Postado em 01/10/2003
O psiquiatra, pensador e escritor italiano Mauro Maldonato esteve no Brasil como convidado da Mostra Sesc de Artes - Latinidades. Em palestra, o autor traçou um paralelo entre os mundos mediterrâneo e latino. Explicou como do primeiro surgiu o segundo e como a humanidade hoje luta para manter as fortes características desse legado, porém sem resistir à necessária evolução que bate à porta de todos nós.
A seguir, os principais trechos de sua fala:
Mediterrâneo
"Não foi fácil encontrar um título capaz de resumir estas minhas meditações. Conheço o Mediterrâneo. Nasci nas margens da Magna Grécia, a poucos passos da Escola Eleática, o lugar onde Parmênides, Zenão de Eléia e outros filósofos ainda, no mais silencioso dos silêncios, davam forma a um pensamento - ou melhor, ao pensamento - que se tornaria o próprio destino do Ocidente. Cresci diante do mar. Desde sempre respirei suas paisagens. E, por mais que eu retroceda em minhas recordações, não encontro nada - nenhum livro, nenhum autor - que tenha suscitado em mim a mesma maravilha, a exaltação, o espanto, a comunhão entre a alma e os lugares que senti nos meus primeiros anos de vida.
Ainda hoje, quando olho com o olhar do coração os barcos atracados à espera de ganhar o largo; as ondas se quebrando no cais; a extensão líquida na qual nos embarcamos e navegamos horas a fio guiados pelas estrelas; o espaço de uma orientação - ou seja, a busca do próprio Oriente -, que afinal é a busca do Outro e, portanto, de si próprio; o horizonte que desloca constantemente a margem de nossa interrogação (enquanto a seguimos, até correndo o risco de nos perdermos pelo puro desejo de nos perdermos) em direção a uma verdade constantemente a caminho, que só alcançaremos no sentido de procurá-la, ainda; enfim, quando observo tudo isso, então compreendo, até o fim, por que o Mediterrâneo foi o cenário espiritual de meus pensamentos.
Naquela paisagem, por vezes, senti, exatamente como Flaubert, 'um estado de espírito superior à vida, no qual a glória de nada valeria e até a felicidade seria inútil'.
No entanto ali, onde o inebriamento da luz exalta a inclinação para a contemplação, aprendi a não me deixar enfeitiçar pelo reflexo das idéias; a resistir ao culto da harmonia que pretende substituir a vida por gestos intelectuais; a não me deixar enredar pela tragicidade solar de uma luz que conspira contra a sombra até cegar quem a ela dirige o olhar. Naquelas margens, diante do aberto daqueles lugares destinados à felicidade - onde a verdade parece inseparável da felicidade -, nascem o sentido e a busca do limite, a possibilidade da medida. Eis que o Mediterrâneo é, antes de mais nada, escola de limite e de philo-sophia.
O Mediterrâneo e sua navegação são origem e metáfora da philo-sophia, daquele amor pelo conhecimento que é o demônio da téchne nautiké (a arte do navegar), do marinheiro-colonizador, da viagem daquele que não tem verdadeira raiz terrena. Desarraigado, e portanto desarraigante, o mar se tornará método; e a posse do método, do discurso, téchne nautiké. Por isso a filosofia, pensamento do pensamento, que surgiu diante daquele mar, não pode esperar numa renúncia àquela ex-perientia perigosa que se realiza ao enfrentar o mar e que requer a mais alta téchne. O estar-entre-as-terras do Mediterrâneo - entre a terra do ocaso (o Ocidente) e a terra do amanhecer (o Oriente) - faz do mar, daquele mar, um porto, um lugar de trocas e de passagem, uma margem, uma abertura, um espaço no qual os homens chegam e do qual tornam a partir, se despedem. O Mediterrâneo, portanto, limite entre as terras, intervalo que estabelece uma distância, descontinuidade entre ser e ser, chamado para a viagem. (...)
(...) Odisseu, o homem mediterrâneo por excelência que - perdido os deuses, tem em mente Ítaca e um pensamento audacioso e frugal - conhece (e vive) generosamente a desesperada esperança de uma viagem em direção àquela virtute e canoscenza - como em Dante Alighieri - feita de amor e desespero, de luz e sombra, de vida e morte. Na solidão silenciosa de uma noite sem vento, nas margens daquele Mediterrâneo, o homem que compreende intui seu destino. Escreve ainda Camus: 'À meia-noite, sozinho na praia. De novo esperar, e partirei. O próprio céu está parado, com todas as suas estrelas, como esses barcos cobertos de luzes que, a essa mesma hora, no mundo inteiro, iluminam as águas sombrias dos portos. O espaço e o silêncio pesam como um fardo único sobre o coração. Um amor arrebatado, uma grande obra, um ato decisivo, um pensamento que transfigura, produzem em certos momentos a mesma intolerável ansiedade, duplicada por um encanto irresistível. Deliciosa angústia de ser, proximidade singular de um perigo cujo nome não conhecemos - viver, então, será expor-se à sua perda? Uma vez mais, sem demora, exponhamo-nos à nossa própria perda'. Dessa paisagem antiga e magnífica, desse 'território da escrita', que faz coincidir pensamento do caminho e caminho do pensamento; que nos faz pensar em quanta aventura humana a água dos mares pôde levar à vida do mundo; enfim, dessa paisagem antiga e magnífica, o que sabemos realmente? Aqui a história entra em dificuldade. E nós, que não tencionamos introduzir quietude nos pensamentos - como, no entanto, um grande filósofo europeu nos exortava a fazer -, estamos prestes a aguçar nossas inquietudes, ao tentarmos traçar, em breves linhas, alguns pontos crucial na evolução histórica do conceito de Mediterrâneo."
Mauro Maldonato é psiquiatra, pensador, professor na Universidade de Basilicata,
autor de vários livros - entre eles A subversão do ser (Fundação Peirópolis Filosofia) e Psicologia da comunicação: por uma psicologia da complexidade (a ser lançado pela Editora Palas Athena) - diretor da revista cultural Elites e colaborador do jornal
La Repubblica