Postado em 01/03/2003
|
Há cem anos nascia Portinari, um dos maiores pintores brasileiros
CECÍLIA PRADA
Conta uma lenda chinesa, citada por Walter Benjamin, que tal foi o grau de devoção à arte de um pintor que, ao terminar um quadro, mergulhou nele e se dissolveu. Nada mais apropriado, como metáfora existencial daquele que é considerado um dos maiores artistas brasileiros – Cândido Portinari. Sua morte prematura, aos 58 anos, vitimado por um estranho envenenamento com as próprias tintas que usava, parece ser apenas uma espécie de ironia cruel do destino. Na verdade, implica um auto-sacrifício consciente à arte – oito anos antes, em 1954, enquanto pintava os painéis Guerra e Paz para a Organização das Nações Unidas (ONU), uma primeira manifestação da doença, com crise hemorrágica, o havia prevenido do perigo que corria. Afastado por ordens médicas do seu principal meio de expressão artística, durante alguns anos dedicou-se a ilustrações e desenhos. Mas em 1960, fascinado com a netinha Denise, resolveu ignorar os conselhos médicos para pintar uma vintena de retratos dela a óleo. E colocou assim, com uma última pincelada, um ponto final coerente no dramático quadro de sua existência, no dia 6 de fevereiro de 1962.
Neste ano em que festejamos seu centenário de nascimento – natural de Brodowski (SP), ele nasceu em 30 de dezembro de 1903 –, lembrar a grandeza de seu talento e os marcos de sua carreira permite-nos também tecer algumas considerações sobre seu conturbado relacionamento com fatos, homens e idéias do seu tempo, pois mais do que nenhum outro pintor brasileiro esteve envolvido com fatores políticos. E mais do que nenhum outro, também, viu-se dilacerado por opiniões críticas contraditórias. Dos que o acusavam de desenvolver uma estética "de tons fascistas" aos que não o aceitavam por "comunista", "blasfemo", "materialista". Dos que, como o crítico Rodrigo Naves, censuram "a sua incapacidade de se libertar de um estilo excessivamente sentimental" aos que, como Theon Spanudis, viam nele apenas "um acadêmico arrependido, sem estilo próprio".
O certo é que o imenso legado artístico de Portinari integra o patrimônio cultural da humanidade. Nas palavras da historiadora da arte Annateresa Fabris, sua melhor biógrafa: "Ele foi acima de tudo um símbolo da modernidade, nítida linha divisória que, uma vez transposta, nos ajudou a respirar um largo hausto do pensamento universal aberto para o futuro".
O italianinho
Filho de um casal de imigrantes toscanos (o nono, de um total de 11 irmãos), o pequeno Cândido contaria com uma grande vantagem, em relação aos outros meninos da cidadezinha onde nasceu – a herança da cultura européia. Na capital do estado seus coetâneos de origem européia (principalmente italiana), Alfredo Volpi, Francisco Rebolo, Mário Zanini, saídos do meio operário e exercitando seu métier na decoração de casas, conseguiriam na década de 30 formar o Grupo Santa Helena e marcar presença nas artes plásticas. Mas antes disso, na remota e esquecida Brodowski, o menino Cândido já aos 9 anos iniciava seu aprendizado participando, com outros artistas italianos, do restauro da pintura da igreja matriz. Dizem que a seu cargo estava a pintura das estrelas, no painel do teto.
Aos 11 anos criava uma primeira gravura, um carvão que retratava o compositor Carlos Gomes, copiando a imagem que aparecia em uma carteira de cigarros – um trabalho que conservou com carinho, durante toda a vida, e que fez parte da grande retrospectiva da sua obra, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 1997.
Aos 15 anos vai para o Rio de Janeiro para estudar pintura. Sem recursos, trabalha para se sustentar. Passando fome, teria chegado a comer a gelatina química que recebia para misturar com as tintas. Um estranho, sinistro detalhe, que talvez tenha muito a ver com a intoxicação final – nunca suficientemente entendida, ao que parece. O envenenamento com tintas é freqüente na literatura médica relativa a "doenças ocupacionais" de mineiros ou operários de fábricas de cerâmica, tintas, baterias e pilhas, e também a "cólica de pintor" é conhecida dos pintores de paredes. Mas não consta que algum outro artista tenha morrido disso. Goya esteve muito doente quando tinha mais ou menos 46 anos mas recuperou-se. E seus biógrafos nunca puderam concluir se essa doença seria um envenenamento devido ao chumbo contido nas tintas ou sífilis. No caso de Portinari, há outro detalhe: dizem que o envenenamento final teria resultado de seu estranho hábito de lamber os pincéis usados, limpando-os dos restos de tintas.
