Postado em 31/10/2003
Arte PB
Jornais brasileiros passam por crise econômica e de credibilidade
CECÍLIA ZIONI
Três em dez pessoas abrem o jornal para olhar anúncios antes de decidir a compra de sabão em pó, de carro ou de apartamento. Duas em dez pessoas se fiam na propaganda vista na tevê antes de tomar esse tipo de decisão – e mesmo quem habitualmente prefere a tevê para saber do noticiário, recorre ao jornal para conferir se fez a melhor opção de consumo.
É o que diz um levantamento (da Ipsos Marplan) divulgado no congresso da Associação Nacional de Jornais (ANJ), em agosto deste ano. Bom vendedor, será o jornal também um veículo de informações confiável? Pesquisa do Ibope feita a pedido da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio SP), em setembro deste ano, indica que 13% dos paulistas têm muita confiança nos jornais – que ficam abaixo apenas da Igreja (47%) e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (25%), e acima do Poder Judiciário (11%), da tevê (5%) e do Congresso Nacional (4%).
Essa situação já foi melhor: o InformEstado apurou, dez anos atrás, que 80% de 400 entrevistados consideravam confiáveis os jornais. E, como as respostas negativas somaram 20%, a média de confiabilidade foi de 60%. Número um pouco maior apareceu três anos depois. Em 1996, ouvidas quase 5,5 mil pessoas em 11 capitais, o Datafolha revelava que 69% delas haviam indicado a imprensa como detentora de maior prestígio entre três opções – imprensa, futebol e Igreja.
Mas agora, neste início de século marcado por uma crise sem precedentes na história das empresas jornalísticas, qual é o valor da imprensa? Ouvidos jornalistas de diversos estilos, setores, idades e mesmo correntes de pensamento, não se consegue um grau preciso nessa medição, mas monta-se um quadro de cores carregadas.
"É uma crise como não tinha visto ainda", diz Octavio Frias de Oliveira, de 91 anos, há mais de 40 no comando do grupo Empresa Folha da Manhã, que edita o jornal "Folha de S. Paulo". "As empresas jornalísticas estão endividadas como nunca", o que, segundo ele, resulta da combinação de equívocos administrativos diversos, cometidos pelas várias empresas e grupos jornalísticos, com a crise econômica, "que é brasileira e também mundial". Quando a economia vai mal, a mídia reflete diretamente essa situação, porque depende da publicidade, do consumo, e, enquanto este não se recuperar, as saídas são poucas e demoradas, afirma Frias.
A situação é tão grave que três grandes entidades do setor – a ANJ, a Associação Nacional de Editores e Revistas (Aner) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que representam mais de 2 mil veículos – decidiram, ao final de setembro, preparar e levar ao governo uma proposta de criação de linha de financiamento no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para as empresas da indústria de comunicação.
Francisco Mesquita, presidente da ANJ, diz, como Frias, que a situação do setor reflete a conjuntura econômica que o país atravessa desde 2000, causada pela "desvalorização da moeda, pela retração do mercado publicitário e pelo aumento dos custos em dólar". Isso já inviabilizou muitos empreendimentos, grandes e pequenos, e compromete planos de investimentos no setor. Para manter a independência da imprensa, mesmo se receberem recursos do BNDES, a proposta das empresas é restringir o crédito às suas atividades principais, excluindo investimentos em segmentos como tevê a cabo e Internet, adianta Mesquita. "Serão operações normais entre empresa e banco, com transparência e não a fundo perdido."
Demissões
A queda de circulação dos jornais é estimada em 11%, em dois anos. Cortes e demissões em massa e em alta velocidade tornaram-se rotina em todo o Brasil. Em São Paulo, por exemplo, no primeiro semestre, a média foi de meia dúzia de cabeças cortadas por dia. Em 2002, o Ministério do Trabalho registrou 5.568 dispensas de jornalistas e contratação de 5.052 no país – saldo negativo de 516 postos (345 em São Paulo). Nos primeiros seis meses de 2003, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo fez 293 homologações – mas o número total é maior, pois o sindicato só homologa demissões de pessoas com mais de um ano de casa. Também não se conta o número de recém-formados, em busca de emprego.
