Postado em 01/03/2003
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Exigência da ONU a países industrializados pode beneficiar o Brasil
ALBERTO MAWAKDIYE
O Protocolo de Kyoto, quem diria, pode ajudar o Brasil a desenvolver projetos de conservação da biodiversidade e ao mesmo tempo carrear receitas. As diversas resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) para a redução do aquecimento global, consubstanciadas no protocolo, começam a estimular empresas européias e norte-americanas a desenvolver projetos de fundo ambientalista em todo o planeta, de olho nos benefícios fiscais com que os governos de seus países certamente as brindarão caso os ajudem no cumprimento das metas. O Brasil, com seu imenso território – apesar do desmatamento que vem sofrendo desde o início do século passado possui ainda enormes reservas naturais –, é um dos países que devem receber mais investimentos, juntamente com outros da América Latina e da África.
Segundo o protocolo, todas as nações deverão reduzir as emissões de gás carbônico entre 2008 e 2012, de acordo com um sistema de cotas que tem sido objeto de alguma polêmica, principalmente porque os Estados Unidos – responsáveis por mais de um terço das emissões – até agora não aceitaram assinar o acordo. Os EUA teriam de gastar, nesse período, cerca de US$ 35 bilhões por ano na reciclagem ecológica de seu parque industrial e na adaptação dos automóveis às exigências ambientais. Há setores da economia norte-americana – como o siderúrgico – bastante defasados em termos ambientais, e parte de sua frota automotiva também é antiquada desse ponto de vista.
A alternativa colocada pela ONU é a "negociação" dessas cotas entre os vários países, de modo a não inviabilizar as decisões tomadas em Kyoto. Uma nação industrializada que retirasse de outra menos desenvolvida certa quantidade de gás carbônico, através de projetos de restauração florestal, receberia "créditos ambientais" correspondentes ao investimento. Assim, em vez de reciclar determinada área industrial, o que exigiria recursos à vista, seria possível "parcelar" a despesa em projetos em países emergentes, já que eles seriam necessariamente de médio e longo prazo. A negociação também pode ser feita entre nações desenvolvidas – a Alemanha e a França já discutem um acordo desse tipo. As condições de regulamentação que norteariam esses entendimentos bilaterais estão ainda sendo discutidas.
"Para os Estados Unidos, essa será a única solução", diz o advogado ambientalista Antonio Fernando Pinheiro Pedro, ex-secretário de Meio Ambiente da capital paulista. "O governo norte-americano não pode adiar indefinidamente a adesão ao Protocolo de Kyoto, sob risco de tornar-se alvo de enorme antipatia não só internacional, mas também dentro do próprio país. Investir em programas ambientais em lugares como o Brasil é uma maneira pragmática de contornar o problema."
Pinheiro Pedro vai mais longe. Ele acha que o Brasil deveria incluir o "seqüestro de carbono" nas negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), das quais o país tem como que evitado participar, por conta das exigências consideradas leoninas dos norte-americanos. "Teríamos uma moeda de troca fortíssima", diz Pinheiro Pedro. "Qualquer programa na Amazônia com o objetivo de seqüestrar carbono traria resultados imensos para os investidores, e que não deveríamos hesitar em cobrar." Como somente as plantas em crescimento absorvem gás carbônico e produzem oxigênio em quantidades apreciáveis, a floresta Amazônica acaba respondendo hoje por algo em torno de 20% da respiração mundial, uma vez que sua vegetação está continuamente se recompondo sob a copa das árvores tropicais – ao contrário do que acontece no hemisfério norte, onde a cobertura vegetal é muito mais rala, por causa das condições climáticas.
Multinacionais
Na verdade, o Brasil já começou a sentir os efeitos positivos dessa postura dos Estados Unidos. Três programas ambientais que estão sendo desenvolvidos por empresas norte-americanas no estado do Paraná – as gigantescas multinacionais General Motors, American Electric Power e Chevron-Texaco – têm o objetivo explícito de seqüestrar carbono, de acordo com os propósitos do Protocolo de Kyoto. Os projetos, que levam a chancela do governo paranaense, visam restaurar áreas degradadas da Mata Atlântica, proteger a biodiversidade local e buscar opções de geração de renda para as comunidades que vivem em suas zonas de influência. O valor dos três investimentos é estimado em US$ 18,4 milhões, a serem gastos nos próximos 40 anos. A quantidade de gás carbônico seqüestrado nesse período deveria ser, inicialmente, de 2,5 milhões de toneladas, mas o volume será redefinido, embora não deva ficar longe do original.