Mas a influência da tradição pictórica européia foi também, para o jovem pintor, uma peia que o conteve, pelo menos na juventude, dentro dos cânones clássicos. Enquanto outros artistas do Rio de Janeiro e de São Paulo engajavam-se na preparação da Semana de Arte de 1922 – o grande divisor de águas das nossas artes – Cândido Portinari comportadamente cursava a Escola de Artes e Ofícios, depois a de Belas-Artes, e limitava-se a pintar retratos encomendados, exímios e realistas, de pessoas da sociedade. Faltava, no entanto, ao jovem artista o contato direto com a vanguarda européia. Depois de viajarem pela Europa, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Ismael Nery trouxeram para o Brasil os elementos de renovação contidos na nova arte. Di Cavalcanti, mesmo sem ter viajado, conseguia captar a inquietação dessas propostas artísticas e tornou-se um dos principais articuladores da Semana.
Enquanto isso, Candinho permanecia envolto em seu casulo, tomando conhecimento de tudo o que se passava – chegou a ir a São Paulo em 1917 para ver a exposição de Malfatti –, mas sem alterar seus rumos.
Ele apresentaria realmente uma defasagem de dez anos em relação à vanguarda brasileira. Mas essa resistência parece ter sido muito mais estratégica do que autêntica. Basta lembrar que em 1923 seu quadro Baile na Roça foi recusado, por fugir dos padrões acadêmicos, pelo salão oficial da Escola de Belas-Artes. Como seu grande objetivo era obter uma bolsa para estudar na Europa, em 1928 o pintor levava ao salão um bonito mas bem convencional retrato do amigo poeta Olegário Mariano. E via satisfeito seu intento.
O olhar distanciado
Nos dois anos seguintes viaja pela Espanha, pela Itália e pela Inglaterra, instalando-se depois em Paris. Em 1930, une-se com a uruguaia Maria Martinelli, que seria sua companheira de vida e mãe de seu único filho, João Cândido. E aproveita todo o seu tempo para estudar as várias formas e períodos da pintura – dos renascentistas italianos aos impressionistas, aos mestres da escola de Paris, Pablo Picasso, Marc Chagall, Henri Matisse. Sob essas influências, e mais tarde sob a dos grandes muralistas mexicanos, Diego Rivera, José Orozco, David Siqueiros, emergiria a nova visão do artista sobre o próprio universo brasileiro de que se ausentara.
O fenômeno é comum, até mesmo obrigatório, se poderia dizer. Somente com o afastamento de seu próprio meio é que para a maioria dos artistas reemerge, com força renovada, o material da memória, pronto para a criação. Foi assim com James Joyce, só capaz de recriar a cidade de Dublin em seu exílio permanente, em Trieste. Para um grande número de escritores latino-americanos do século 20, o exílio por motivos políticos foi o fator preponderante da criação – Gabriel García Márquez, Guillermo Cabrera Infante, Julio Cortázar foram exemplo disso.
Cândido Portinari faria muitas amizades em Paris, enturmando-se logo com o pintor japonês Léonard Tsuguharu Fujita, o ator Leopoldo Fróis e um jovem médico mineiro que fazia uma especialização no hospital Cochin, e que mais tarde desempenharia papel fundamental nas artes e na política brasileira: Juscelino Kubitschek de Oliveira. Freqüentando cafés e bailinhos pitorescos da periferia parisiense, rolando conversações nos cafés da Rive Gauche, tanto Cândido como Juscelino iam aprimorando sua formação cosmopolita e adquirindo a necessária lucidez sobre o país distante. Em carta de 1929, dizia Portinari: "Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – pude ver Brodowski como ela é".