A indústria que produz e importa papel para imprensa acusou retração de 30% em suas vendas, nos seis primeiros meses deste ano. Levantamento mundial da World Press Trends indica perda de 0,5% no faturamento publicitário dos jornais ao longo do ano passado, e – fato inédito nos últimos cinco anos – queda de circulação, de 0,35% no mundo e de 9,1% no Brasil, informa Ana Paula Souza, em reportagem sobre a crise jornalística, publicada na edição de junho da revista "Carta Capital". Os jornais, diz ela, "estão cada vez mais magros e as equipes, menores e menos qualificadas – já que, não raro, salário baixo é garantia de ter o nome fora das listas de dispensa".
Melhor que uma linha de crédito oficial, que pode roubar pontos na necessária independência dos veículos de comunicação, Octavio Frias diz que a saída para as empresas jornalísticas é "apurar sua administração, que deve ser profissional, sempre". "Decidir investimentos com muito cuidado, evitar tomar recursos externos e zelar por seu principal ativo, que é a independência", são os pontos que, segundo ele, devem nortear os empresários. "Vai demorar sair desta crise, e não se devem ter ilusões, como a de aporte de capital estrangeiro. A lei que o restringe a 30% do total não é atraente para nenhum investidor externo, e o volume de recursos que poderia gerar também não resolverá o problema do empresário brasileiro", acrescenta, lembrando que sempre manteve, no seu grupo, a relação dois para um entre o capital próprio e o montante de dívidas.
Ombudsman pioneiro, criador da coluna dominical "Jornal dos jornais", na "Folha" nos anos 70, e do "Observatório da Imprensa", nos anos 80, Alberto Dines diz que a crise econômica mexeu com o modelo de empresa jornalística familiar, que já não se sustenta. "É preciso profissionalizar a mídia, mas passando o comando para jornalistas, em vez de entregá-lo a capitalistas, banqueiros e consultores, que podem resolver problemas de outros tipos de empresas com eficiência", mas transformaram "uma indústria razoavelmente sólida e minimamente respeitada numa corporação combalida, endividada e desnorteada."
Para Dines, a melhor saída é combinar gestão financeira a cargo de especialistas na área com processo decisório nas mãos de jornalistas. "O equilíbrio financeiro depende do caixa, o qual depende da edição diária do jornal – e esta depende apenas do jornalismo", diz ele. "Há muitos jornalistas com experiência administrativa que podem ser bem aproveitados nessa remodelagem das empresas."
Equívocos e ilusões
Segundo Dines, a crise começou nos anos 70, quando empresários do setor "impregnados pelo espírito do ‘milagre brasileiro’ – que deveriam combater – deixaram-se seduzir por obras monumentais e acabaram comprometendo importantes projetos jornalísticos". Na década de 80, aventuras malsucedidas de mídia eletrônica afetaram grandes grupos (como Manchete), e, nos anos 90, "gurus da gestão empresarial mostraram mais caminhos equivocados: a) o mundo seria dos conglomerados; b) as novas tecnologias mudariam a essência do negócio; e c) o marketing era mais importante do que o produto". Além do grupo Manchete, houve o envolvimento de outros, como O Estado de São Paulo (OESP) e Folha da Manhã, em leilões da privatização (negócios caros e de pouca rentabilidade). Em seguida, surgiu a ilusão da Internet. Depois, veio a opção pelo consumo popular, baseada na reação positiva do poder aquisitivo no início do Plano Real, que fez nascer pelo menos uma dezena de produtos populistas, com alto custo promocional e baixo retorno, relata Dines.
A partir de 2000, a parceria de grupos concorrentes, como a Folha e O Globo, num novo veículo de jornalismo especializado, o "Valor Econômico", patina entre investimento alto e retorno insuficiente, mesmo depois que a concorrência no setor se esfarelou com o desmonte da tradicional "Gazeta Mercantil" – um caso nítido de má gestão. Essa empresa mudou de sede, reduziu o pessoal à metade, enfrenta centenas de ações trabalhistas, deve a fornecedores e ao governo – e parece que fecha 2003 praticamente rendida ao investidor Nelson Tanure (que também assumira, anos antes, o tradicional "Jornal do Brasil", um dos primeiros a sucumbir à crise). O grupo OESP passa por novo programa gerencial – com base num chamado "orçamento zero", com corte de pessoal e de gastos –, sobre o qual serão reestruturadas as editorias e as redações dos vários veículos do grupo. Em menor escala, a Folha mantém redação enxuta e gastos comprimidos. "Tive sorte com meus herdeiros, Luís é empresário e Otávio é jornalista", diz Frias.
