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Baú de segredos

Postado em 31/10/2003


Foto: Reprodução

Pedro Nava, médico e escritor, 80 anos de trabalho, arte e paixão

CECÍLIA PRADA

Em um tempo de livrarias transbordantes de biografias e livros de memórias, em que qualquer atrizinha de segunda ordem, empresário mais ou menos bem-sucedido, socialite ou modelo, funcionário aposentado ou desportista de ego projetado não sossegam enquanto não legam à posteridade o que consideram experiências vivenciais de importância ímpar... anda esquecida, ignorada pela geração presente, a extensa e extraordinária obra memorialística de Pedro Nava.

Conheci Pedro Nava em 1984, a pouco menos de um mês de sua trágica morte. Viera a São Paulo para receber o prêmio Livro do Ano, concedido pela Secretaria Estadual de Cultura a O Círio Perfeito, publicado no final de 1983. Durante a homenagem, realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), os discursos se sucederam, no comum das coisas literárias. Mas, quando Nava tomou a palavra para agradecer, seu vigor, a voz firme, o pensamento claro, original, causaram um verdadeiro impacto em todos, naquele homem de quase 81 anos – personalidade ímpar, discurso seguro, a imagem do triunfo. O melhor exemplo daquela culminância de vida detectada pelos especialistas na biografia de muitos longevos. Nada, naquele momento, fazia prever sua morte, e da maneira como ocorreu. Não a que acontece naturalmente com o velho, não a resignação da entrega passiva. A de Nava assemelha-se à sua obra – esta surpreendera a todos pela paixão, pelo colorido, pelo vigor e pela originalidade. No seu caso, foi um ato de rebeldia, uma morte ativa. Suicidou-se com um tiro no peito, no apogeu da glória literária e da lucidez. Segundo testemunho de seus amigos das sabadoyles – reuniões literárias realizadas aos sábados na casa de Plínio Doyle, no Rio de Janeiro –, ele estava cheio de planos, daria prosseguimento ao gigantesco projeto literário que empreendera. Com aquele tiro no coração, dado na noite de 13 de maio de 1984 sob uma árvore da Praia da Glória, Pedro Nava expressava sua não-aceitação da mesquinharia humana, da intriga, da inveja, da chantagem emocional. Exatamente como acontecera com outro escritor cuja obra lembra e cita ao descrever o ambiente violento dos internatos de sua época – o autor do Ateneu, Raul Pompéia, que se matou em 1895, aos 32 anos, no auge do sucesso e desgostoso com sórdidas intrigas.

Os seis volumes lançados entre 1972 e 1983 – Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas e O Círio Perfeito – constituem o que Francisco de Assis Barbosa definiu como "um verdadeiro monumento literário, desses que se levantam de cem em cem anos". Embora sua obra esteja sendo reeditada pela editora paulista Ateliê, permanece escassa a produção de nível universitário sobre o autor, e ainda muito pouco estudado o cabedal polissêmico que suas memórias nos fornecem – uma súmula da história nacional, do último quartel do século 19 até a década de 40 do século 20, destrinchada minuciosamente em vários níveis, do pessoal ao político e social, vertida em estilo original e caracterizada pela sinceridade e pela força expressiva, pela forte garra do autor.

O sucesso do primeiro volume, Baú de Ossos, lançado em 1972 pela pequena editora Sabiá, do Rio de Janeiro, foi imediato e consagrador. Apresentando-o, dizia Carlos Drummond de Andrade ver no livro do amigo e companheiro de geração "uma lição esmagadora". E Otto Lara Resende parecia exagerar no entusiasmo pelo "simplesmente genial" Baú de Ossos, "um livro fundador... que sozinho dá notícia de uma cultura. Mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a cultura francesa". Que não se tratava de exagero, amizade ou patota de mineiros companheiros de mocidade, provaram sobejamente outros críticos e professores, Brasil afora.

Ciência e arte

Nascido em 5 de junho de 1903 em Juiz de Fora (MG), Pedro da Silva Nava participou ativamente do movimento modernista mineiro e de "A Revista", fundada em 1925 por Drummond e outros intelectuais de Belo Horizonte. Considerado um excelente pintor e desenhista "bissexto", foi também, no dizer de Drummond, "poeta de modulação afinadíssima, mas desinteressado de exercitá-la". Preferiu elaborar em segredo, no espaço de uma vida, todo o seu material familiar e autobiográfico, para legar obra de impacto às gerações do futuro – na história literária, o mais famoso parâmetro do trabalho de Nava, e seu modelo maior, é Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu), de Proust. Um exemplo mais recente temos também na requintada autobiografia Paradiso, obra póstuma do cubano José Lezama Lima.