Um "monstro de trabalho"
Voltando da Europa em 1931, o pintor desenvolve nos anos seguintes uma frenética atividade pictórica. Quando não tem dinheiro para as telas, improvisa-as com os lençóis da casa. Quando vai a Brodowski, ensaia a pintura mural nas paredes da sala. A abundância de temas que lhe haviam ocorrido na França – das brincadeiras de crianças às plantações de café – passa a encher as telas, numa profusão de cores quentes que parecem vingar, com sua força expressiva, o longo período de contenção e incubação da sua juventude.
Inicia-se a sua fase tida como "áurea". Em 1935 envia à Exposição Internacional de Arte Moderna do Instituto Carnegie, de Nova York, o quadro O Café, obtendo com ele a segunda menção honrosa. Vários críticos norte-americanos consideram essa tela "a aparição espetacular do Brasil". O prestígio no exterior projeta-o no cenário nacional. É convidado para ser professor de pintura no recém-fundado Instituto das Artes, no Rio de Janeiro. Em 1937, recebe a encomenda dos murais do prédio do Ministério da Educação. Começa então para o pintor uma fase de atividade tão intensa e exaustiva que justifica a frase que usava para se definir: "Sou um monstro de trabalho" – fazia extensos estudos sobre temas histórico-econômicos brasileiros, os diversos ciclos, do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro. E trabalhava 16 horas por dia.
A opção pelos temas sociais inseriu-o de maneira inequívoca e irremediável na pauta ideológica da época – mas o ideário progressista que absorvia, trabalhando com Oscar Niemeyer e convivendo com outros intelectuais, e que o levaria inclusive à filiação formal ao Partido Comunista em 1945, não o impedia de tornar-se uma espécie de "artista oficial" da ditadura Vargas. Coisa fácil de entender, pois a temática social monumental foi característica comum das correntes ideológicas fraternamente autoritárias, fascismo/comunismo.
Outras contradições ideológicas seriam também assimiladas com facilidade e grande proveito artístico por Candinho – agnóstico, pintou mais igrejas e santos do que qualquer outro artista moderno. Na Pampulha, na igreja de Batatais, ou na Capela da Nonna que construiu, vizinha à casa da família em Brodowski (hoje museu) e na qual retratou os membros de sua família, servia-se das encomendas da esquerda e da direita para fazer a única coisa que lhe interessava acima de tudo: pintar.
Nesse sentido, aproximava-se bem da tradição dos artistas renascentistas de Florença, que lhe fora transmitida pelos pais. Quanto à sua arte "religiosa", as aparentes contradições resolvem-se perfeitamente na expressão individualizada. Como diz o crítico Antônio Gonçalves Filho, "italianos, como se sabe, adoram e desprezam a madonna com a mesma intensidade". Mas há mais do que isso: os santos de Portinari fogem completamente do decoro hagiográfico convencional. São figuras exponenciais de modernidade, de humanidade, são personagens do tumulto, da fragmentação hodierna – o Cristo acaba de chegar montado numa motocicleta, o profeta Jeremias faz ecoar suas lamentações sobre a cidade corroída, o cubista patriarca Abraão fragmenta-se em dúvidas sobre a monstruosa ordem de executar Isaac, recebida do Eterno. E chovem sobre o pintor as interdições, a excomunhão promovida por rígidos prelados católicos ainda não-reformulados segundo os ditames da teologia da libertação – a igrejinha de São Francisco, construída em 1942 por Juscelino Kubitschek na Pampulha, levou 17 anos para receber a sagração, pois o comuna Portinari, velho amigo de Paris do então prefeito de Belo Horizonte, simplesmente substituíra o lobo, nobre companheiro do santo, por um vira-lata bem brasileiro.
Nas duas décadas seguintes o artista se desdobraria, alternando a pintura mural, de inspiração épica e grande vigor, com uma enorme quantidade de telas em que explorava, com técnicas várias, a riqueza de temas brasileiros. Em 1939, com apenas 35 anos, cria três painéis para o pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York e faz simultaneamente uma extraordinária retrospectiva com 269 obras, no Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro.
