Postado em 31/10/2003
Rio Ribeira do Iguape / Foto: Gilberto Marques
Comunidades encontram formas alternativas de sobrevivência
CEZAR MARTINS
O vale do Ribeira, na metade do caminho entre São Paulo e Curitiba, é uma espécie de arca onde estão abrigados tesouros da biodiversidade brasileira. Na divisa entre dois dos estados mais ricos e industrializados do país, a região – com índices de analfabetismo e de desemprego equiparados aos do agreste nordestino – concentra a maior área preservada de Mata Atlântica no Brasil. São 2,6 milhões de hectares de um verde que, recortado pelo rio Ribeira do Iguape, chega a hipnotizar. Graças a severas leis ambientais que imperam em 24 unidades de conservação criadas pelos governos federal e estadual, florestas, restingas e manguezais ficaram menos expostos à ação das motosserras e protegidos da especulação imobiliária, que, na década de 1960, ameaçava algumas áreas do vale com a construção de grandes condomínios residenciais de luxo.
Essa mesma legislação, no entanto, obrigou comunidades inteiras de caiçaras e quilombolas (descendentes de escravos), acostumadas a suprir suas necessidades com o que retiravam da mata, a modificar seus hábitos. Apesar de viverem em locais próximos aos parques e reservas, ou em alguns casos dentro das estações ecológicas, essas pessoas foram proibidas de cortar madeira e palmito, caçar, pescar e fazer pequenas roças no quintal de casa. Atividades tradicionais, ensinadas pelas gerações anteriores, passaram a ser consideradas crimes e punidas com multas e até detenção. "O problema é a forma como as unidades de conservação foram criadas e o tipo de regras impostas a quem, por ter atividades de baixo impacto ambiental, poderia ter sido envolvido como parceiro no processo de preservação", afirma João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente e um dos ambientalistas que mais militou na região.
Boa parte da população afetada não viu outra saída a não ser migrar para as periferias de grandes cidades em busca de emprego. Mas aqueles que ficaram procuram – e começam a encontrar – alternativas para adaptar-se às restrições legais. A partir da década de 90, os moradores se uniram em associações e cooperativas, que tentam aliar desenvolvimento econômico e social a preservação ambiental. São idéias pioneiras que cravam raízes no vale do Ribeira em meio a dificuldades para lidar com a falta de recursos financeiros, investidas de atravessadores interessados em manter o alto grau de dependência econômica das comunidades e pressões para que as unidades de conservação permaneçam intactas.
Na cidade de Sete Barras, o manejo e o cultivo de mudas do palmito-juçara, ameaçado de extinção, e de outras espécies da Mata Atlântica são exemplos de atividade bem-sucedida; a produção e o comércio de peças artesanais típicas da região, feitas por um grupo de mulheres em Iguape, são iniciativas que despontam como solução; a melhoria das condições de trabalho dos criadores de ostras em Cananéia, que se tornou possível após a formação de uma cooperativa, foi reconhecida e premiada internacionalmente; e, unidos, os quilombolas de Ivaporunduva, em Eldorado Paulista, passaram à frente de grandes fazendeiros e se transformaram nos primeiros produtores orgânicos de banana de todo o vale.
Mão na massa
Iguape é uma cidade que carrega em seus casarões centenários as lembranças da época em que a mineração e o cultivo de arroz capitaneavam a economia local. Atualmente, a população de cerca de 27 mil pessoas vive da pesca da manjuba e da tainha, ocupação que garante a elas renda apenas durante o verão. No restante do ano, sustentam-se com "bicos" ocasionais. Mas cinco mulheres formaram, há três anos, o grupo Iguart e fizeram da arte com a cerâmica negra seu ofício.
Abrigadas em um galpão de paredes frágeis, Leci, Cecília, Preta, Ivonete e Dita sentam-se a uma mesa de madeira para produzir panelas de barro pretas, típicas dos povoados que se instalaram no litoral paulista, mas que, em Iguape, estavam em vias de desaparecer devido à falta de interesse dos jovens. "Dona Benedita é uma senhora que faz panelas, mas já está muito velhinha, e seus filhos não quiseram trabalhar com artesanato", conta Cecília.