Dos três programas, o de maior porte é o previsto para a bacia hidrográfica do rio Cachoeira, em Antonina, a ser desenvolvido pela General Motors em uma área de 12 mil hectares, a um custo de US$ 10 milhões. Outro projeto será implantado pela American Electric Power na reserva natural da serra do Itaqui, em Guaraqueçaba, abrangendo 7 mil hectares, a um custo de US$ 5,4 milhões. O terceiro, da Chevron-Texaco, será implementado na serra do Morro da Mina, também em Antonina, em uma área de mil hectares. O programa custará à empresa US$ 3 milhões.
"São todos projetos ambiciosos, que vão juntar em um mesmo pacote a recuperação florestal e a inserção econômica de comunidades carentes", afirma o ambientalista Miguel Calmon, dirigente da The Nature Conservancy (TNC), uma organização não-governamental (ONG) ambientalista internacional que está supervisionando a implantação e a execução dos programas. "Eles podem servir de chamariz para outras empresas e estender esse tipo de iniciativa para mais regiões." A TNC, que no Brasil tem sua sede em Curitiba, participa do projeto em parceria com a ONG paranaense Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e se tornou famosa por comprar terras nos Estados Unidos para transformá-las em reservas privadas. A entidade possui atualmente 1,6 mil reservas naquele país, com uma área total de 9 milhões de hectares protegidos. No restante do mundo – a TNC atua em 29 países –, zela pela conservação de 32 milhões de hectares de mata natural, sempre em parceria com governos e empresas privadas.
Depredação
Para o Brasil, medidas como essas podem vir a calhar também por outro aspecto. Mais conhecido internacionalmente pela floresta Amazônica do que pela pujança industrial, o país pouco faz, na prática, para merecer a fama de reserva ecológica do mundo. Muito pelo contrário. O que se vê é um desmatamento incansável, que não poupa sequer a combalida Mata Atlântica, reserva de biosfera tombada no ano passado pela Unesco (a organização da ONU para educação, ciência e cultura) e que ocupava cerca de 15% do território brasileiro na época do descobrimento, cerca de 1,65 milhão de quilômetros quadrados, mas está hoje em grande parte devorada pela urbanização da região litorânea. O país é também obrigado a assistir à depredação cruel da própria floresta Amazônica, que, absurdamente, tem apenas 3% de sua área protegida pela legislação ambiental. Outras regiões ecologicamente valiosas, como o cerrado do centro-oeste, o Pantanal Mato-Grossense e a caatinga nordestina, não estão em situação muito melhor.
"Mostrando que conservar a natureza pode ser uma atividade lucrativa, essas iniciativas podem contribuir para uma mudança geral de mentalidade", acredita a ambientalista paulista Luciana di Ciero, uma das coordenadoras do Projeto Floran, um ambicioso programa mundial de reflorestamento ainda à espera de verbas e apoio para deslanchar no Brasil – o objetivo é reflorestar 2,3% do território brasileiro. "Está provado que apenas uma legislação dura não adianta, embora ela seja imprescindível. É preciso também intervir de maneira positiva." De fato, se dependesse apenas da lei o país seria o paraíso tropical das lendas de antigamente. Embora ainda com sérias lacunas – e o caso da floresta Amazônica é exemplar –, a legislação ambiental nacional é uma das mais rigorosas do mundo, mas nem por isso o meio ambiente está sendo conservado como deveria.
A ironia é que o potencial econômico oferecido pelas matas e florestas brasileiras é impressionante e já poderia estar sendo bem explorado há décadas. Dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) dão conta de que o chamado "PIB florestal", constituído principalmente pela extração de madeira e outras práticas extrativistas, já corresponde, apesar do pequeno desenvolvimento do setor, a um índice de 2% a 3% do PIB nacional – cerca de R$ 21 bilhões em 2001, o que não é nada desprezível. A presença desse setor nas vendas ao exterior também é significativa. A exportação de produtos florestais em 2001 aproximou-se dos US$ 5 bilhões, e a receita externa proporcionada pela indústria de papel e celulose, que depende umbilicalmente das matas de eucaliptos, chegou a US$ 2,2 bilhões. Os impostos recolhidos pela União no setor florestal já alcançam US$ 2 bilhões por ano, e os empregos diretos e indiretos já criados por esse segmento superam os 2 milhões de postos de trabalho.
