Postado em 01/07/2003
Jornalista revela contradições e mecanismos do regime militar
CECÍLIA PRADA
No decurso das últimas décadas, a carantonha do maior e pior período ditatorial de nossa história esmaeceu-se naturalmente, lembrada apenas com as características gerais de um terrível pesadelo, do qual um Brasil jovem e fagueiro teria emergido para a "normalidade democrática". Só que a coisa não é bem assim – as convulsões que minaram o organismo nacional durante 21 anos de regime militar deixaram nele fundas cicatrizes, ou melhor seria dizer feridas mal fechadas, supurações de violência e selvageria que, no nosso cotidiano, ainda entravam o pleno desenvolvimento da sociedade.
Da numerosa produção editorial que vem estudando o período, emerge o arrojado e vasto projeto do jornalista e historiador Elio Gaspari, As Ilusões Armadas, cujos dois primeiros volumes, A Ditadura Envergonhada (424 páginas) e A Ditadura Escancarada (512 páginas), a Companhia das Letras lançou no ano passado. Previstos estão mais três volumes, um para o segundo semestre deste ano e os outros dois ainda sem data de lançamento. Eles representam uma pesquisa de mais de 18 anos que varejou arquivos de milhares de páginas, o principal dos quais é o do general Golbery do Couto e Silva – a eminência parda do regime. Somadas as pesquisas, amplamente complementadas inclusive no exterior, a cerca de 300 horas de depoimentos gravados com os principais personagens e testemunhos históricos, formalmente o conjunto da obra fornece, antes de mais nada, um acervo bibliográfico de valor incalculável para estudiosos, do presente e do futuro.
Mas sua proposta específica é o seu maior mérito – a narração saborosa e fluida que permite uma leitura absorvente é usada por Gaspari para nos levar a um aprofundamento reflexivo sobre as causas e principalmente sobre o intrincado mecanismo do poder militar, recheado de contradições, lutas de facções e sobretudo de interesses pessoais, que se abateu sobre o país a partir de 1964. Seu ponto de partida, como esclarece na introdução, foi uma curiosidade, a de "explicar por que os generais Ernesto Geisel (o Sacerdote) e Golbery do Couto e Silva (o Feiticeiro), tendo ajudado a construir a ditadura entre 1964 e 1967, desmontaram-na entre 1974 e 1979". O que seria trabalho para um mero ensaio de cem páginas, resultante de uma pesquisa realizada em Washington, D.C., agigantou-se na presente obra.
"A Ditadura Envergonhada"
Com seu humor característico, Gaspari antecipa nas primeiras páginas a resposta à pergunta que se propusera: "Para quem quiser cortar caminho (...) a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça". Mas de que modo essa bagunça tomou conta do país e a forma que assumiu o seu desmanche é "uma história mais comprida".
No primeiro volume da obra, A Ditadura Envergonhada, o autor transporta o leitor diretamente para a histórica noite de 30 de março de 1964, em que o discurso inflamado do então presidente João Goulart na assembléia de sargentos e suboficiais rebelados, em meio à maior crise militar do seu governo, fez explodir o golpe que se preparava. E, dessa noite, segue miudamente os passos de "governistas" e "revolucionários", na complicada contradança política que envolveria os primeiros anos da ditadura, até o período imediatamente posterior ao Ato Institucional nº 5 (AI-5) – radicalização da esquerda e da direita, tropelias em direção aos postos de comando, inquéritos policial-militares (IPMs), prisões, terrorismo cultural e instituição oficial da tortura.
O estudo psicológico de cada personagem histórico, do contraditório e fraco Jango aos sanhudos generais da linha dura, aos líderes dissidentes, e até aos mais medíocres comparsas do drama nacional, bem como a abrangência das informações colhidas, o rigoroso cotejo de fontes, dão credibilidade à obra de Gaspari. No seu conjunto, ela surpreende mesmo aos que conheceram, por experiência pessoal, as agruras do regime. Sobretudo ao mostrar como os responsáveis pelo golpe seriam eles próprios colhidos, como aconteceu ao aprendiz de feiticeiro da fábula, pela complexa engrenagem que haviam desencadeado. E como o país foi sendo progressivamente arrochado, de um governo militar a outro, pela ascensão da linha dura, coadjuvada pela plutocracia econômica.