Em um curso promovido pela prefeitura com o objetivo de não deixar a tradição morrer, dona Benedita virou professora de 25 mulheres que não sabiam como dar forma à argila. Muitas delas abandonaram o projeto ainda no início, porque a venda das panelas rendia pouco. Quando o grupo de alunas estava reduzido a apenas quatro artesãs, as peças foram expostas em uma feira. Uma loja de artigos para decoração de São Paulo interessou-se pelo trabalho e, hoje, compra a maior parte da produção – o restante é vendido para turistas em Iguape. Com o fechamento do acordo, uma das desistentes retornou, aumentando a turma.
Dá trabalho fabricar cerca de 250 panelas, a produção mensal do Iguart. Primeiro, as mãos amassam o barro e modelam potes de diversos tamanhos, para depois fazer delicadas ranhuras perto da boca. As mulheres, então, deixam as peças secar de uma a duas semanas, antes de lixá-las com pedras brancas e pontiagudas. Só após todo esse processo é que as panelas podem ser colocadas em um forno à lenha para queimar. "A gente faz assim para que fiquem brilhantes", explica Leci.
Por fim, cada peça é tingida com a tinta preta resultante do cozimento da casca do tronco de jacatirão, espécie nativa da Mata Atlântica, cuja extração não é autorizada se a árvore estiver viva. As artesãs tentam conseguir uma licença do governo estadual para obter a matéria-prima por meio de um processo sustentável: retirar apenas parte da casca do tronco ainda vivo e deixar que a planta se regenere. "Se não for retirada a casca toda, não há problema, a árvore não morre. Já tivemos de atrasar pedidos por falta de tinta", revela Cecília.
Devido ao sucesso recente, as cinco mulheres trabalham de segunda-feira a sábado, das 8 às 17 horas. Param apenas na hora do almoço, quando correm para casa a fim de preparar a comida para marido e filhos, de preferência em uma panela de barro. "A feijoada e a peixada ficam muito boas", afirmam.
Vida nova nos viveiros
Os primeiros meses de 1997 foram muito difíceis para quem vivia no vale. As águas do rio Ribeira subiram mais de 15 metros, invadiram ruas e casas, deixaram cidades ilhadas por meses seguidos e destruíram plantações inteiras de banana, o principal produto agrícola da região. Depois da tempestade, porém, a associação do bairro Rio Preto, na cidade de Sete Barras, encontrou terreno fértil para crescer. Olímpio Rosa da Silva, atual presidente do grupo, foi um dos que mais lutaram para que o cultivo e o manejo da palmeira juçara se transformassem em uma alternativa rentável para a comunidade. "Eu tinha 20 mil pés de banana, mas perdi tudo com a enchente de 97. Meus filhos foram embora, e fiquei sozinho. Até pensei em fazer outra coisa", conta.
A cultura de banana não era o único tipo de atividade no Rio Preto antes da enchente. Muitos moradores da comunidade extraíam palmito e vendiam para fábricas ou viajantes que passavam pela Rodovia Régis Bittencourt (BR-116), que atravessa o vale. No entanto, a criação do Parque Estadual Carlos Botelho, em 1982, e a conseqüente proibição da retirada de espécies nativas geraram tensão em Sete Barras: nas trilhas do parque, cobertas por altas árvores, o encontro de palmiteiros, com seus facões, e guardas-florestais, com seus revólveres, poderia significar embates fatais.
Os vizinhos de Olímpio apostaram na nova idéia. Em um viveiro construído sem muitos recursos, os antigos palmiteiros passaram a cultivar mudas da palmeira que, antes, era cortada pela lâmina afiada de seus facões. "O primeiro viveiro foi feito dentro do parque, depois o trouxemos para dentro da comunidade." Fora dos limites do parque já existem mais dois cercados, e a produção não se limita à palmeira juçara.
