Fechar X

Entrevista
Ferreira Gullar

Postado em 01/10/2003

O poeta explica que o indivíduo é sua própria invenção e que a arte de qualidade sempre é atual: "O homem não quer o passado, e para isso o transforma em presente"

Aos 73 anos, Ferreira Gullar atingiu o estágio reservado aos grandes autores: seus versos são lidos nas escolas, são estudados nas universidades e são admirados por um imenso público, não apenas no Brasil, mas em vários outros países. Dois de seus livros - A Luta Corporal e Poema Sujo - constam como alguns dos mais importantes entre os trabalhos poéticos publicados nas últimas décadas.
Mas Gullar, como se isso não bastasse, não é somente um poeta: é um intelectual que se envolveu em alguns dos mais importantes movimentos artísticos das últimas cinco décadas. Está nas discussões iniciais do concretismo, na fundação do neoconcretismo poético e das artes plásticas. Transforma-se num dos mais importantes críticos de artes e incentivador de nomes como Lygia Clark, Helio Oiticica e Amílcar de Castro. Participa da renovação da imprensa brasileira detonada a partir do suplemento cultural do Jornal do Brasil. E torna-se ainda uma referência na luta contra a ditadura militar instalada em 1964. Por seu engajamento é forçado a um exílio vivido entre Santiago e Buenos Aires.
Nesta entrevista exclusiva, realizada após sua participação no projeto Sala da Memória, do Sesc Pinheiros, Ferreira Gullar realiza uma reflexão sobre sua obra e sobre alguns movimentos culturais brasileiros. A seguir os principais trechos da conversa:


O senhor disse durante a palestra que o homem vive no mundo da cultura e não no mundo da natureza, que o homem inventa a vida. Como assim?
Pois é, ele se inventa. O homem é uma invenção do homem. Quando nascemos, não somos ninguém, não temos nome, não sabemos nada. O que a escola nos ensina, o que o bem social nos ensina, o que nossa experiência nos ensina é que faz nos inventarmos como seres humanos. Antes disso, não somos nada. Não significa, no entanto, que nos inventamos a partir do nada. Inventamo-nos a partir de qualidades que já possuímos. Por exemplo, eu não poderia crescer alpinista, pois não tenho músculo e morro de medo de altura. Em função de alguns elementos, vamos nos inventando. A civilização egípcia, por exemplo, é inventada sobre determinados valores. Eles tinham características que nós já não temos, acreditavam em coisas em que já não acreditamos, mas tudo aquilo constituía o mundo e os valores pelos quais eles viveram, lutaram, se apaixonaram, se mataram. Tudo em função daquilo. A civilização grega já é outra invenção. Não sou a primeira pessoa a dizer que o homem é uma invenção de si próprio.

"Quando Marx diz que o homem é produto da História, das contradições, de seu trabalho, e afirma ainda que Deus não existe, ele está dizendo que o homem é uma invenção de si."

Quando Freud estrutura a psicanálise, começa a chamar atenção para coisas que as pessoas não percebiam antes. Ele também estava inventando?
Claro. Veja bem, não existem o id, o ego e o superego. Ele inventou uma concepção e organizou a subjetividade do homem dentro desses conceitos. Mas faço questão de dizer que não se trata de uma invenção gratuita. A invenção gratuita é do louco. Só que, como ele não parte de elementos objetivos, reais, sua invenção é frágil, não se mantém. E ele sofre terrivelmente com isso porque sente que sua invenção não se sustenta e que as outras pessoas não a aceitam porque não há essa relação com o concreto. Para durar, é fundamental que a invenção tenha essa relação com o real. Dependendo de como funciona essa relação, as invenções têm mais ou menos duração.