Em 1940 realiza no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) uma exposição individual, "Portinari of Brazil". Durante a guerra, permanece muito tempo nos Estados Unidos, familiarizando-se cada vez mais com as obras dos grandes mestres de sua época – principalmente com Guernica, de Picasso. Em 1942 executa murais na Biblioteca do Congresso, em Washington. Já adquirira, nessa altura, uma visão social radical, e não perdia ocasião para afrontar o establishment que tanto o promovia. Assim, desafia o preconceito racial inserindo figuras de negros nesses painéis, numa espécie de vingança – na exposição realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York, o pintor incluíra dez negros em sua lista de convidados, mas a instituição boicotara os convites. A desforra de Portinari lembra bem a atitude de Michelangelo, ao incluir o odiado papa Júlio II no inferno, no seu painel da Capela Sistina.
Quando o Partido Comunista voltou à legalidade, Portinari assumiu seu engajamento político e tentou inutilmente ser eleito, primeiro deputado e depois senador – atitude que prejudicou muito sua carreira. Uma exposição sua em São Paulo foi proibida, e o artista buscou outras plagas para expor, Buenos Aires e Montevidéu. Visitou também a Itália, participando da Bienal de Veneza.
Em 1952 é convidado pelo governo brasileiro a realizar os painéis Guerra e Paz para a ONU. Prontos e embarcados para os Estados Unidos em 1956, em pleno macarthismo, foram boicotados como obra de um artista comunista. A polêmica estabelecida exigiu esforços diplomáticos, mas finalmente as obras puderam ser inauguradas, em 1957.
Com o passar dos anos, o temperamento difícil de Candinho, que fora sempre responsável por grandes conflitos, até mesmo com amigos e a família, exaspera-se ainda mais, pelo desenvolvimento de uma surdez progressiva. Até a companheira Maria opta pela separação.
O legado de Portinari
Passados 41 anos da morte do pintor, permanece acesa a polêmica dos críticos em torno de sua obra – a qual, com a contínua e crescente divulgação proporcionada pelo Projeto Portinari, torna-se cada vez mais presente, no Brasil e no mundo.
No último mês de sua vida, Portinari falou ao crítico de arte italiano Eugenio Luraghi sobre os avanços da ciência e da tecnologia, e sobre os difíceis estudos de matemática que seu filho João Cândido fazia na Sorbonne, em Paris. Duvidava que a pintura tivesse futuro, pois, em sua opinião, as melhores inteligências seriam absorvidas pela pesquisa científica.
Mas essa mesma tecnologia, o incrível desenvolvimento das ciências temido pelo artista, se transforma agora em potencial adequado para a preservação de seu legado. O Projeto Portinari, iniciado em 1979 e sediado em um velho solar, no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é uma iniciativa pioneira, em plano mundial. A especialista Christina Gabaglia Penna, sua diretora técnica, está em vias de terminar a minuciosa catalogação das quase 5 mil obras do mestre e 25 mil documentos – entre os quais muitos trabalhos tidos como perdidos.
O projeto contou com uma dotação de US$ 10 milhões, em subsídios e doações – soma insuficiente, porém, para seus objetivos. Mesmo a comercialização de produtos com a grife Portinari não supriu essa deficiência. Usando tecnologias de ponta no Projeto Pincelada, João Cândido Portinari esforça-se para reunir pelo menos "réplicas válidas" dos numerosos quadros do pai dispersos pelos museus do mundo. Adultos de toda parte do país, mas principalmente crianças em idade escolar (cerca de 450 mil) já visitaram, até hoje, mais de 76 exposições em que computadores de última geração permitem não somente visualizar mas também intervir nas obras do artista, exercitando assim a própria criatividade.
Se pudesse ver o deleite dessas crianças e o trabalho de reeducação do Projeto Portinari, Candinho, que toda a vida se preocupou com a função e a permanência da arte, poderia sorrir, feliz e tranqüilizado em sua glória.
A terra de Portinari
Conhecida durante muito tempo como capital do abacaxi, a cidade de Brodowski, no interior paulista, orgulha-se de ser, na verdade, a terra de Portinari. O município surgiu junto aos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, instalados na região em 1894. O inspetor-geral da companhia era o engenheiro Alexandre Brodowski, que deu nome à cidade. Popularmente foram utilizadas diversas grafias, como Brodósqui, Brodoswky ou Brodóski, mas a população faz questão do nome original, obedecendo a decisão aprovada em plebiscito realizado nos anos 80. Embora Portinari tenha vivido desde os 15 anos no Rio de Janeiro, o artista permanece indelevelmente associado à terra que adotou o sobrenome do engenheiro.
![]() | |