Nos saquinhos pretos, enfileirados no chão de terra batida, há mudas de espécies como guapiruvu, embaúva, piúva amarela, jerivá, que podem ser compradas por quem se interessar. A entrega é feita num carro da Fundação Florestal, órgão ligado à Secretária de Estado do Meio Ambiente, uma das instituições parceiras do projeto. A renda obtida é dividida entre todos os membros da associação, de acordo com o tempo que cada um passou sob a tela escura armada nas estacas de madeira, plantando e regando as sementes.
Um dos clientes da associação do Rio Preto é uma concessionária de rodovias, obrigada a reflorestar áreas do mesmo tamanho das que destrói com as obras nas estradas que administra. Por acordo fechado no início do ano passado, com validade até 2005, os plantadores receberão R$ 108 mil para cultivar e fazer a manutenção de 36 mil mudas de juçara, dentro do Carlos Botelho. A cada plantio, um animado mutirão toma conta da comunidade. As mulheres preparam a comida, enquanto os homens, em ritmo acelerado, ajeitam as pequenas árvores em covas redondas na terra devastada.
Ainda há, no bairro Rio Preto, quem apareça com feixes de palmito nas costas, depois de andar 12 horas embrenhado na mata – uma tarefa árdua, que cria grandes calos nos ombros. Olímpio diz que essa realidade pode mudar em pouco tempo, se o plantio das mudas seguir a todo o vapor. "Mais um ou dois anos, se tudo continuar bem, e isso deixará de acontecer", afirma.
Essa perspectiva nem parece tão distante, já que, com a ajuda do consulado britânico, que apóia economicamente o projeto, será possível comprar uma máquina para processar o palmito. Dessa forma, o corte clandestino da juçara no Rio Preto pode virar lenda antes do que se imagina. "Nossa intenção é trabalhar com a polpa, que dá mais rendimento. Assim, não é preciso cortar a palmeira e, depois, podemos devolver a semente para a natureza", diz Olímpio.
A lama vale ouro
Para os moradores da Reserva Extrativista do Mandira, em Cananéia, ter os pés e as mãos enterrados no lodaçal do mangue é sinônimo de trabalho e alegria. É ali que os mandiranos coletam ostras durante oito meses do ano e as colocam para crescer em estruturas montadas com arame e estacas de madeira. No verão, quando os turistas chegam à cidade do litoral sul paulista, ansiosos para apreciar uma torta de ostras, os coletores só têm o trabalho de pegar o ingrediente em seus viveiros para preparar a iguaria. "O mangue é nosso ganha-pão, nossa roça", orgulha-se Francisco de Sales Coutinho, o Chico, líder da Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananéia (Cooperostra).
O produto da coleta vai para uma estação depuradora, onde os moluscos passam por um processo de limpeza em dois tanques de água. Depois, Mário Batista Pontes, funcionário contratado da cooperativa, se encarrega de embalá-los em caixas de papelão. "Já tive meus viveiros, mas, hoje, vivo com o salário que recebo", diz ele. Por fim, um carro da Cooperostra faz a distribuição para restaurantes da Baixada Santista e do litoral norte de São Paulo.
Para Chico, que aprendeu com o pai a selecionar as ostras no meio do mangue, esse sistema trouxe benefícios palpáveis. "Antes, vendíamos a dúzia por R$ 0,50. Hoje, recebemos R$ 1,70. Além disso, não precisamos mais nos ocupar tanto da coleta. O viveiro é como uma poupança", compara. "Outra vantagem é não ter medo da polícia. Agora está tudo de acordo com a lei e já não temos receio de encontrar os guardas-florestais."
A melhoria das condições de trabalho dos mandiranos rendeu à Cooperostra um prêmio na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+10), em Johannesburgo, África do Sul, em 2002. A entidade recebeu US$ 30 mil, dinheiro que foi utilizado para ampliar a estação depuradora. "A gente estava numa fase bastante difícil, e esse dinheiro veio na hora certa", afirma Chico.
