Postado em 01/06/2003
Mesmo chamando a atenção para qualidade técnica da televisão brasileira, a crítica especializada quase sempre mostra-se preocupada com o conteúdo das programações. Violência explícita e apologias de discutível conteúdo moral são alguns dos pontos levantados nas análises. Como lembram a crítica Leila Reis e a presidenta da ONG TVER, Rachel Moreno - em artigos publicados nesta seção - a TV é uma concessão pública e deveria ter compromisso firmado, antes de tudo, com a sociedade em geral. No entanto, o que se vê são "iates mostrados como se fossem objetos do cotidiano", salienta em seu texto Jorge da Cunha Lima, da TV Cultura, e o telejornalismo está entre os sacrificados nessa crise de qualidade - segundo análise do professor Laurindo Lalo Leal Filho. Especialistas mostram por que essa discussão é séria e não pode ser encarada apenas como mais um modismo, pronto a ser substituído ao sabor dos números do Ibope.
Jorge da Cunha Lima
é diretor presidente da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura)
Essa história de baixaria na televisão, cujo conceito aprofundado é a submissão incondicional da programação às exigências da audiência, é um dos fatores que me inspira dirigir a TV Cultura, ganhando pouco, remando contra a maré e colecionando algumas incompreensões, às quais não estava acostumado em minha vida pública.
Esse mundo do mercado que substitui a reflexão pelo espetáculo, o paladar pela gula, a vibração pela histeria, a paz pela violência, o gosto pela moda, o ser pelo possuir produziu em todas as camadas da sociedade desejos tão inatingíveis quanto inadequados. Nas mais modestas barrancas de algum rio brasileiro, o pescador humilde, quando volta ao barraco com televisão, contempla iates, vinhos, comidas e Mercedes como se esses fossem os objetos do cotidiano. São os objetos do desejo, o elemento mais metafísico da globalização.
Não podemos ser farisaicos nem indiferentes diante da baixa qualidade de programação que se tenta impor como exigência inexorável da sobrevivência dos meios de comunicação de massa, que vivem uma profunda crise financeira.
Televisão, pública ou comercial, é concessão do Estado, para, segundo a Constituição, promover os valores da família e da sociedade. Isso não está acontecendo. O que a televisão faz é substituir os valores da família pelos valores da tribo confinada. Os valores da sociedade pelos modelos prêt-à-porter. E o homem começa a vagar por aí, mais consumidor que cidadão.
Por essas razões a programação da TV Cultura é tão importante. Isso de dedicar um enorme tempo da sua grade à programação infantil é um sinal de respeito à inteligência da criança, em fase de aquisição de valores e conhecimentos. Até a reprise tem razão de ser, porque as gerações se sucedem rapidamente e o tempo da infância dura muito pouco. Além do quê, a repetição é um elemento pedagógico da compreensão para menores de sete anos.
A programação noturna da Cultura é um problema mais complexo. Optamos pela informação, a que denominamos jornalismo público. Fazemos o único jornal cultural diário da televisão, que é o Metrópolis. Com o Diário Paulista, buscamos as histórias do cotidiano e a revelação do interior de São Paulo, que é o "país" mais desenvolvido do Terceiro Mundo. O Jornal da Cultura, cuja credibilidade é reconhecida por amplos setores da sociedade, busca substituir o espetáculo da notícia pela compreensão da notícia, o que constitui o princípio básico do jornalismo público.
Nesse conceito integrador da grade, o mais difícil é produzir para o adolescente. Ele quer esporte, emoção, amor, e quer saber como vai ser a vida, a sua vida, na sociedade. O melhor instrumento é a dramaturgia, mas também o mais caro. Uma dramaturgia jovem é o que falta na televisão brasileira. Vamos tentar isso com o Galera, que se encontra em fase de produção. E a educação, agora que se delineia um universo de interação, certamente vai ser o filho predileto da convergência tecnológica. Estamos fazendo o vestibulando digital, transformando os Grandes Cursos Cultura em programas de televisão e Internet e pensamos, a partir de um projeto de João Russo, em estudar a possibilidade de um supletivo digital. Julgamos que a melhor convivência entre cinema e televisão se faz através do documentário. Por isso, juntamente com dezenas de produtores independentes, estamos produzindo cerca de 70 documentários por ano.
Tudo isso levou-nos também a conceber o Domingo Melhor, uma resposta inteligente para as programações e ouvintes dos domingos, o dia mais emblemático da baixaria.
Portanto, não há apenas uma luz no fim do túnel; há um túnel que pode nos levar a um horizonte televisivo de qualidade. Apesar de todas as dificuldades, isso está acontecendo na TV Cultura.
