O velejador fala de sua paixão pelo mar e das vantagens de ter o mundo como escritório de trabalho
Ele não tem nada contra a palavra aventura, mas prefere não simplificar dessa maneira um trabalho que começa com a construção do seu próprio barco, passa pela captação de dinheiro e culmina em seis meses no gelo da Antártica. "As pessoas só vêem a parte bonita do processo", afirma. Amyr Klink, 47 anos, casado, pai de três filhos, é o eterno menino que um dia se apaixonou pelas embarcações que cortavam o mar de Paraty, cidade do litoral carioca, e hoje faz de suas viagens sua maneira de se relacionar com o mundo. Filho de pai libanês e mãe sueca, o velejador já recebeu propostas de trabalho nos países onde ainda tem família. Mas afirma que não troca a realidade do Brasil por dinheiro nenhum. Até que seu gosto por desafios aponte o contrário, será daqui que ele partirá, rodeará o mundo, viverá um ano inteiro de sol, se assim planejar, e voltará para uma nova viagem. Em entrevista exclusiva, Amyr Klink fala de sua infância, de seu primeiro barco e do Paratii 2, que ele construiu com o auxílio de sua equipe.
Sua infância em Paraty foi muito importante para a escolha do que você queria fazer. O que exatamente essa proximidade com mar, barcos etc. despertou no Amyr ainda menino? Paraty para mim foi importante porque ela é uma cidade intimamente ligada ao mar. Talvez, como nenhuma outra cidade no Brasil seja. Ela é uma cidade até planejada abaixo do nível da maré. Essa intimidade da cidade com o mar foi uma espécie de iniciação náutica que me marcou bastante. Primeiro porque a arquitetura brasileira sempre deu as costas para o mar e para os rios. Em Paraty, não. As quatro igrejas que existem lá estão de frente para o mar. A cidade toda é assim. Isso é muito raro no Brasil. Aqui, geralmente, o matadouro, o lixão e o esgoto é que vão para o rio e para o mar. Outro ponto foi a convivência com uma parte importante da população que não vive exatamente na cidade, mas nas baías em volta e têm conexão com a cidade através de canoas, traineiras e outros tipos de embarcação. Foi aí que eu comecei a gostar de barco.
Além do que deve ter sido bem mais simples para o senhor matar sua curiosidade de menino quanto a barcos, vida no mar e coisas assim, não? Eu morei em Paraty em três fases da minha vida. Na primeira delas, quando eu era pequeno, gostei em primeiro lugar porque lá não se jogava muito futebol. Eu detesto futebol. Na minha época de escola, os meus colegas só pensavam nisso e não tinha o que conversar com eles. Eu comecei a me interessar por literatura francesa, por embarcações caiçaras etc. Eu gostava de olhar o mundo, não ficava num jogo de alambrado. E Paraty era diferente. Jogava-se uma pelada, mas se andava de canoa. Outra coisa interessante é que a emancipação do jovem em Paraty não era feita com bicicleta, carro ou moto. Era feita com a canoa. Em Paraty, a canoa era a forma de liberdade. E não era só para namorar, mas para ir sozinho a outra praia, por exemplo, que é outra comunidade. Isso me marcou muito. Eu tinha uma bela canoa. Desde pequeno eu peguei esse gosto por embarcações e me encantei por uma canoa chamada Max quando tinha dez anos de idade.
No entanto, apesar de toda essa paixão, o senhor estudou Economia e fez pós-graduação em Administração de Empresas. Essa formação acadêmica lhe foi útil em alguma coisa? Sim. Primeiro porque o ambiente de trabalho era difícil. Eu consegui um estágio no banco e fui trabalhar lá. A instituição era muito careta e o trabalho que eu fazia era o mais grotesco do mundo. Era análise financeira. Hoje, o que eu e meu chefe fazíamos qualquer calculadora de bolso faz. Se eu não tivesse conhecido isso, talvez hoje eu fosse um medíocre profissional confessamente bem-sucedido. Eu não gostei do que vi. Estudar literatura francesa, o que poderia parecer inútil, não foi. Em Paraty eu via muitos barcos franceses viajando sem dinheiro, barcos feitos pelos próprios donos. O brasileiro não gosta de fazer nada com as mãos. Brasileiro, com uma comodidade econômica, quer mandar fazer, mandar comprar, quer um marinheiro, uma empregada, uma babá e não sei mais o quê. Eu ficava impressionado de ver que aqueles franceses eram doutores de universidade e caras pós-graduados que tinham construído seus barcos e viajavam com menos de 50 dólares por seis meses. Aí, eu me apaixonei pela língua francesa e resolvi estudar sua literatura. O que foi muito importante porque me abriu a cabeça para uma literatura de viagem que eu não conhecia.