Progresso sem destruição
Em Ivaporunduva, no município de Eldorado Paulista, preservação cultural, melhorias nas condições de vida da população e respeito à natureza andam juntos. Nesse local está a primeira comunidade do estado a ser reconhecida como descendente de quilombolas e ter o título de posse de suas terras. Dentre os plantadores de banana do bairro, reunidos em uma associação, 27 receberam do Instituto Biodinâmico (IBD) certificado de produção orgânica, o que, na prática, permite agregar maior valor aos cachos. "A gente não usa defensivo porque o veneno vai parar no rio e pode prejudicar as crianças, que gostam de brincar e nadar no verão", justifica Paulo Sílvio Pupo, membro da diretoria da associação.
A produção orgânica de banana é apenas uma das pontas do projeto de gestão ambiental participativa e de desenvolvimento econômico do Quilombo Ivaporunduva. Das fibras do tronco das bananeiras, os moradores fazem bolsas artesanais, montadas em teares de madeira. Um viveiro, localizado no centro da comunidade, também produz mudas de palmeira juçara. E, no alto de um morro, de onde é possível se deleitar com a visão do Ribeira deslizando em meio à floresta, foi construída uma pousada para abrigar alunos de faculdades e escolas que visitam a comunidade para aprender um pouco mais sobre a história do povo brasileiro. O próximo passo da associação será, com o apoio da Fundação Florestal, desenvolver o manejo de plantas medicinais da Mata Atlântica.
As comunidades quilombolas do vale do Ribeira surgiram em decorrência da mineração, atividade preponderante no século 17 na região, que utilizava trabalho escravo. Após a Abolição, os negros continuaram morando às margens do rio. Em Ivaporunduva, uma capela de paredes brancas e janelas azuis, construída à época do garimpo, funciona hoje como ponto de encontro para as discussões da comunidade. Geralmente, a cada três meses, uma reunião acontece para que problemas sejam debatidos e resolvidos. "Essa união já é antiga, vem desde os nossos antepassados. O que fizemos foi apenas colocar no papel", afirma Zé Rodrigues, coordenador da associação, com mandato até 2005.
Uma das questões que trazem apreensão a Ivaporunduva – e fazem a comunidade se unir ainda mais – é o plano de construção de quatro barragens no rio Ribeira, que alagarão uma área superior a 17 mil hectares, incluindo parques ecológicos e remanescentes de quilombos. O processo de licenciamento de uma delas, a Tijuco Alto, está em andamento – o das outras três está paralisado. "Nosso temor é que, com a construção de uma barragem, todas as outras também sejam feitas", diz Zé Rodrigues. Os estudos do impacto ambiental causado pelas obras não identificaram com precisão quais as conseqüências do represamento do rio, mais um motivo de preocupação para os quilombolas.
A história dos povoados e dos desafios enfrentados pelos ribeirinhos em busca de maior liberdade para extrair da Mata Atlântica meios de subsistência está descrita no livro Comunidades Tradicionais e Manejo de Recursos Naturais da Mata Atlântica, editado pela Universidade de São Paulo (USP), com base em um seminário realizado no município de Ilha Comprida, em 1999. O encontro permitiu que as iniciativas fossem mostradas lado a lado e, a partir da troca de experiências entre os moradores do vale, pudessem ser aperfeiçoadas.
Para o antropólogo Antonio Carlos Diegues, nascido em Iguape e diretor do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), da USP, todo esse trabalho prova que o vale do Ribeira caminha para mudar o quadro de pobreza que mancha esse paraíso ecológico. "Vejo diferenças entre o vale que conheci tempos atrás e o de hoje. Os problemas são basicamente os mesmos, mas a região não foi tomada de assalto por investidores, e ainda é possível planejar alternativas de desenvolvimento. Essa região sempre foi um cemitério de projetos, porque eram feitos de cima para baixo, sem que as necessidades das comunidades fossem levadas em conta", diz.
Para que o atual processo de melhoria das condições de vida dos povoados não termine sepultado como os planos anteriores, caiçaras e quilombolas tentam fazer com que as associações e cooperativas que montaram recebam o apoio decisivo de governantes e cientistas. Somente assim será possível a valorização de quem faz de panelas de barro, mudas de palmito, ostras e bananas armas eficientes na luta pela sobrevivência.
![]() | |