expressa do texto específico. E diante desta interpretação, a solução encontrada para se preservarem direitos de casais homossexuais era tão-somente alegar a existência de uma sociedade de fato, prevista no artigo 1.363 do antigo Código Civil, o que já é reconhecido pelo mesmo Superior Tribunal de Justiça, vide a decisão do Recurso Especial nº 148.897-MG. De acordo com esta interpretação, o companheiro que sobrevivesse à morte do outro poderia alegar esforço conjunto para a construção do patrimônio do falecido e pleitear o reconhecimento a até a metade dos bens numa forma de sociedade ou de condomínio quanto àquele patrimônio comum.
Mas esta solução não se mostra satisfatória para os casais homossexuais. Quais são os aspectos da vidaconjunta de um casal homossexual que seriam aprimorados ou facilitados pelo reconhecimento por parte do Estado desta sua união? Seriam, em vida, o acesso a empréstimos conjugais e declaração conjunta de imposto de renda, dentre outros. E, havendo a morte de um deles, o direito de herança e pensão por parte do INSS. Ao menos a pensão já é reconhecida, mas os demais direitos não.
O obstáculo constitucional é intransponível? Não, pois em matéria de hierarquia dentro da própria Constituição, os princípios fundamentais e os direitos e garantias fundamentais se apresentam como superiores ao reconhecimento do casamento e união estável.
É possível, portanto, a alegação de antinomia, ou seja, conflito de normas, dentro da própria Constituição, pois, se o texto estabelece direitos iguais e tutela homogênea do Estado para todos, então é incompatível com esta previsão a de que o casamento seria realizável somente entre heterossexuais.
Infelizmente, o constituinte brasileiro se deixou influenciar por um resquício moral de "ordem natural das coisas" ao estabelecer esta distinção. Mas o direito moderno não deve se alicerçar somente na moral ou nos costumes, posto que eles são variáveis, mas sim na justiça no que diz respeito ao tratamento dispensado às pessoas que se sujeitam a determinada lei.
O que se considera normal não é imutável. Era normal ter escravos até o século XIX e era normal acreditar que as mulheres não tinham direitos políticos até o começo do século XX. Mas não é mais.
Isto demonstra que o termo "normalidade" é variável, que ele se refere sempre a uma situação presente e à sua avaliação por meio de padrões previamente estabelecidos. Normal é aquilo que se adequa aos padrões, e os padrões mudam conforme a sociedade muda seus conceitos.
É certo que casais do mesmo sexo acabam por constituir relações e patrimônio. A morte de um desses entes acaba gerando uma injustiça ao se destinar somente metade do patrimônio comum ao que sobreviver, destinando o restante a parentes que não só não contribuíram em nada para a formação do patrimônio como geralmente hostilizaram aquela união homossexual por puro preconceito. Casais heterossexuais não enfrentam este problema, pois, falecendo um dos integrantes, o sobrevivente, não havendo filhos, herda sua parte. A fundamentação "biológica" para a resistência ao casamento homossexual é a de que não há descendência desse tipo de união.
Mas há de se reconhecer que existem casais heterossexuais que ou optam por não ter filhos, ou não podem tê-los em razão de algum problema de saúde, quer de esterilidade entre homem ou mulher, ou risco de saúde à mulher durante a gestação. Como se procede então com relação a tais casais? Seria o caso de se anular o casamento, desfazer aquela relação?
Claro que não, pois se reconhece para os casais heterossexuais que o seu casamento não tem como finalidade única a procriação.
Há de se concluir, portanto, que existe hoje um caminho legal para se pleitear o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo. Mas ele é extremamente complicado e tortuoso e dependeria do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da existência de incompatibilidade dentro da Constituição Federal, o que é praticamente impossível.
O ideal seria uma emenda constitucional, que acrescentasse um parágrafo ao artigo 226 da Constituição reconhecendo, ao menos, a união de pessoas do mesmo sexo. Ou então a aprovação do Projeto de Parceria Civil, que estabelecesse a paridade de direitos entre casais homossexuais e heterossexuais.
O que não pode prevalecer é a moral de algumas pessoas se impondo sobre o modo de vida, escolhas e direitos de outras.

Ruy Alberto Leme Cavalheiro é mestre em Direito pela PUC/SP e juiz da 12ª Vara Criminal de São Paulo.
Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro é especialista em Direito do Consumidor pela PUC/SP, ESMP, FGV e
advogado militante.

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)