Uma situação que já incomodava – quem diria? – o coronel João Baptista Figueiredo, ex-chefe da agência central do Serviço Nacional de Informação (SNI), um mês após a edição do AI-5, e o fazia dizer, em carta ao capitão Heitor Ferreira, secretário do general Ernesto Geisel: "A impressão que tenho é que cada um procura tirar o maior proveito possível do momento porque começam a perceber a quase impossibilidade de uma saída honrosa para os destinos do país. (...) Os erros da Revolução foram se acumulando e agora só restou ao governo ‘partir para a ignorância’ ".
"A Ditadura Escancarada"
O vermelho-sangue da capa do segundo volume, A Ditadura Escancarada, é o contraste perfeito para a sobriedade azul-cinza do primeiro – os dois períodos históricos estudados se contrapõem. Perdem-se nos bastidores os elementos de ópera-bufa que chegaram a nos fazer sorrir, enquanto líamos as peripécias dos aprendizes de feiticeiro. O autor nos joga de chofre no período mais sangrento e vergonhoso de nossa história recente: "Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção, e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi substituída por um regime a um só tempo anárquico nos quartéis e violento nas prisões. Foram os Anos de Chumbo".
Presente no processo repressivo desde o início do governo Castello Branco, de 1979 em diante a tortura se tornaria prática consciente, constante, institucionalizada no país todo – muito embora perante a opinião pública internacional tentasse o governo brasileiro minimizá-la, como conseqüência esporádica de exageros disciplinares, cometida por "personalidades desequilibradas".
As estatísticas provam a escalada do terror: se entre 1964 e 1968 as denúncias de tortura foram 308, no ano de 1969 somaram 1.027 e em 1970 eram 1.206, com aumento progressivo do total de mortos. Com imparcialidade, Gaspari registra também os números do terrorismo de esquerda – muito inferiores, sempre, aos do terrorismo oficial, mas bem reais. E lembra que, nutridos nos assaltos a bancos e responsáveis por mortes até de simples guardas de estabelecimentos comerciais, infelizmente alguns dissidentes terminariam no caminho que o próprio Che Guevara temera: "Se você começa roubando bancos, acaba virando assaltante de bancos".
Esmiuçando os vários aspectos da violência institucionalizada e a ambigüidade do relacionamento entre os elementos componentes da nacionalidade – como a Igreja católica – e o poder militar, Gaspari derruba estereótipos e nos faz ver toda a hipocrisia escondida até mesmo na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e no Vaticano, na protelação, nas atitudes contraditórias, no "não sei/não ouvi" do cardeal dom Jaime Câmara, na frase de dom Geraldo Sigaud: "Afinal, confissões não se obtêm com bombons". E mostra ao mesmo tempo o heroísmo de outros padres, a coragem persistente de um dom Helder Câmara denunciando em Paris publicamente a tortura e desafiando o silêncio que Paulo VI lhe impusera, a solidariedade dos intelectuais norte-americanos na defesa dos direitos humanos, o ardil inventado por jovens diplomatas no Itamaraty, para passar denúncias ao exterior.
São também vistas de dentro a Operação Bandeirantes (Oban), a censura e a criação das grandes redes de comunicação a serviço da ditadura, e é lembrado o Milagre Brasileiro. Salienta o autor a simultaneidade do Milagre com os Anos de Chumbo e justifica o fato de haver "mais chumbo do que milagre" nas páginas que escreve, por ser sua convicção pessoal que "a tortura e a coerção política dominaram o período".
A narração das várias etapas da guerrilha do Partido Comunista do Brasil no sertão do Araguaia e os pormenores do seu desmantelamento em 1974 completam o segundo volume desta obra maior. Desse episódio, diz o autor: "O que se deu no Araguaia foi o paroxismo do choque dos radicalismos ideológicos, que, com seus medos e fantasias, influenciaram a vida política brasileira por quase uma década. A esquerda armada supusera que estava no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia uma revolução socialista a caminho".
Mas quando, em março de 1974, exterminada a guerrilha, o general Ernesto Geisel preparava-se para ocupar a presidência, sabia que herdava um "monstro" – que ajudara a criar: a máquina de extermínio, usada contra as lideranças esquerdistas, se não pudesse ser desmontada, acabaria por devorar a própria estrutura administrativa da nação.
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