Rachel Moreno
é presidente da ONG TVER
Hoje, quem lê jornal e tem acesso à Internet já consegue saber que pode fazer mais do que agüentar a baixaria na TV. E que tem direito a uma programação variada e de qualidade, principalmente na medida em que a televisão, como concessão pública que é, tem o dever de atender aos interesses da sociedade - em nome de quem recebeu esta concessão - e não apenas no interesse dos anunciantes ou da programação fácil e apelativa.
O TVER tem recebido uma série de críticas, comentários, sugestões, através de seu site (www.tver. org.br) e dos contatos com seus participantes. É a voz dos telespectadores, professores, jornalistas, cientistas sociais, da população.
As mensagens têm conteúdo semelhante: parabenizam por finalmente oferecer uma forma de sair do sofá e reagir. Sugerem, comentam, discutem, oferecem suas reflexões e seu trabalho, convidam-nos a palestrar, enfim, propõem, agem.
Mais recentemente, uma campanha lançada pela Câmara Federal, de iniciativa do deputado Orlando Fantazzini, visa sensibilizar os anunciantes - Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania. Pretende mexer num órgão sensível das emissoras - o bolso - visando o autocontrole da qualidade da programação.
Construiu-se um site (www.eticanatv.org.br) e formou-se um fórum de diversas entidades, entre as quais está o TVER.
A campanha tem traçado e divulgado um escore, classificando os programas que mais queixas têm recebido. Além disso, os dez programas mais apontados têm recebido um parecer dos participantes e têm tido o devido encaminhamento - para a emissora, para a imprensa, para os órgãos jurídicos.
Isto porque "baixaria" - qualquer transgressão ou desrespeito aos direitos humanos - é indefensável e passível de penalidades.
A simpatia e entusiasmo com que tem sido recebida essa campanha denota o interesse e a falta que ela fazia.
Hoje, cada vez mais telespectadores levantam do sofá - e tomam uma atitude ativa de protesto, de denúncia, de melhoria.
Aos poucos chegaremos juntos no objetivo do TVER:
o quando todos se conscientizarem de que a TV é uma concessão pública, e não um bem privado, que nos brinda gentilmente com a sua programação;
o quando perceberem que as emissoras têm deveres a cumprir, entre os quais o de trabalhar pelo crescimento cultural da população e o de oferecer alternativas na programação;
o quando entenderem que a concessão de uma emissora não significa que ela tem o direito de produzir absolutamente toda a programação, fechando a via de comunicação social aos demais produtores;
o quando for revista a política de concessão de TV, de modo a torná-la absolutamente pública e transparente, exigindo que os candidatos apresentem os seus planos, carga horária e programação, de modo a serem penalizados quando não cumprirem o prometido;
o quando tivermos um controle social efetivo e representativo da sociedade civil desta que é uma concessão social;
o quando os telespectadores se derem conta de que têm direito não só ao lazer, cultura e informação de qualidade, como também o direito de não serem meros receptáculos desta comunicação, podendo ser os emissores desta comunicação de duas vias.
O caminho é longo, mas o telespectador já começa a sentir a felicidade de levantar do sofá e dar os primeiros passos frente a este aparelho que, até então, mais o narcotiza do que respeita...
Leila Reis
é jornalista e crítica de TV do jornal O Estado de S. Paulo
Dizer que a qualidade da programação da TV precisa melhorar tornou-se lugar-comum. Objeto de desejo e ódio do brasileiro, a TV entra na berlinda ciclicamente e divide opiniões. Temos uma das melhores TVs do mundo, dizem os que a fazem. Temos a pior, rebate a fatia mais crítica da sociedade. Para comprovar a sua tese, cada segmento aponta aqui e ali os exemplos que mais lhes convêm.
O fato é que existem coisas boas e ruins na TV. Não se pode ser maniqueísta em relação a um veículo tão amplo, que funciona 24 horas por dia.
Não se pode ser, no entanto, muito condescendente com a televisão que entra na casa de mais de 90% da população, tornando-se a única janela para o mundo para brasileiros de lugares longínquos e isolados.
Não se pode esquecer também que a TV é uma concessão pública que, na Constituição, tem a missão de valorizar a língua portuguesa, as manifestações regionais, promover a cidadania e não ferir os valores éticos da família.
Esses deveres - amplos e vagos - não foram regulamentados até hoje, portanto não há como fazer a fiscalização e punir quem não respeitar o artigo 221 da Carta Magna.
Houve tentativas, cíclicas. De tempos em tempos - especialmente quando algum programa passa demais dos limites - o poder constituído manifesta-se com alguma ação que se revela inócua pouco depois, porque prevalece a idéia de que o mercado (audiência) é o regulador do setor. Ou seja, quem escolhe a programação é o telespectador, então é ele que elege o que deve permanecer no ar por meio do controle remoto.
