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Pobreza resignada

Postado em 31/10/2003


Rua principal da cidade / Foto: Henrique Pita

Manari, no sertão nordestino, sofre com falta de água e de sonhos

HENRIQUE PITA

Escondida no sertão do Moxotó, interior pernambucano, a 376 quilômetros do Recife, a cidade de Manari é um pequeno agrupamento de casas cercadas de terra seca, miséria e uma estranha atmosfera de resignação. Nas poucas ruas que separam as casinhas enfileiradas, grupos de homens jogam conversa fora, enquanto algumas crianças procuram se distrair disputando raras bicicletas. É comum ver cabritos sendo conduzidos para algum pasto remoto e de vez em quando um porco displicente desfila pela rua farejando um improvável resquício de alimento.

A cidade, de 13 mil habitantes, saiu do anonimato e ganhou as páginas dos jornais no início do ano, quando o novo "Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil", produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em associação com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Fundação João Pinheiro e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), classificou-a como o município com o menor IDH do Brasil (0,467). IDH é a sigla de Índice de Desenvolvimento Humano, que mede a situação da população com base em três parâmetros: nível de escolaridade, expectativa de vida e renda per capita. Para efeito de comparação, a cidade com melhor IDH do país é São Caetano, no ABC paulista, com 0,919.

Chegar a Manari não é fácil. Depois que se deixa o asfalto, são 28 quilômetros de estrada de terra, esburacada, cheia de pedras e poeira. Comenta-se que esse trecho não oferece segurança, já que alguns carros, forçados a trafegar em velocidade reduzida devido às condições do terreno, já sofreram assaltos. Alvos preferenciais são os que levam valores à prefeitura ou ao posto do Correio, onde o Bradesco mantém um banco postal, único local em que a população pode ter acesso a transações bancárias.

Para os bairros distantes e a zona rural, os caminhos são igualmente difíceis. Em época de seca, com muito pó e areia, é fácil um carro encalhar ali. Telefones celulares, nem pensar. Não funcionam por falta de antenas transmissoras. O jeito é utilizar os poucos orelhões públicos que a duras penas conseguem completar e manter uma ligação interurbana. Ou o telefone da prefeitura ou de algumas casas mais privilegiadas.

Bolsas

Sem opções de emprego, Manari depende exclusivamente das verbas públicas que recebe. Mensalmente, por exemplo, uma fila comprida aguarda atendimento junto a um pequeno posto da Caixa Econômica Federal, em que se distribuem as parcelas do Bolsa-Escola – programa do governo federal que destina R$ 25 por criança para a população carente. O benefício, entretanto, atende apenas parte da população: são cerca de 850 famílias e aproximadamente 1,5 mil crianças. Para receber o dinheiro a família precisa apresentar controle de freqüência escolar.

Outra fonte de renda é o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), igualmente federal. Em Manari, 465 crianças entre 7 e 15 anos são beneficiadas, mas o valor é modesto, entre R$ 25 e R$ 40 mensais para cada uma, desde que freqüente a escola. Os recursos são do Ministério da Assistência Social, com pequena colaboração do estado. Outro programa do governo é o Agente Jovem, voltado para adolescentes egressos do Peti. Mesmo assim, essas políticas públicas não impedem o trabalho desses menores, pois em geral as famílias não podem dispensar tal mão-de-obra para reforçar o orçamento doméstico.

O analfabetismo em Pernambuco, segundo relatório da Unicef de 2002, chegou a 11,5% entre crianças de 12 a 17 anos (a média nacional é de 5,6%). Os dados revelam ainda que Manari, Águas Belas, Buíque e Tupanatinga, cidades vizinhas, estão entre os 50 municípios com os piores indicadores educacionais do país. Os valores pagos pelas diversas bolsas são evidentemente muito disputados, pois tornaram-se essenciais para a sobrevivência de inúmeras famílias da região. Em muitos casos, são a única fonte de renda.

Outras pessoas recebem a aposentadoria rural, que no país todo atende 6,8 milhões de trabalhadores. Trata-se de um dos mais importantes programas sociais instituídos no Brasil, por seu alcance.

Representantes do Sindicato Rural de Manari informam, entretanto, que a verba que a cidade recebe não é pequena. Embora sem acesso detalhado às informações, eles calculam que entram nos cofres da prefeitura, mensalmente, cerca de R$ 350 mil, ou R$ 4,2 milhões por ano, cuja aplicação não é conhecida da população.