Formado em medicina em 1927 na mesma turma de Juscelino Kubitschek, o jovem Nava embrenhou-se pelo interior de Minas Gerais e de São Paulo e como clínico-geral teve de enfrentar os maiores desafios da carreira, em tempo de precárias condições de higiene e de comunicação – de partos complicados a crimes e epidemias várias, de tifo, de febre amarela, de varíola. Combate árduo, incessante, que à medida que era vivido registrava-se com detalhes cruéis, escatológicos, na memória do futuro cronista, para mais tarde dar a muitas de suas páginas tintas de um horror expressionista, o desventramento da condição humana – páginas que pela sua pungência chegam a provocar no leitor covarde certa dificuldade de leitura. Mas que se fundem harmoniosamente com tudo o mais que é Nava: deliciamento de tias, avós exóticas, mineiros quitutes, primeiros bailes, versos e amores tímidos, um rigoroso levantamento da paisagem urbana de várias cidades, ruas, becos e vielas, casas, estilos arquitetônicos; e de personagens, famílias, amigos, inimigos, pessoas públicas, fatos políticos, árvores genealógicas, sertões e vida urbana.

Nava se estabeleceu definitivamente no Rio de Janeiro em 1933 e dedicou-se à reumatologia – especialidade de que foi um dos introdutores no Brasil. Tem mais de 300 trabalhos publicados e construiu uma reputação internacional como cientista. Foi somente depois de aposentado, por volta dos 65 anos, que o escritor decidiu dedicar-se à literatura. "Minhas memórias nasceram da minha disponibilidade", dizia, "(pois) o ato de escrever me desoprime, é mesmo uma libertação." E afirmava preferir o convívio com seus fantasmas a cumprir destino de aposentado dando voltas no quarteirão com o cachorrinho. Mas abrindo ao acaso qualquer dos seus livros percebemos que sua obra vai além da alternativa ao tédio da velhice. Ela é muito bem estruturada, de intencionalidade forte e manifesta. É projeto elaborado, cuidado, fundamentado em rigorosa pesquisa – partindo dele conseguiu, como somente um grande escritor pode fazer, deixar que sua imaginação poética, sua "memória involuntária" se soltasse na reelaboração do imenso material histórico e vivencial que acumulara.

Id e superego

A primeira página de Baú de Ossos, introduzida pela frase "Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais", é um vetor que define o narrador/memorialista em termos de situação histórico-geográfica; de intenção; de estilo e linguagem; de intertextualidade literária. É de Proust que se vale para a dicotomia de "caminhos" que descobre em sua vida; para o Marcel da Recherche, eram o caminho de Guermantes e o de Swann. Para o mineiro Nava foram "o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira, do bojo de Minas" e seu oposto, "a direção do oceano afora, serra do Mar abaixo".

Transpondo para a literatura seus dons de pintor, traça um vívido painel da sociedade patriarcal, escravocrata e repressora do interior do Brasil, na primeira década do século 20 – personagem inesquecível, entre muitos outros, é sua avó materna, Inhá Luísa, a Sinhá que, como outras "boas senhoras daquele tempo", "não tomara conhecimento do 13 de maio", pois continuavam todas a usar vara de marmelo e palmatória não só nas suas crias como nas empregadas assalariadas. Descreve o escritor o cultivo do marmeleiro e o preparo das suas varas por Pedro da Serra, que "fazia-as silvar, enquanto verdes, diariamente, em cima duma chama" para assobiarem melhor no lombo das negrinhas. Nesta página notável – abertura do volume Balão Cativo, escolhida entre centenas de outras de igual força descritiva – continua o autor: "A palmatória de cabiúna vivia de nossa casa para a de tia Regina, que, entre um mistério gozoso e um mistério doloroso do seu rosário, também aplicava bolo nas suas crioulinhas". E chega ao famigerado coronel que não hesitara em jogar um escravo dentro do funil da moenda para que morresse engastalhado na engrenagem... mas que "tinha seus momentos de filantropo e era pródigo em donativos às santas-casas, razão por que D. Pedro II, em 1886 e 1889, fê-lo barão e visconde de Monte-Mário".

