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Teatro
As máscaras do tempo

Postado em 01/02/2003

A Escola Kaga-Hosho, uma das mais célebres do Japão, trouxe a São Paulo a tradição do Teatro Nô

Nos longínquos séculos 14 e 15 nasceu um estilo de arte dramática que agregou ao longo do tempo mais sofisticação e delicadeza à cultura japonesa, o Teatro Nô. Complexa manifestação teatral que envolve música, dança, figurinos e literatura, o Nô é tido como uma expressão altamente refinada.
No entanto, mesmo com raízes tão profundas, o gênero é, muitas vezes, considerado de difícil digestão em seu país de origem, sendo consumido apenas pelas elites. A linguagem complexa, a estrutura arcaica do texto, a codificação de gestos e movimentos, e a música extremamente particular contribuem para que o Nô figure, conceitual e esteticamente, num cenário oposto ao dos estilos mais populares, como o Kabuki ou Bunraku (teatro de bonecos). "No Japão, o Teatro Nô sempre foi tido como uma arte da elite", explica Elza Hatsumi Tsuzuki, formada em música e pesquisadora do estilo, com uma bagagem de nove anos de estudos no país. "Mesmo hoje em dia, ele é cultivado por uma certa aristocracia intelectual e por famílias tradicionais, além de ser apreciado pela família imperial."
Porém, no que se refere a viabilizar diálogos, a arte sempre encontra o caminho, e o Teatro Nô achou formas de florescer em outros territórios, a despeito de sua complexidade, e conquistar outros olhares. Segundo Hatsumi, e suas pesquisas, a dramaturgia ocidental vem apresentando, sobretudo em montagens mais inovadoras, aspectos técnicos adaptados desse milenar estilo de teatro japonês. "No Teatro Nô não tem cenário", retoma. "E a mesma coisa se pode perceber nas peças ocidentais mais modernas. Você vê um palco completamente clean." Ainda nessa análise, o mesmo vale para o movimento dos atores em algumas montagens mais enxutas. "Eu vi isso em algumas coisas de Peter Brook (célebre diretor inglês)", revela. "Os atores que participavam de uma determinada cena tinham gestos e movimentos, porém os demais permaneciam sob a vista da platéia, só que completamente estáticos. E isso é típico do Teatro Nô." E não é só Peter Brook que bebeu da fonte milenar do Nô: o aclamado diretor Antunes Filho - grande admirador do gênero - incorporou nuances dessa estética minimalista em algumas de suas montagens.

Intercâmbio cultural
A harmonia entre o ancestral e o contemporâneo, característica marcante no imaginário das pessoas quando se fala do Japão e de sua cultura, também está presente no Teatro Nô.
A sofisticação e o impecável estado de conservação dessa arte puderam ser conferidos no Brasil com a passagem da Escola Kaga-Hosho por Porto Alegre e São Paulo, no Teatro Sesc Anchieta. A vinda do grupo foi uma parceria entre diversas instituições culturais japonesas e brasileiras, entre elas o Sesc São Paulo e a Fundação Japão. "É grande o desejo de artistas japoneses de virem ao Brasil, tanto no segmento da arte tradicional quanto da arte contemporânea", conta Yumi Garcia dos Santos, assessora cultural da Fundação.
Como exemplo de arte contemporânea japonesa já vista no Brasil, Yumi cita a dança de Setsuko Yamada, coreógrafa e bailarina que apresentou o solo Land Dreams, também no Sesc São Paulo, em janeiro de 2001. Outro belo exemplo é a visita do conceituado cineasta Yoji Yamada, na abertura da Mostra Internacional de Cinema, no CineSesc, em agosto de 2000. "O Sesc sempre nos ajudou a procurar as pessoas interessadas nesse tipo de arte em São Paulo, afinal, ele tem todo esse contato", afirma.
A vinda da Escola Kaga-Hosho a São Paulo foi mais um exemplo do desejo de constante intercâmbio entre o Brasil e o Japão. Em 2003 comemoram-se 35 anos do vínculo de irmandade estabelecido entre Porto Alegre e Kanazawa, capital da província de Ishikawa, de onde se origina o grupo, além dos 95 anos da imigração japonesa e dos 50 do reatamento diplomático entre os dois países (durante a Segunda Guerra Mundial as relações foram suspensas).
Quando os artistas da Escola Kaga-Hosho souberam da visita à cidade irmã, Porto Alegre, não resistiram à passagem por São Paulo, Estado que abriga a maior colônia nipônica no mundo, com cerca de 900 mil pessoas, entre japoneses e descendentes. "Eu acho que como se tratam de países bem opostos - geográfica e culturalmente - eles se atraem", analisa Yasuyoshi Takeshita, diretor-presidente da Associação Ishikawa-Ken do Brasil, fundada há 65 anos em São Paulo e também parceira na vinda do grupo. "As filosofias oriental e ocidental são muito distantes uma da outra", continua com forte sotaque. "Mas com a globalização elas estão se aproximando. No Brasil tem aumentado bastante a curiosidade acerca da cultura oriental."
E é essa "curiosidade" que garantiu o sucesso da passagem da Escola Kaga-Hosho pelo Brasil. Os elementos da estética japonesa são cada vez mais familiares aos brasileiros, e isso mostrou ser um bom canal de comunicação. "O Teatro Nô é bonito visualmente, mas não é vistoso", alerta Elza, referindo-se a uma certa timidez na forma das apresentações das peças Nô. "Não tem muito gesto nem movimentos como tem no Kabuki ou no Bunraku. Mas quem vai disposto a ver e aprender algo, eu tenho certeza de que consegue sentir uma energia. Sobretudo porque o próprio Teatro Anchieta possibilita uma proximidade entre a platéia e o palco", afirma.

Escola Kaga-Hosho - O antigo e o novo unidos pela arte
São quatro as principais escolas de Teatro Nô tradicionais, e a Escola Kaga-Hosho é atualmente a segunda em importância e dimensões, com um elenco em torno de 140 atores. O que as diferencia entre si são o canto, os sinais gráficos rítmico-melódicos, a indumentária, os movimentos e gestos, o tamanho dos leques, seus símbolos e a encenação.
O programa apresentado no Brasil se propôs a dar uma panorâmica da diversidade do estilo, incluindo trechos de peças e bailados. A apresentação foi aberta com o espetáculo Takasago, de Zeami, um dos mais apreciados no Japão. Depois, seguiram-se quatro bailados: Kantan, Yashima, Idutsu e Funabenkei. Logo após houve uma demonstração de kistuke, o processo de vestir o figurino da peça Hagoromo.
O kistuke é o mais importante aprendizado do ator e foi mostrado ao público de forma didática, seguido pelo espetáculo Hagoromo, provavelmente a obra mais encenada e conhecida no mundo do repertório Nô. Entre os integrantes da Escola Kaga-Hosho, que visitou o Brasil pela primeira vez, estavam alguns dos mais célebres atores de Nô, na sua maioria com mais de 50 anos. Elza Hatsumi Tsuzuki explica que não há uma razão especial para que os atores sejam todos mais velhos, além, claro, da predileção que o mestre da escola tem por atuar com colegas da mesma idade. "Em termos práticos, quem organizou o grupo foi um ator que já tem uns 60 anos. Por isso ele recrutou atores mais velhos. Ele prefere. Mas lá no Japão, num espetáculo de Nô é possível ter atores de 70 anos atuando com atores de 50 e 40. E músicos de 70 a 80 tocam com profissionais de 20 anos, no mesmo palco", conta.

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