Que imprensa vai nascer – ou sobrar – da crise é a incógnita, assim como também se discute a qualidade do jornalismo brasileiro neste início de século. Luís Nassif analisa o assunto em seu livro O Jornalismo dos Anos 90, lançado em meados de 2003. Segundo ele, nos anos 50 e 60, o ofício esteve "refém dos partidos políticos". Passou pela década de 60 baseado na vertente do jornalismo econômico, mas viveu até o final dos anos 70 sob regimes militares. Nos 80, terminada a ditadura, a imprensa continuou subjugada por movimentos organizados, assinala Nassif. Ao final da década, decidiu "ser representante dos anseios difusos da sociedade contra os interesses políticos, corporativos e setoriais".
O caminho pode ter sido descoberto; o modo de percorrê-lo adequadamente ainda não foi definido e é a raiz do problema atual. O próprio Nassif, que recebeu o Prêmio Comuniquese de Jornalismo Econômico 2003, diz que "o grande dilema da imprensa no século 21 é atender às expectativas imediatas do seu leitor ou ser o guardião dos valores da civilização".
Ditadura da opinião pública
O problema surgiu, diz ele, quando a imprensa começou a se ver como produto que deve responder às expectativas do público. "Adotou a prática de recorrer a departamentos de pesquisa, a leituras imediatistas de resultados obtidos nas enquetes, a tentar atender o leitor em suas demandas de curto prazo. E aí se tornou refém do pior censor: a ditadura da opinião pública, ou, melhor, passou a atuar passivamente, oferecendo ao leitor aquilo que pensa que ele quer".
Nassif condena as empresas jornalísticas por terem se tornado "muito dependentes do jogo de mercado, da audiência para se viabilizar economicamente". E considera um dos maiores pecados do jornalismo atual o abandono da busca da notícia em favor do marketing da notícia. "Como impedir que o jornalismo de opinião, essencial para o país, não se contamine definitivamente com o espetáculo, tornando a imprensa um reality show diário e, ao mesmo tempo, não seja maçante, a ponto de ser apreciado só por meia dúzia de eleitos?", pergunta.
Nessa busca, o jornal erra, e muito. Claudio Julio Tognolli, jornalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), diz que o jornalismo "apagou fronteiras que deveriam ter sido mantidas. O estatuto da cidadania virou estatuto do consumidor. O espaço tradicionalmente dedicado aos problemas da cidadania perde força para os problemas do consumismo".
Clóvis Rossi, veterano repórter e colunista da "Folha", explica isso com um exemplo: o da extensa cobertura da imprensa sobre o terno usado por Lula em sua visita aos reis da Espanha. O presidente foi jantar no Palácio Real sem casaca, e os jornais abriram largos espaços para isso. O caso, diz Rossi, assusta por "ilustrar certa tendência para o espetáculo em vez da informação, para o frívolo em vez do essencial, para a interpretação apressada em vez da devida checagem". Consultado o protocolo diplomático, soube-se depois que usar terno é coisa normal e conforme as regras. Ou seja, não valia gastar tanta tinta nem papel.
Cida Damasco, editora de "O Estado de S. Paulo" e ex-coordenadora da "Gazeta Mercantil", diz que os repórteres de agora são mais preparados que os da geração anterior em alguns quesitos (como língua estrangeira e habilidade em novas tecnologias), mas sofrem de um forte vício: "Tornaram-se especialistas em empilhar flashes. E flash não tem alma. Nas entrevistas coletivas ou pessoais, em conversas telefônicas ou consultas a sites online de agências noticiosas, juntam tudo o que ouvem e vêem para montar textos em que, muitas vezes, fica sem resposta uma questão crucial – por quê?" Cida diz que sempre se faz esta pergunta: "Será que o leitor que tenha lido absolutamente tudo o que tem sido publicado sobre a proposta da reforma tributária sabe, efetivamente, o que isso vai significar em seu bolso?"