Os líderes sindicais informam ainda, o que foi constatado pela reportagem, que a prefeitura se tornou um reduto familiar. Todos os cargos, ou a maioria absoluta deles, são ocupados por parentes do prefeito. Apesar disso, ele é benquisto na cidade, onde é chamado de Santo Vieira. Seu nome verdadeiro é José Vieira Pereira, e integra o PFL. O apelido foi conquistado em troca dos favores prestados aos munícipes, que o elegeram maciçamente para o segundo mandato.

Caçando desnutridos

O município é jovem. Há sete anos era distrito de Inajá. Com a emancipação veio a cota do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e outras verbas federais e estaduais. Segundo dados do Ministério da Fazenda, somente o FPM destinou R$ 2,3 milhões à cidade no ano 2002, uma receita mensal de R$ 199 mil. O Fundef, por sua vez, enviou R$ 1,7 milhão no mesmo período.

A população entretanto não tem controle algum sobre os destinos dos recursos. Não há nenhuma representação popular, como um conselho tutelar, que o prefeito se mostrou disposto a criar. Trata-se de um órgão voltado para a defesa dos direitos da criança e do adolescente. No dia 17 de julho, aliás, a prefeitura de Manari, juntamente com outras da região, foi intimada pelo Ministério Público de Pernambuco a instalar seu conselho em 60 dias, sob pena de pagamento de multa. Até o início de outubro tal intimação não havia surtido efeito, e o governo municipal estava enfrentando o que oficialmente se chama ajustamento de conduta, ou seja, a fixação de um prazo final para que se cumpra a lei. Manari, aliás, não está sozinha. Sua vizinha Inajá e o município de Itacuruba ignoraram igualmente a intimação.

A ausência desse conselho é sentida também pela Pastoral da Criança, entidade que está em Manari há menos de um ano. É dirigida por duas freiras da ordem Jesus na Eucaristia, as irmãs Liduína e Mariser, que percorrem as casas do município "caçando menino" desnutrido. "Nunca vi tanta criança igual aqui, tudo pequenininho", diz a irmã Liduína. Também não viu em lugar algum tanta criança mal alimentada, assim como se surpreendeu com o nível de analfabetismo, a falta de higiene e o alcoolismo. "Há muita gente que bebe no meio da sujeira, entre as crianças", resume ela.

Por enquanto as irmãs cadastraram 415 crianças, mas têm dificuldades para atingir as regiões mais remotas, pelo menos enquanto não chegar o veículo doado por entidades religiosas da Alemanha. Seu trabalho é prejudicado também pela falta de água, pois não têm como ensinar às famílias os cuidados relativos à higiene, que eliminariam grande parte das doenças. E são poucos os recursos para a multimistura, aquele preparado que consiste em farelo de arroz e trigo, pó feito de folhas diversas e casca de ovo moída, de excelente teor alimentício. O problema é que as famílias, conforme informa a irmã Liduína, não conseguem reservar a mistura para as crianças menores, já que todos a consomem logo no primeiro dia.

Outro problema que existe em Manari, embora não seja aparente, é a prostituição infantil. Algumas pessoas informaram que havia dois bares que ofereciam espaço, abertamente, para essa prática, mas uma denúncia e a ação policial puseram fim à atividade. Agora, entretanto, tudo acontece às escondidas. Pior: suspeita-se que as próprias famílias "explorem" suas meninas, como fonte de renda.

Feira e festa

Às quintas-feiras, Manari se transforma. Logo às 5 horas da manhã, um carro de som desperta a população, enquanto camionetes, algumas motos e cavalos arreados trazem da roça boa parte dos habitantes que vivem na zona rural. São cerca de 9 mil, segundo dados do IBGE (ano 2000), enquanto moram na cidade outras 4 mil almas.

Nesse dia acontece na rua principal o único evento semanal que poderia ser caracterizado como um misto de lazer, feira livre e ponto de encontro, para rever amigos, realizar algumas compras ou simplesmente beber cachaça. O alcoolismo, aliás, é apontado não somente pelas irmãs da Pastoral, mas também por assistentes sociais e representantes da sociedade local como um grande problema da cidade. É fruto da absoluta falta de emprego na região, que neste inverno teve como agente complicador uma seca impiedosa.