São esses, os que responsabilizam o público pela qualidade da nossa TV, os primeiros a levantar a bandeira do perigo da volta da censura quando se fala em algum tipo de controle.
O curioso é que, neste Brasil novo, argumentos velhos como o do cerceamento à liberdade de expressão ainda vinguem.
Curioso, mas não imprevisível. As velhas argumentações têm ressonância porque ninguém sabe o que o novo governo pensa, pois ainda não se manifestou. As reformas do governo Lula não incluíram - até agora - a nossa TV de cada dia.
A primeira iniciativa é da Câmara Federal, onde a Comissão Permanente de Direitos Humanos lançou a campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania, cuja ação inicial foi divulgar um ranking dos piores programas, a partir de manifestações dos telespectadores pela Internet. A idéia é boa porque quer mexer no bolso das emissoras por meio da pressão sobre patrocinadores. Quer mostrar ao financiador os arranhões que podem causar em sua imagem programas tidos como nocivos. Para isso, a opinião pública deve ser mobilizada e a produção ruim estigmatizada como baixaria e daí por diante repercutir nas vendas de produtos.
O último boletim da campanha registra a opinião de 805 contribuintes que listaram os top da baixaria: Domingo Legal, Big Brother, Programa do Ratinho, Domingão do Faustão, os programas do João Kleber, da Márcia Goldschmidt, do Sérgio Mallandro, da Sônia Abrão, etc. Sendo que um ponto de Ibope representa, no mínimo, 80 mil telespectadores, há de se convir que sensibilizar apenas 800 reclamantes é meio desanimador. Mas não deixa de ser um começo.
No entanto, atuar somente nessa frente é pouco. Há anos, muitos, que quadros do próprio partido do presidente Lula (a prefeita Marta Suplicy, por exemplo) apontam a necessidade de estabelecer formas de controle social sobre os meios de comunicação. Ele se daria por meio de um conselho formado por representantes da sociedade civil - incluindo as emissoras de TV - que examinaria a programação a posteriori a partir de denúncias dos telespectadores e aplicaria as sanções adequadas.
O conceito baixaria é subjetivo, por isso será necessário definir alguns critérios para o colegiado aplicá-los. Como tudo que é novo, haverá os tropeços do início, claro. Mas a existência de um organismo atento ao conteúdo da programação por si só já colocaria um pouco de juízo na cabeça dos produtores.
Laurindo Lalo Leal Filho
é jornalista, professor livre-docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e autor, entre outros, de Atrás das Câmeras - Relações entre Estado, Cultura e Televisão (Editora Summus)
A crise de qualidade que atinge a programação da televisão comercial brasileira não poupou o telejornalismo. No final da tarde concentra-se o que de pior pode existir em termos de informação pela TV. Cidade Alerta na Record e seus clones na Bandeirantes e na Rede TV promovem um brutal ataque à cidadania. Transformam tragédias pessoais, circunscritas muitas vezes ao ambiente familiar, em espetáculos públicos sensacionalistas. São programas que de jornalismo têm muito pouco. Nada justifica que o Brasil todo fique vendo em rede nacional de televisão, durante longo tempo - às vezes por mais de meia hora - um atropelamento numa rua de São Paulo. Não há no mundo manual de jornalismo que defenda o espaço dado a esse tipo de informação.
No telejornalismo em geral as coisas não são muito melhores. A regra tem sido a da pasteurização da notícia. As pautas circulam em torno dos mesmos temas. Na tela, desfilam os personagens do setor hegemônico da sociedade, com predominância para os atores econômicos e políticos. São chefes de Estado, ministros, empresários, economistas, parlamentares. Falam sobre o que interessa ao poder: governos, economia, fóruns políticos e econômicos internacionais. Assuntos acompanhados das tragédias que aparecem e desaparecem sem maiores explicações e com as amenidades esportivas, do show-biz ou dos zoológicos.
Um conteúdo que combina e se encaixa como uma luva na forma imposta pela televisão à notícia. Ao contrário do jornal impresso, onde a informação é a sua razão de existir, na TV ela é um complemento, muitas vezes indesejado e, no caso brasileiro, imposto por força de lei. Se pudessem, concessionários de canais de televisão, como Silvio Santos, por exemplo, não poriam no ar nenhum telejornal. Na televisão a notícia é simplesmente tratada como um produto a mais. Entre uma informação séria e importante para o cidadão, sem imagem; e outra irrelevante socialmente, mas assustadora do ponto de vista visual, a TV escolhe a segunda. O telejornal de maior audiência no Brasil, o Jornal Nacional, da Globo, espremido entre duas novelas, segue o ritmo delas, com um encadeamento frenético de notícias que procura a todo o custo prender a atenção do telespectador.