Onde ficam a poesia e as outras artes dentro dessa concepção?
A arte tem uma função muito importante. Por não se basear em elementos conceituais, por ser intuída, imaginada, ela fortalece o vínculo entre o real e o imaginário e a ciência, o imaginário e a filosofia. Dá uma carnadura mais concreta a essa relação porque não é abstrata. É mais afeto, mais emoção. Complementa a filosofia e a ciência para que não haja só teoria ou só prática. O ser humano não é só feito de conceito e de ciência. Essa outra parte é complementada pela arte.

O senhor acha que o homem acaba inventando também a sua memória?
Não inventa a memória, mas a transforma em outra coisa. A memória acaba virando vida presente. Deixa de ser passado. O homem não quer o passado, e para isso o transforma em presente. Picasso diz que a arte é sempre atual. Isso é genial. Claro! Obras de arte te emocionam agora, como emocionaram as pessoas no passado. A arte só tem de passado o fato de ter sido feita antes. Um dos milagres da arte é fazer com que o passado se torne presente. O passado "passado" é morte. Quando eu pego as bananas da quitanda e as transformo em poesia, estou inserindo-as na nossa vida atual. Elas não pertencem à esfera da quitanda, transformam-se além do tempo.

Durante a palestra o senhor falou da sua viagem feita de São Luís do Maranhão a Teresina, no Piauí, e disse que conheceu Trenzinho Caipira, de Villa Lobos, e tentou colocar a letra, mas não conseguiu. Daí, em Buenos Aires, a questão volta ao contrário...
Antes, ao ouvir a música, eu me lembrei da minha infância. Agora, em Buenos Aires, ao falar da minha infância, eu me lembrei da música. Ao ouvir Villa Lobos, automaticamente remeto à minha infância. Ficou dentro de mim. Então, quando eu vou falar de uma, acabo lembrando da outra.

O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é arte. No entanto, hoje em dia as pessoas teorizam tanto a arte...
Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Coloca escrito na obra "Urinóis - cocô artificial com planta natural". É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artificiais? Isso é muito pobre. Se ele fizesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a década de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira também, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa depois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os diretores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado disso é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multidões de pessoas, assim como o Museu Picasso.

E quanto aos críticos que escrevem páginas e páginas sobre essa arte conceitual? Às vezes, ao terminarmos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não entendemos nada.
Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lerner fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai dizer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as maletas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa besteirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espanhol. Ou seja, ninguém conseguia entrar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a arte, são pessoas que não têm o que fazer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se negasse o pedido, ela não seria uma instituição de vanguarda, seria conservadora, e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição.

Por que os críticos têm tanta raiva da pintura no Brasil?
Acho que foi um processo que começou com as vanguardas do início do século XX e cujo elemento principal é a racionalidade se sobrepondo à fantasia e à criatividade. Isso nasce de uma visão equivocada de que a ciência é superior à intuição e à imaginação. Trata-se de uma característica moderna. A ciência é produto da nova idade, logo, tudo o mais é passado e retrógrado. Emoção e intuição são velharias. Só que, ao fazer isso, a arte caminhou para a autodestruição, pois a imaginação é a matéria-prima da arte. Por isso a arte plástica acabou, pela exclusão desses elementos. A poesia, o cinema, o teatro e a música não acabaram. A literatura não acabou porque não seguiu Finnegans Wake, senão teria acabado. Que romance teria sido escrito se a partir de Finnegans Wake fosse feito como se fez nas artes plásticas, em que Duchamp declarou "daqui não se volta, vamos adiante?" Simplesmente não haveria toda a obra de Jorge Luis Borges, de Julio Cortázar, de Gabriel Garcia Marquez, de Hemingway... Não haveria os romances modernos italianos, ingleses, franceses, Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos. Vanguarda houve em todas as áreas das artes. Cheguei a ouvir concerto aqui em São Paulo que era uma enceradeira e um liquidificador. Mas não preponderou. O único setor que seguiu isso foram as artes plásticas. É um enigma, não sei explicar o motivo. Além de tudo, ainda se conta com uma instituição como a Bienal que mantém e financia isso. As exposições estão desertas. Só vão crianças, que são levadas compulsoriamente. A última Bienal foi um fracasso. Todas os vídeos eram chatérrimos e cheios de bobagens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse cara! Vídeo bom é aquele que narra alguma coisa.