Na véspera desse dia agitado, consta que o prefeito distribui pequenas dádivas em dinheiro – R$ 15 a R$ 20 por família – para que os pobres eleitores possam fazer compras. Um benefício, entretanto, que não favorece a todos. Uma moradora afirmou à reportagem que na última eleição não votou no prefeito e por causa disso perdeu até o direito que tinha à bolsa-escola. Ela jura que outros membros da família votaram nele, mas mesmo assim as 13 pessoas de sua casa ficaram sem o benefício. Por sorte, há quem receba a aposentadoria rural, o que ajuda a comprar comida e água para uma cisterna, que a cada 30 dias têm de encher pagando R$ 70 a um caminhão-pipa particular.

Sim, porque dois caminhões-pipa são da prefeitura, ou melhor, do prefeito, que os arrenda ao estado para transportar água para a cidade. O poço fica a 14 quilômetros de distância, numa área cujo subsolo é mais favorecido pela natureza.

Água, aliás, é o grande problema de Manari, como de todo o nordeste. Na região em que fica a cidade, e que abrange vários outros municípios, como Águas Belas, Inajá, Ibimirim, Sertânia, Custódia e Betânia, a natureza não foi generosa. O subsolo é formado de rocha cristalina, nome que soa simpático, mas esconde um material ingrato. Trata-se de uma rocha maciça, desprovida dos poros em que a água poderia se acumular. Ou seja, ali não existe lençol freático, mas apenas uma camada relativamente rasa entre a rocha e o nível do solo. A pouca água que pode ser encontrada nesse local é imprópria para consumo, já que contém alto teor de sais, resultado da decomposição da rocha. Calcula-se que 80% do semi-árido brasileiro repousa sobre embasamento cristalino, o que explica em grande parte as dificuldades de sobrevivência nessa área.

A saída é aproveitar a água da chuva, quando chove. Neste ano, por exemplo, Manari não mereceu as bênçãos de São Pedro, e a safra de milho, algodão e feijão foi inteiramente perdida, semeando desespero na roça.

A principal barragem da cidade encontra-se completamente abandonada no meio dos pastos. Os pequenos açudes estão praticamente secos, e as cisternas somente recebem água dos caminhões-pipa. Em todo o município, incluindo a área rural, há cerca de 260 delas, construídas por parcerias entre ONGs, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o sindicato rural e a prefeitura. São recipientes de cimento semi-enterrados no chão, totalmente fechados, com exceção de uma abertura estreita por onde a água entra, vinda da chuva ou dos caminhões-pipa, e sai nos baldes ou latas para uso diário. O fechamento evita a evaporação e protege o líquido contra impurezas. Sua capacidade é de 8 mil a 10 mil litros e o custo de construção fica entre R$ 1.200 e R$ 1.600.

Quem não tem cisterna – a maioria da população – enfrenta a rotina diária de buscar água, quase sempre em latas penduradas em um cabo de madeira nos ombros, ou sobre a cabeça, como preferem as mulheres. Dessa tarefa ninguém escapa, nem as crianças, e é comum vê-las nas ruas, vergadas sob o peso de duas latas. Algumas famílias usam pequenas carroças puxadas por um jegue, para carregar tambores de 200 litros.

O poço que alimenta os caminhões-pipa tem 170 metros de profundidade. A população aguarda a construção de uma adutora para levar a água até o centro da cidade, onde um reservatório com capacidade para 200 mil litros, financiado pelo Ministério da Saúde, eleva-se como um monumental elefante branco de barriga vazia. O projeto da adutora está pronto, aprovado e com verba empenhada, mas alega-se que não há recursos. Na verdade, a iniciativa foi prejudicada pela troca de governo federal do início de 2003. A nova administração o deixou engavetado ninguém sabe até quando. "Estamos dependendo do ministro da Saúde", informa Jurandir de Araújo Oliveira, que já foi vereador em Manari e é diretor da Federação de Agricultura do Estado de Pernambuco.

Dificuldades

Manari conta com um hospital recém-inaugurado, construído com recursos do estado e do Ministério da Saúde. É um edifício simples de paredes brancas, com enfermarias masculina, feminina, infantil e sala de parto. Os atendentes não têm formação técnica de enfermagem e faltam equipamentos. O médico está presente dois dias por semana e, em sua ausência, os atendimentos são feitos seguindo orientações transmitidas por telefone. Casos mais graves são encaminhados para a cidade de Arcoverde, distante 250 quilômetros, onde fica o médico. Nos fundos, uma cisterna fornece água, bombeada para uma caixa-d´água no telhado do edifício.

A cidade possui uma escola estadual e 63 municipais, todas voltadas para o ensino fundamental. Para continuar os estudos os alunos têm de se deslocar para a vizinha Inajá. A maioria das escolas de Manari consiste apenas em pequenas salas, espalhadas pela zona rural, sem janelas, com carteiras em mau estado. O transporte é feito em dois ônibus, um caminhão do tipo pau-de-arara e uma picape adaptada.

