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Música 2
Música e memória

Postado em 01/06/2003

Em depoimento exclusivo, o poeta e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho fala sobre sua carreira, o reconhecimento do público e critica a indústria cultural brasileira

A contribuição de Hermínio Bello de Carvalho para a cultura brasileira vem desde sua juventude. Já aos 16 anos ele assumia uma coluna sobre lançamentos de discos na revista Rádio Entrevista, do Rio de Janeiro. Daí em diante, a importância da cultura do País nunca mais saiu de sua mira. Produziu dezenas de discos, como os de Pixinguinha e Radamés Gnatalli; descobriu figuras que se tornaram fundamentais para a história, como Clementina de Jesus; fez política; escreveu livros; dirigiu espetáculos antológicos, a exemplo do Rosa de Ouro; e, com os diversos parceiros que acumulou na vida, compôs letras admiráveis, como Chão de Esmeraldas (com Chico Buarque), Modinha (com Maurício Tapajós e Cacaso) e Estrada do Sertão (com João Pernambuco).
Em abril, Hermínio foi o primeiro dos convidados de um projeto que pretende enfocar o trabalho de artistas desconhecidos do grande público, embora consagrados pela crítica e pela história da música brasileira: o Ilustres e Desconhecidos, do Sesc Pompéia. Nesse depoimento exclusivo, o poeta e agitador cultural diz que seu parceiro Cartola não se surpreendeu com o sucesso repentino, critica as gravadoras e emissoras de rádio e afirma que a atual crise no mercado fonográfico brasileiro é resultado da incompetência de seus dirigentes.

"Não considero que me falte reconhecimento do chamado grande público. Agora mesmo, que participei do projeto no Sesc Pompéia, sob direção do Helton Altman, e ao lado de Alaíde Costa, Zé Renato e um quarteto esplêndido, obtive respostas lindas, mensagens e recados. Logo depois, dei uma entrevista para o Conexão Roberto D'Avila, que, assim como a que concedi a Marília Gabriela, alcançou um grande público. O público toma conhecimento e, nas ruas, constato carinho e respeito. Apresento-me muito pouco, e as entrevistas também são raras - só atendo àquelas em que possa falar não sobre mim, mas sobre os trabalhos que faço."

Cartola: ilustre ou desconhecido?
"Cartola teve o reconhecimento ainda em vida, embora já quando ela se apagava. Foi, sim, um ilustre desconhecido até o surgimento do Zicartola. Antes, é evidente, havia brilhado nas décadas de 1930 e 1940, nas vozes de Carmem Miranda, Chico Alves, Aracy de Almeida. Depois disso, houve um breve hiato, até que As Rosas Não Falam o recolocasse em evidência. Esse trajeto poderá ser conhecido numa peça que a Sandra Louzada escreveu (Obrigado, Cartola), e para a qual fiz um samba-enredo.
Cartola não se mostrou surpreso com a venda de 100 mil discos em seu primeiro LP. Ele sabia de seu valor, mas sabia também o tempo que levou para reconhecerem sua genialidade. Participei um pouco daquela história do Sérgio Porto, que me incumbiu de fazer um disco de Cartola interpretado pela Aracy de Almeida. Até a capa, feita pelo Di Cavalcanti, encomendamos. Mas nenhuma gravadora se interessou na época.
Em sua trajetória, Cartola chegou inclusive a lavar carros, e eram 11 por noite. Isso aconteceu num dos piores momentos de sua vida. Zica foi quem o levantou. Sem ela, seu carinho e dedicação, provavelmente não saberíamos da existência de Cartola. Ou saberíamos bem menos... Ela foi seu clarão."

Memória musical
"Sou um brasileiro comprometido com a cultura do País, dentro de uma ótica mariodeandradeana. Faço projetos, como o Pixinguinha e o Lúcio Rangel de Monografias, produzo discos na contramão do que a indústria pesada da música impõe, roteirizo e dirijo espetáculos com artistas que estão fora do mercado e que, de repente, surpreendem o público e a crítica com atuações soberbas. Em 2002, estivemos três meses em cartaz com O Samba é Minha Nobreza (com Roberto Silva e Cristina Buarque, entre outros), quando fizemos, inclusive, um trabalho de contrapartida social (assunto tão em moda no momento). Havia sessões que chamávamos de pedagógicas, para crianças da rede pública escolar, deficientes físicos, mais o pessoal da terceira idade. De graça. E o ingresso normal custava apenas R$ 2,00!
Estamos agora, dentro do Instituto Jacob do Bandolim, que inauguramos há um ano, propondo a criação de um projeto audacioso que sonhamos ver espalhado pelas unidades do Sesc de todo o Brasil: a Escola Portátil de Música. Ele atende, prioritariamente, políticas básicas que deveriam fundamentar a linha de atuação do Ministério da Cultura: formação de novas platéias; de recursos humanos na área de registro e documentação; e de atendimento pedagógico na área da música popular, entre outras."

Projeto esquecido
"Há alguns anos, produzi o disco Mangueira, Sambas de Terreiro e Outros Sambas. Ele só foi possível graças à antropóloga Lélia Coelho Frota, que estava à frente do Arquivo Nacional. Ela sabia da minha paixão pela Mangueira e acompanhou minha luta para que a Escola tivesse um banco de dados sobre seus compositores - o que resultou no Centro de Memória da Mangueira, que, infelizmente, não está cumprindo as diretrizes que tracei para ele no primeiro projeto.
Na década de 1960, eu havia gravado em minha casa e nas casas de Cartola e de Carlos Cachaça algumas rodas de samba. Lélia quis fazer uma série de discos sobre as Escolas de Samba, e resolveu começar pela Mangueira. Neuma estava viva, chegou a gravar no disco. Logo depois morreram o Zé Ramos e o Leléo - e ambos também entraram em estúdio comigo. Aproveitei todo aquele material, fazendo um CD duplo maravilhoso. Mas acontece que nenhuma gravadora quis colocar em circuito. Elas alegavam que era pouco comercial."

Incompetência cultural
"Os meios de comunicação (falo das rádios, a maioria delas) são dominados por pretensos comunicadores que não têm qualquer compromisso com a cultura, mas sim com a política das gravadoras, que pagam 'jabás' atraentes. Tenho uma música, que fiz sobre uma melodia de João Pernambuco, que é das mais solicitadas em minhas apresentações, Estrada do Sertão. Ela já foi gravada pela Tetê Espíndola, duas ou três vezes pela Alaíde Costa, pela Elba Ramalho. No entanto, ela nunca foi tocada em rádio.
A atual crise da indústria fonográfica no Brasil é resultado de uma completa falta de criatividade, audácia e de um olhar mais atento para o que está sendo produzido aqui dentro. Mas existem exceções. Do contrário, Caetano, Lenine, Elba, Chico Buarque e tantos outros estariam afastados do mercado. Há também exceções e novos projetos promissores na área da produção, como as gravadoras Biscoito Fino e Acari Records (única especializada em choros). São exemplos maravilhosos, iguais a outros tantos, como o selo da Rádio Mec e outros independentes. Projetos como estes, assim como os muitos eventos produzidos pelo Sesc, atestam a existência de um público fiel à qualidade."

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