O senhor já disse que, quando foi para o exílio, não levou nenhum livro. Só depois, em Buenos Aires, sua esposa conseguiu mandar alguns. Como foi esse período?
Ela só conseguiu me enviar os livros quando eu já estava em Buenos Aires, que já era mais perto daqui. Mas quando saí para o exílio, fui clandestino, driblando a polícia, não havia como levar muita coisa. Levei apenas uma maleta com poucas roupas.

O senhor se lembra qual livro mandou pedir?
Um deles foi Eu, de Augusto dos Anjos, pois estava escrevendo um ensaio sobre ele chamado Vida e Morte Nordestina. O ensaio tinha sido pedido pelo Gasparian e estimulado pelo Darcy Ribeiro.

Lembro-me de um texto do Mário Faustino que dizia que o senhor saiu de São Luís do Maranhão e chegou no Rio sabendo tudo de poesia e de artes plásticas.
O Maranhão era considerado a Atenas brasileira pelo fato de lá ter sido escrita, por Sotero dos Reis, a primeira gramática da língua portuguesa. As primeiras traduções de clássicos como Eneida e Ilíada também foram feitas lá. O primeiro estudioso da sociologia moderna, João Francisco Lisboa, é de lá. O grande poeta nacional, Gonçalves Dias, que ao mesmo tempo é conhecedor profundo da língua e da literatura portuguesas e um estudioso da civilização indígena brasileira, também é de lá. Ou seja, há um mundo cultural que trago comigo. Como disse anteriormente, nos inventamos a partir do universo que encontramos quando nascemos. O universo cultural, tal como o que encontrei, evidentemente cria uma perspectiva diferente da de uma pessoa que nasce em um lugar onde isso não existe. O mundo é inventado, mas quando eu cheguei já estava semipronto. Invento sobre o que encontro. A presença dessa cultura na história do Maranhão até hoje influencia as novas gerações. A cidade de São Luís continua a ser uma terra de poetas, de pessoas estudiosas e apaixonadas pela literatura, especificamente pela poesia. Quando saí de lá, eu não tinha o conhecimento sobre arte que adquiri um tempo depois. Um dos motivos de ter saído de lá foi exatamente esse. Eu era apaixonado pelas artes plásticas, e lá não havia praticamente nada de artes plásticas. Não tinha museu, salão, galeria de arte, não havia nada. Sequer havia livro sobre arte nas livrarias. O primeiro livro de arte que li era do pai de um amigo meu. A Lucy Teixeira, uma amiga minha que vivia no Rio, era também amiga do Mário Pedrosa e levou para mim em São Luís a tese que ele tinha escrito sobre a "natureza afetiva da forma na obra de arte", uma tese fundada na teoria da Gestalt. Foi a primeira vez que li um texto sobre arte contemporânea a partir de uma visão moderna. Quando terminei de ler, pensei: "vou embora daqui, quero participar desse mundo". Vim para o Rio em 1951 e conheci o Mário (Pedrosa), que me deu livros e mostrou uma infinidade de coisas. Nesse mesmo ano ocorreu ainda a primeira Bienal de São Paulo. Fui com o Mário e alguns amigos. Ele me ensinou a olhar a arte. Foi meu mestre. É um ser humano maravilhoso, talentoso, brilhante. Não poderia ter tido mestre melhor. Sempre digo isso, pois no Brasil não se costuma dizer que se aprendeu com outra pessoa. Parece que aqui todo mundo nasce sabendo. Costumo brincar sobre isso com uma história que aconteceu na época em que eu trabalhava na Manchete. Naquele tempo havia no Rio um bandido chamado Cara de Cavalo. O Armando Nogueira, que era chefe de reportagem da Manchete, foi entrevistá-lo e perguntou se ele havia aprendido táticas de assalto assistindo aos filmes americanos. O cara ficou danado e respondeu que não tinha aprendido nada com ninguém. O Armando colocou no título da matéria: "Cara de Cavalo: eu inventei o assalto à mão armada". Costumo dizer que o pessoal aqui é que nem o Cara de Cavalo. Todo mundo acha que inventou o assalto à mão armada. Eu não inventei, aprendi com o Mário, com Manuel Bandeira, Rimbaud e muitas outras pessoas. Nunca pretendi fazer uma poesia que fosse obra absolutamente criada por mim, como se nunca tivesse havido poesia. Por isso mesmo meu último livro chama-se Muitas Vozes. A riqueza maior consiste em ter muita gente falando nela e não só eu. Ao lermos, assimilamos as coisas. Somos constituídos pelo que lemos e pelo que vivemos. A literatura é mais rica quanto mais vozes existirem dentro dela. Claro que a voz que não combina com a sua não entra. Influência é como transfusão de sangue. Se não é compatível, mata o cara. Não dá para ser influenciado por alguém que não tem nada a ver contigo. Mas a minha poesia é uma tessitura do que aprendi.