Diploma
O preparo dos profissionais e a exigência de diploma de jornalismo são questão recorrente quando se discute a crise da imprensa, que, voltando a Dines, é também "decorrência das nossas próprias falhas, com as escolas de comunicação voltadas apenas a fornecer diploma e habilitar legalmente os formandos ao exercício da profissão, sem interesse em prepará-los tecnicamente". Ele ressalva poucas exceções e recomenda a "criação de gabinetes de estudos avançados em que a indústria da informação nacional possa buscar projetos para velhos e novos veículos, e onde os profissionais teriam oportunidade de reciclar sua experiência".
Vicente Alessi Filho, jornalista e editor de publicações especializadas, diz que "toda vez que os resultados da má gestão das empresas jornalísticas transbordam, eliminar a exigência de diploma para jornalistas surge como opção para economia de custos". Melhor seria estimar a evolução da imprensa desde que a exigência foi imposta, afirma ele, chamando a atenção também para outro item da regulamentação da profissão – o piso salarial, base para "a queda vertiginosa na quantidade de picaretas na imprensa" e "ganho de alguma respeitabilidade para os profissionais".
Entre os grandes jornais paulistas, a "Folha de S. Paulo" contesta essa exigência e emprega diversos profissionais formados em outras áreas. O curioso é que, se o jornalismo da "Folha" é mais ágil que o de seu concorrente paulistano, "O Estado de S. Paulo" se destaca pela maior profundidade no trato dos temas e até do noticiário.
Material em falta nas redações, segundo Nassif, são o tratamento analítico que se deve dar aos fatos e temas, a análise ponto por ponto dos diversos ângulos da questão, a apresentação de versões efetivamente conflitantes (o famoso "outro lado") e a inserção do fato num contexto mais amplo. Alessi lembra que jornais e revistas já tiveram consultores, formais e informais, para questões mais técnicas. Mas os dispensaram, por economia, em outro equívoco de gestão. Os efeitos dessa falta se acentuam por ser muito ruim a qualidade média das escolas – e não só as de jornalismo, acrescenta.
Numa severa análise do caso brasileiro, o problema é agravado, diz o veterano comentarista de economia Joelmir Beting, "pelo que Sérgio Motta chamaria de masturbação conspiratória da mídia coisa-preta, com síndrome de mídia chapa-branca". Mais do que nunca, a avaliação do trabalho do jornalista depende da qualidade de suas fontes. Fonte segura e análise serena evitam modismos, notícias plantadas e modelos prefixados, a nova forma de subordinação estéril a que boa parte dos jornalistas está sujeita. Beting coleciona algumas manchetes resultantes desse modo equivocado de trabalhar. Uma delas: "Mercado exagera no pessimismo", justo o imponderável mercado, conhecido por "fazer muito sensacionalismo quando certas coisas vão bem e um baita catastrofismo quando outras vão mal", diz ele.
Ou ainda: "Falta de más notícias impulsiona a bolsa" e "Colapso turco ameaça tragar Argentina". Num mesmo dia, a "Folha" deu: "Fazenda vê 45% de chance de Alca fracassar", e "O Estado": "Brasil calcula em 55% chance de Alca em 2005".
Em 1987, no lançamento da "Revista Imprensa", o Gallup apurara que 14% de 611 leitores da Grande São Paulo consideravam que os jornais publicavam os fatos exatamente como aconteciam. Para a maioria (83%), eles eram distorcidos "sempre ou muitas vezes". Refeita a pergunta em 1994, a cotação da imprensa melhorara um pouco: seu noticiário tinha exatidão para 17,6% dos entrevistados, e os que se queixavam de distorção haviam caído para 75,5%.
Melhorou, mas ainda não está bom. Valter Ceneviva, cronista da "Folha", diz que "pesquisar um fato exige a capacitação imediata de compreender todos os seus lados antes de serem noticiados ou comentados. E esses requisitos estão em baixa. Será bom se do conflito atual surgirem novos rumos e exigências ao jornalismo nacional – agora que dúvidas e juízo crítico voltam a ganhar corpo".
![]() | |