Quando o senhor se viu profissionalmente envolvido com a área náutica? Eu nunca me envolvi, na verdade. Até hoje eu não me considero um profissional. A gente é obrigado a trabalhar de modo profissional, mas o principal intuito do nosso trabalho não é fazer dinheiro. É fazer a viagem acontecer. A primeira viagem que me obrigou a trabalhar de modo profissional foi a travessia a remo. Eu iria ficar fora durante uns cinco ou seis meses e percebi que não dava mais para trabalhar em casa e para contratar serviços de engenharia, para comprar madeira, resina, cola e o que fosse. Era preciso ter uma razão social, organizar a atividade.
E sobre ir sozinho às viagens? Qual a sensação? Eu não sei por que no Brasil toda vez que alguém faz algo sozinho já é logo ligado a uma atividade solitária. Eu não gosto de ficar sozinho. O tipo de navegação que eu gosto de fazer tem o nome técnico de "em solitário", mas não é necessariamente sozinho, ele pode ser feito em dupla. Eu gosto dessa técnica porque nela cada uma das pessoas a bordo comanda sozinha todas as funções de um barco: rotas, manobras etc. É uma técnica que eu acho maravilhosa porque ela tem de ser muito eficiente e simples, e o sujeito tem de ser muito completo. Eu não gosto muito de competências específicas. Aquele cientista que só pensa naquelas três moléculas que ele estuda e não sabe nem se comunicar é um chato de galochas. A atividade de navegar envolve uma diversidade muito grande de competências, de atitudes etc. Por isso não existe navegador chato. Navegador chato, arrogante, imbecil, metido a besta ou ostentador morre ou fica no caminho.
Mas deve ser uma sensação no mínimo diferente quando o senhor se vê sozinho diante de um universo de gelo. Mas isso não faz dessa atividade algo solitário porque você está sempre pensando nas pessoas que conhece ou que vai encontrar, está sempre dependendo de coisas que aprendeu. O fato de viajar sozinho faz com que você se comunique mais, muitas vezes, do que se você estivesse viajando acompanhado ou estivesse num cruzeiro de luxo fazendo uma volta ao mundo na qual você convive com um grupinho idiota durante três meses, não aprende nada de importante e passa por cima de culturas e informações muito ricas. Ou seja, esse lance de viajar sozinho tem esse lado que te obriga a conhecer coisas sobre cada lugar aonde você vai. Você vai procurar quem encontrar primeiro: o dono da fábrica de gelo, da fábrica de pesca, o caiçara, o pescador, o esquimó, o cientista que você encontra no meio do caminho, o contrabandista que está vendendo perfume. Eu gosto de me comunicar, é até por isso que eu gosto de viajar "em solitário".
E em relação ao tempo? Como é tomar contato com tempos diferentes? Meses sem sol, meses sem noite, horários etc.? Eu já cruzei os dois círculos polares, sozinho e em grupo. O que me fascinou nessas viagens polares, por regiões de altas latitudes, é que você não só viaja geograficamente, mas também no tempo. São viagens nas quais você cruza estações. Na verdade, você escolhe as estações de acordo com a posição geográfica que você quer. A volta ao mundo, por exemplo, eu fiz num período e numa latitude nos quais eu precisava ter 24 horas de sol por dia. Eu queria sol o dia inteiro e só há uma época do ano e uma latitude específica para se fazer isso. Já quando o Paratii 2 ficou invernando na Antártica, eu optei por ficar um inverno inteiro no escuro. É preciso se programar para isso. Mas você pode também ficar à deriva do tempo um ano completo. O que eu também já fiz e é superdivertido.