O senhor continua escrevendo poesia com a mesma assiduidade?
Nunca escrevi com assiduidade. Continuo escrevendo com a mesma dificuldade de sempre. Também nunca escrevi muito. Minha obra completa tem quinhentas páginas. Ao todo, são cinqüenta anos, o que dá dez páginas por ano. Por princípio, não me sinto obrigado a escrever poesia. Se eu ficar um ano sem escrever, não tem problema. Ou a poesia surge de fatores que eu não governo ou não surge. Mas se surge e começo a escrever, depois sinto que não dá, paro, rasgo e jogo fora. Não escrevo um poema ruim, a não ser que meu senso crítico falhe. Se o poema está nascendo errado, eu torço o pescoço dele. Escrever para mim é selecionar. Depois que escrevi Muitas Vozes, fiquei dois anos sem escrever nada. Sempre que termino um livro tenho a impressão de que não vou mais escrever. Já cheguei até a dizer para meus amigos que nunca mais ia escrever. Sem que eu soubesse, pouco a pouco foi renascendo e voltei a escrever. Descobri que tenho essa sensação porque a minha poesia se orienta por veios. Eu descubro um veio e o exploro até ele acabar. Aí, quando ele acaba, tenho a sensação de que é o fim. Fico sem escrever até que surja outro veio. Cada livro meu é completamente diferente. Tem uma unidade porque sou eu quem está por trás de todos, mas todos têm caminhos diferentes que exploro até o fim. Aquilo vai até determinado ponto, e de repente pára. Tenho a sensação de que acabou, um vazio completo, me dá até um certo asco. Mas como já sei que esse processo existe, sei que não acabou, embora não tenha certeza, pois tenho 73 anos e não posso ter certeza de que ainda vai surgir. A minha poesia se alimenta do que eu descubro na vida. Não tem nenhuma teoria, nenhum plano. É a descoberta do dia-a-dia, do viver. Só que já vivi tanto que me pergunto às vezes se ainda tenho o que descobrir no mundo. De repente eu descubro e isso vira poesia. Publiquei Muitas Vozes em 1999 e levei doze anos para reunir aquela quantidade de poemas. Já aconteceu uma vez de eu ficar meses mergulhado em um poema. Foi maravilhoso. Quem me dera poder viver assim mergulhado em poesia. Parecia que tudo era poesia. Pensava que eu era o rei Midas da poesia, pois tudo que tocava virava poesia. Depende muito do estado de espírito. Às vezes a mesma coisa tem poesia em um dia e no outro não. Acredito que pelo menos mais um livro eu vou publicar. Já faz quatro anos que publiquei o último. Mais uns quatro para terminar o livro e eu terei 77 anos. Vamos ver se dá para publicar.

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)