Isso, naturalmente, sem contar as atividades clandestinas, como o extrativismo pirata de madeiras nobres na Amazônia e de palmito na Mata Atlântica, a caça de animais silvestres no Pantanal Mato-Grossense e a agropecuária predatória que é desenvolvida em praticamente todas as latitudes do país. Todas essas ações são combatidas pelas autoridades ambientais, mas sem muito sucesso. "As florestas brasileiras, muito mais do que uma reserva ecológica, são na verdade uma mina de ouro", afirma o consultor Josué Mussalém, diretor econômico da MRCA Consultoria. "É um incrível desperdício não preservá-las e não aproveitá-las economicamente de maneira sustentável."
Modelos
Os poucos projetos sustentáveis do ponto de vista ecológico que vêm sendo desenvolvidos no país pelo menos têm o mérito de não estar concentrados geograficamente – há iniciativas em praticamente todas as regiões – e incluir uma infinidade de atividades econômicas, o que lhes dá um aspecto de modelos que podem vir a ser seguidos. Eles incluem desde modalidades extrativistas na Amazônia até agricultura ecologicamente correta no sul do país, passando por projetos de ecoturismo e incursões na área de pesquisa técnico-científica. Tampouco se limitam a florestas e matas "fechadas", como poderia parecer à primeira vista. Alguns projetos estão sendo implantados dentro de perímetros urbanos, junto de remanescentes naturais ou mesmo em área degradadas.
O curioso é que a maior parte desses programas estão sendo colocados em prática pelas próprias ONGs ambientalistas, que ainda nas décadas de 1970 e 80 queriam apenas preservar mais ou menos do jeito que estavam as matas e florestas brasileiras. Hoje mais amadurecidas, e sem dúvida estimuladas por iniciativas similares de ambientalistas europeus e norte-americanos, as ONGs tornaram-se uma espécie de vanguarda do desenvolvimento sustentável, saindo em busca de parceiros capitalistas e estatais para seus projetos. Elas seguiram, por assim dizer, o mesmo caminho dos partidos políticos de esquerda, que deixaram o romantismo revolucionário para trás em troca da eficiência programática. O trabalho das ONGs tem se dado tanto no plano da consultoria como da execução. Em um ou outro caso, elas atuam como uma espécie de contraponto crítico e como fonte de subsídios técnicos e gerenciais para os parceiros.
"As ONGs têm muito a contribuir nesse processo", diz o ambientalista paulistano Malcolm Forest, um dos dirigentes da Amar, entidade conservacionista que atua principalmente na área da serra da Cantareira, na zona norte do município de São Paulo. "Com o know-how que possuem em questões ambientais, elas estão sendo o diferencial no trabalho de preservação e contribuindo para que a exploração econômica seja a mais correta." De fato, o que não falta hoje às ONGs ambientalistas é capacitação técnica, além de um inegável espírito cooperativo – até mesmo entre elas. A troca de informações entre as ONGs não é apenas figura de retórica. No mês de novembro do ano passado, por exemplo, a Amar, em conjunto com a Federação do Comércio do Estado de São Paulo e outras entidades, organizou na capital paulista o seminário Florestas Brasileiras. Nesse evento, várias ONGs trocaram uma assombrosa quantidade de informações relativas a fatos e números, coletadas pelos biólogos, engenheiros, sociólogos, pesquisadores científicos e urbanistas que fazem parte de seus quadros. Seminários desse tipo são absolutamente comuns.
A maior parte das entidades está sediada nos grandes centros urbanos do sul do país, mas há muitas ONGs estrangeiras que atuam principalmente na Amazônia. Algumas delas foram acusadas de contrabandear plantas e ervas medicinais para laboratórios europeus e norte-americanos, ou de procurar reservas de minerais estratégicos, mas nunca foram apresentadas provas de que isso realmente esteja acontecendo.