E os seus barcos? O senhor os constrói? Esse é o lado que não aparece. E que é muito legal, por isso falei do número de coisas que é preciso saber para fazer o que eu faço. Pelo fato de a gente estar no Brasil e aqui não existir tradição naval esportiva, ao menos, e esse lance de barcos estar restringido à elite, quando você quer fazer alguma coisa que não está relacionada ao lado mais, digamos, elitista da área, você tem de começar do chão. Não existe tradição. Quando resolvi fazer o Paratii 2, sabia que não teria recursos e nem o patrocínio desejado. Assim, começamos formando soldadores para depois fazer um estaleiro, trabalhar para terceiros, aí então fazer nosso barco. E, no percurso, paramos por falta de conhecimento, dinheiro etc. Na época parecia algo suicida, do tipo "isso nunca vai ficar pronto". Mas ficou. Levou oito anos e está pronto. Não só pronto como dá um show em qualquer projeto americano, alemão ou inglês. Se você não tem como escapar das dificuldades, é melhor você gostar de trabalhar com elas. Não dá para ficar esperando um patrocinador maravilhoso que chegue e diga: "Olha, deixa que eu compro um barco para você."
E como se ganha dinheiro nesse negócio? É uma coisa muito curiosa. Noventa e nove por cento dos caras que fazem o que eu faço não têm dinheiro, mas a vontade de fazer é tão grande que o dinheiro aparece. Não estou dizendo que vem fácil. É preciso estar disposto a entrar de corpo e alma para fazer as coisas acontecerem. Então, é muito comum você ver um cara que há 20 anos está sem radar no barco por falta de dinheiro e, de repente, o barco inteiro desse cara afunda e no dia seguinte ele está com um barco novo. Isso acontece com todo mundo que naufraga. Os sujeitos são duros, mas conseguem se virar. Eu, de certa maneira, fui mais ou menos bem-sucedido. Não foi fácil, é um processo longo, mas eu consegui fazer acontecer do jeito que eu queria.
Mas hoje o Amyr Klink consegue patrocínios... A gente se vira de um monte de jeitos. Agora, por exemplo, estamos sem patrocínio. Mas, paciência... Se não tiver patrocínio neste ano, a gente não viaja até juntar dinheiro. É um problema chato, mas é apenas um dos muitos que a gente tem de resolver. Quem olha de fora acha que é tudo muito fácil. Agora, é claro que eu não gosto de chamar simplesmente de aventura um processo no qual você traz uma tecnologia nova para o Brasil que nem as empresas de alumínio acreditavam, por exemplo. Você junta mais um monte de coisa e daí falta dinheiro para começar. Você vai atrás do dinheiro. Consegue. Depois é preciso transformar isso tudo num produto de mercado para ter um volume mínimo para as primeiras encomendas, começa o projeto e depois só daí sai de viagem. Aí vem uma pessoa, olha e diz: "Nossa, que aventura!"
O senhor já teve problemas do tipo pessoas insistindo para ir em alguma de suas viagens, de repente, por status ou algo assim? Olha, não sei se por status, mas tem muita gente que quer sim. O problema é que cortar esse cordão e sair numa viagem longa é complicado. As pessoas acham que é só pegar a malinha e ir fazer aventura. Quando o pessoal vê o barco, fica mesmo com vontade de seguir junto. Mas elas se esquecem que para a gente poder sair tem um trabalho insano e burocrático que envolve questões trabalhistas, fiscais, técnicas, diplomáticas etc. Para ir para a Antártica é uma moleza, mas para o Ártico é uma complicação. Não é tão poético como parece e nem todo o mundo imagina isso e nem está disposto a, por exemplo, enfiar a mão na bomba do buraco da privada para limpar. E essas coisas também fazem parte.
Mas se alguém se propuser a colocar dinheiro num projeto seu desde que vá junto, o que o senhor faz? Tem gente que faz essa pressão, mas é um risco muito grande. Eu nunca aceitei isso. Se bem que todos os meus amigos que fazem viagens de barco para a Antártica ou o Ártico fazem isso. Eles não têm dinheiro, não são ricos e acabam fazendo o que a gente chama de frete: levam alpinistas, repórteres de televisão, documentaristas, curiosos, escoteiros e não sei mais o quê. Isso talvez seja uma aventura. Hoje a gente está super bem-equipado. Temos um equipamento para navegar muito bacana e que permitiria fazer isso com toda a segurança, mas ainda assim não é o que eu gostaria de fazer.
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