Nos primeiros quatro volumes é uma desassombrada viagem que empreende, corajosamente desvendando o cotidiano das mais tradicionais famílias brasileiras, a começar pela sua, expondo misérias e glórias de seus personagens de nomes extensos e sobrenomes floridos, dados cronológicos, cacoetes, virtudes e vícios. Embalado em fluência, aproveita cada fase da sua infância, adolescência e juventude para explorar profundamente as coordenadas espaço-tempo em que estava situado. Donde o inigualável valor referencial de sua obra, em termos de informações históricas, geográficas e sociológicas, como um verdadeiro inventário da cultura brasileira.

O outro vetor da obra de Nava, a direção "serra do Mar abaixo", corresponde à fixação "na sua Glória" – um espaçoso apartamento na Praia da Glória, onde viveu do seu casamento em 1943 até a morte, dedicado à medicina, discreto e aparentemente feliz e sem problemas. Mas na grande aventura literária em que se lançou chegou, ao elaborar o quinto volume, Galo-das-Trevas, a um ponto extremamente penoso, no seu enfrentamento de memórias várias. Não por nada sua página inicial, escrita no dia em que completa 75 anos, tem epígrafe do Tímon de Atenas, de Shakespeare: "– Que horas são?/ – Horas de ter vergonha". Assim escolhe traduzir o "time to be honest" do original, e explica: "E por quê? a epígrafe. Para minha encucação durante o trabalho que empreendo, querendo ser sincero, veraz e probo. Usando brio e vergonha".

Infelizmente a partir desse ponto o escritor que partira desassombrado, alguns anos antes, para desafiar seu passado, repentinamente assombra-se. Não agüenta por muito tempo a absoluta sinceridade proposta. Perde após a primeira centena de páginas a posição privilegiada que conseguira manter como narrador nas 1,6 mil páginas anteriores, somadas, dos outros volumes. E resvala de repente para um ressentimento profundo, pouco ou nada explicado, contra colegas médicos que por "safadeza e deslealdade" teriam armado "um golpe baixo" aos seus 50 anos de medicina e de lutas, "numa vida profissional inatacável".

Essa sombra sinistra que Nava não teve a coragem de exorcizar prejudicou-lhe a obra e certamente tirou-lhe a vida, seis anos mais tarde. Nas páginas finais da primeira parte de Galo-das-Trevas, diz claramente desse triste episódio: "Toda esta estória terá de ser retomada em detalhe e vai aqui sua notícia apenas em esboço". Mas não a retoma – dribla-a, apenas. Abandona a espontaneidade, a sinceridade da narrativa em primeira pessoa, e tenta afastar-se da situação incômoda adotando a terceira pessoa, como se tudo não passasse de obra de ficção – cria um personagem imaginário, um alter ego, José Egon Barros da Cunha, também médico e primo de Pedro Nava (a quem dali por diante tratará igualmente na terceira pessoa).

Sob o novo enfoque ficcional continua à toda a produção de Nava, daí por diante. Mas o leitor não pode evitar sentir-se traído – aquela paixão incandescente colocada pelo escritor em seu estilo, aquela sua magia peculiar, foi quebrada, domada pelas próprias circunstâncias biográficas que o grande velho não conseguiu vencer. Podemos dizer que o escritor Pedro Nava foi silenciado. E que o homem, chamado Pedro da Silva Nava, foi assassinado.

Preparava um sétimo volume, Cera das Almas, mas há um detalhe: os títulos dos dois últimos, Galo-das-Trevas e O Círio Perfeito, constituem um inequívoco adeus ao leitor. O autor esclarece seu valor metafórico: "Assim, círio perfeito é a vela do meio do galo-das-trevas (candeeiro de 13 velas que vão sendo sucessivamente apagadas no Ofício de Trevas da Semana Santa), que é levada para detrás do altar-mor – onde vai arder até acabar, consumar-se".

E assim consumou-se – e consumiu-se – em literatura esse grande escritor, colocando um ponto final na vida e na obra. Bem, há quem diga que todo trabalho literário de escritor empenhado em autobiografia não seria, em última análise, mais do que uma extensa carta de suicida.

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