Na Record, o telejornal do horário nobre subtrai o direito de opinião do telespectador, reduzindo sua cidadania. Nele o apresentador, valendo-se de uma concessão pública, dá opiniões pessoais sobre qualquer assunto, sem que haja a possibilidade de uma contra-argumentação. Em países de democracia consolidada secularmente, jornalistas de rádio e tevê não opinam. São duros nas entrevistas, apertam o quanto podem as autoridades, mas dão a elas - e a todo entrevistado - o direito de emitir opiniões e ao telespectador o de decidir.
Tratada como mercadoria, a notícia se subordina à linguagem do veículo e aos seus interesses políticos e comerciais. Ficam de fora os verdadeiros protagonistas da vida real: as organizações não-governamentais, os negros, os índios, os sem-terra, as lutas femininas, a produção acadêmica crítica e as manifestações culturais independentes. Assuntos que, se bem tratados pela TV, a aproximariam dos pioneiros do jornalismo eletrônico que viam a informação no rádio como um fator para a elevação da cidadania e o aprimoramento do processo democrático. Aqui, e agora, infelizmente ocorre o inverso.
Válter Vicente Sales Filho
é mestre em Comunicações e gerente-adjunto de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo
A baixaria na TV virou pedra no sapato porque televisão é a coisa mais universal que tem no Brasil. É mais universal que arroz e feijão, sapato ou escova de dentes. Ainda que amplamente cultuada por aqui, baixaria na TV não é privilégio nosso. Existe baixaria em outras partes do mundo, nos países ricos ou nos países pobres. Mas no Brasil o problema é sério porque a influência da TV é avassaladora. E isso acontece não por seu mérito ou competência, mas porque ela está sozinha. Faltam escolas de qualidade para todo o mundo, bibliotecas, centros culturais, vida comunitária. A TV é para milhões e milhões de brasileiros a principal fonte de informação e cultura. Sendo um veículo de comunicação de massas, ninguém está pedindo que ela se transforme em baluarte da erudição exibindo, em horário nobre, debates calorosos sobre Kant ou Nietzsche, mas num país no qual tem poder de rolo compressor, tem de assumir responsabilidades. Porém o inverso tem sido a regra. Os que fazem TV padecem da falta de pudor, ou competência, quando se socorrem aos temas sensacionalistas e fúteis para compor seus programas - agem como traficantes etéreos, que atraem as pessoas pelo que elas têm de menos nobre. A palavra obsceno vem da expressão latina obscenu, que significa fora de cena - o que não deve ser mostrado. A TV no Brasil é predominantemente obscena, pois, em vez de sublinhar virtudes, perpetua o que precisa ser vencido e superado, seja individualmente, seja por toda a sociedade. Isso não significa camuflar ou ocultar a realidade, mas é diferente um programa debater a onda de violência e outro explorar o tema de forma sensacionalista. Hoje as emissoras são obrigadas a informar ao público a classificação etária de cada programa. Isso é remédio paliativo, quase placebo. Criar um programa no qual faltam ética, originalidade e bom gosto e depois etiquetá-lo desaconselhando-o para certas faixas etárias soa até a cinismo. Testes de paternidade, desentendimentos familiares, invasão da intimidade de artistas, gente comendo insetos, voyeurismo, suspeitos de crimes sendo mostrados como criminosos, éguas pócotos e daí para baixo são os chuviscos e fantasmas que nenhuma antena consegue eliminar. Por trás de tudo isso, nas entrelinhas, permeiam as lições de que a vida não vale a pena, a malandragem compensa, as pessoas não merecem confiança e o mundo é repleto de futilidades. É evidente que não podemos transformar a televisão no bode expiatório de nossas mazelas culturais. Alienação, vulgaridade e preconceitos não nascem nela. Têm origem do lado de fora, no mundo palpável. A TV sem compromisso ético suga tudo isso e o devolve à sociedade que é encarada apenas como números que sobem e descem na escala de audiência. Esse é verdadeiramente um movimento de coprofagia cultural, em circuito que só é possível porque há uma sociedade indefesa e maltratada numa das pontas, sociedade que padece pela usurpação da identidade cultural, pelo desprezo maquinado à história, e pelo aniquilamento de espaços e instituições públicas. A TV ajudou, e muito, nesse processo, mas isso foi iniciado bem antes que a primeira válvula eletrônica fosse inventada. A TV não será nossa remidora, mas é necessário cobrar sua responsabilidade. É preciso exigir a mudança de postura dos que fazem TV e fortalecer a sociedade para o consumo crítico dos produtos televisivos.