De qualquer maneira, é na Amazônia que os ambientalistas têm feito o trabalho mais admirável. O Projeto Saúde e Alegria, desenvolvido pela ONG do mesmo nome na região de Santarém (PA), está há vários anos em atividade, com escasso apoio de verbas federais e internacionais, entre as populações ribeirinhas do rio Tapajós, que vivem basicamente do corte de madeira (Ver Problemas Brasileiros nº 353, setembro/outubro de 2002). "Não é uma tarefa fácil, pois há muita pobreza no interior da Amazônia e nada é mais comum do que trabalhar quase de graça para as madeireiras", diz Eugênio Scannavino Neto, coordenador-geral do programa. "É preciso ao mesmo tempo educar e prestar atendimento médico permanente." Ele conta que, meses atrás, um caboclo vendeu quase mil valiosíssimas toras de mogno por R$ 700 unicamente para comprar remédios. Ou seja, cada mogno saiu por R$ 0,70 para a felizarda madeireira.
Atividades
Mas, apesar do esforço das ONGs, os projetos mais significativos têm sido aqueles capitaneados por prefeituras, governos estaduais e órgãos federais. Os vários programas da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) que vêm sendo desenvolvidos às margens do rio São Francisco, que corta Minas Gerais e boa parte da região nordeste, talvez sejam o melhor exemplo. "Poucas intervenções do homem são tão agressivas ao meio ambiente como um complexo hidrelétrico, e temos de compensar isso de alguma forma", diz Ricardo Furtado, chefe do Departamento do Meio Ambiente da Chesf. A companhia – que tem uma série de usinas, barragens e linhas de transmissão espalhadas por todo o nordeste, muitas delas em áreas de preservação – vem tocando programas que tentam aliar conservacionismo e atividade econômica, como a pesca planejada no baixo São Francisco e o cultivo ecológico do babaçu. Também está incentivando o ecoturismo na região de Piranhas (AL) e nas imediações de várias barragens.
Praticamente todos os projetos tentam inserir as populações que moram nas áreas de preservação em algum tipo de atividade econômica. O Instituto Florestal de São Paulo, órgão do governo paulista, vem tentando estimular a agricultura orgânica no "cinturão verde" da Grande São Paulo e há algum tempo ministra cursos ecoprofissionalizantes para jovens carentes da região. "Sem melhorar a situação econômica das populações que moram junto das áreas de preservação, de pouco adianta investir em programas ambientais", explica Rodrigo Moraes Victor, coordenador técnico do instituto. "Para elas, as ações predatórias são uma condição de sobrevivência." A viabilização de atividades econômicas sustentáveis teria ainda outra utilidade, a de barrar a especulação imobiliária, particularmente feroz na serra da Cantareira, ao norte, e na área de mananciais, no sul da região metropolitana de São Paulo.
Já a cidade de Porto Alegre está se empenhando em fundir num planejamento mais global a conservação ambiental e as atividades produtivas. A prefeitura da capital gaúcha, com a ajuda de universidades e institutos de pesquisa, concluiu um atlas ambiental que traça um detalhado zoneamento ecológico da região e pode balizar futuras iniciativas econômicas compatíveis com o conceito de desenvolvimento sustentável. "Levantamos desde os tipos de vegetação até as nascentes de rios, e não deixamos de fora nem as matas remanescentes dentro das zonas urbanas", conta Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos coordenadores do estudo. "Planejar com os olhos voltados para o meio ambiente será agora mais fácil em Porto Alegre."
As ações oficiais também incluem trabalhos de reflorestamento, principalmente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. No estado de São Paulo, o Fundo Florestar, ligado ao governo estadual, está desenvolvendo um projeto de reposição florestal destinado às pequenas propriedades rurais que não possuem capital para produzir em toda a área disponível. Baseada, por enquanto, no plantio de eucaliptos – árvore de crescimento rápido, fácil manejo e comercialização –, essa iniciativa já foi responsável pela reocupação florestal de quase 10 mil hectares em todo o estado. O Fundo Florestar fornece as mudas e dá assistência técnica. "É um programa modesto, mas que vem mostrando resultados acima das expectativas", diz o diretor executivo do fundo, Eduardo Pires Castanho. "De árvore em árvore, vamos reflorestar uma área muito maior do que se imaginava." O Protocolo de Kyoto agradece.
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