As salas de aula abrigam crianças de várias idades, que cursam desde a primeira até a quarta série. Mas o ensino deixa a desejar. A reportagem pediu a uma criança da terceira série que lesse o texto que tinha escrito no caderno, com boa caligrafia. Surpreendentemente, o menino confessou que não sabia ler. Apenas copiava o que a professora escrevia.

As escolas não têm biblioteca. Aliás, não há nenhuma na cidade. Essa é uma queixa do professor Amauri Honório da Silva, diretor da única escola estadual do município. Sem livros não há conhecimento, nem perspectivas.

Em contraponto a essa pobreza, a principal escola municipal exibe, numa sala com ar condicionado, um bem-montado telecentro, com dez microcomputadores de última geração ligados à Internet. É um projeto da empresa Telemar, em parceria com a Escola do Futuro da Universidade de São Paulo (USP). Um professor de informática, capacitado pela USP, atende durante três períodos a 70 treinandos, entre alunos e professores. O problema, segundo o profissional, é o analfabetismo funcional das pessoas, que não sabem o que fazer com as maravilhas da tecnologia e pouco percebem o valor e a vastidão dos conhecimentos disponíveis na Internet.

Cegueira do entendimento

Manari tem também um programa de alfabetização de adultos, organizado pelo Alfabetização Solidária. A idéia é montar parcerias, mobilizando empresas, órgãos das prefeituras e membros da comunidade. Neste ano, Manari foi adotada pelo Grupo Santander Banespa, de São Paulo. Os alfabetizadores foram capacitados no campus da Universidade de Pernambuco, em Garanhuns. Eles recebem R$ 120 por mês para dar três horas de aula, durante cinco dias da semana.

Mas é difícil manter as salas cheias. O trabalho na roça é exaustivo e no final do dia falta ânimo ou estímulo para estudar. A reportagem ouviu seguidas reclamações contra a falta de merenda, um incentivo importante. Alguns simplesmente têm vergonha de freqüentar salas de aula depois de adultos.

O programa do Alfabetização tem duração restrita. São apenas cinco meses, período muito curto para assimilar o mínimo de conhecimento necessário e, o mais difícil, adquirir controle motor para escrever.

Os alfabetizadores de Manari são pessoas simples, algumas das quais ainda cursam o ensino fundamental. À primeira vista, parece que não houve rigor na seleção, ou que não existe na cidade pessoal mais qualificado. Mesmo assim, a missão que lhes cabe é das mais nobres: oferecer a uma parcela da população marginalizada a oportunidade de se abrir para novos mundos. Em Manari, entretanto, como de resto em praticamente todas as regiões recônditas do país, deixar a população em condições de ler e escrever tem outro propósito. Um dos alfabetizadores confessou, publicamente, que encara como tarefa principal em seu trabalho ensinar as pessoas a, primeiro, assinar o nome e, depois, conhecer os números. Duas providências necessárias para que o cidadão se torne um eleitor e vote de acordo com as instruções da liderança oficial.

Há outras dificuldades no caminho da alfabetização. É comum encontrar escolas danificadas por pessoas descontentes. Numa das salas visitadas pela reportagem a porta teve de ser arrombada para que houvesse aula, pois o cadeado que a fechava fora inutilizado. Talvez por algum proprietário das terras vizinhas que tenha desavença com o prefeito.

Nessa sala encontramos Maria José, com seu 13º filho na barriga, freqüentando o curso. Orgulhosa, diz que todas as suas crianças estão na escola. "Eu ajeito um filho prum canto, outro pra outro e tiro um tempinho pra estudar", diz ela. Falta somente o marido, que não estuda depois de velho porque "começa a doer a cabeça".

Heraldo José dos Santos, porém, pai de oito filhos, os quatro mais velhos na escola, enfrenta o curso "sem aperreio". E oferece, em sua simplicidade, uma bela definição para o analfabetismo: "Quem não sabe ler é assim como um cego. Cego no entendimento".

Assim, entre a cegueira do analfabetismo, a crônica falta de água e uma luta diária contra sérias dificuldades, os habitantes de Manari sobrevivem com resignação. Soluções para tantos problemas dependem da boa vontade dos dirigentes políticos, mas as principais decisões são sempre adiadas. A população, indefesa, contenta-se com a esperança e as migalhas das verbas federais.

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