Postado em 01/03/2003
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Em debate o fim dos manicômios e a reforma psiquiátrica
LAURA LOPES e CARLOS JULIANO BARROS
Um dos maiores desafios que o Brasil enfrenta atualmente, na área da saúde, é a consolidação da reforma psiquiátrica. As mudanças mais significativas ocorreram em 2001, com a aprovação da lei 10.216, que rege a saúde mental. Até bem pouco tempo atrás, não eram raras as instituições que mais pareciam um depósito humano do que local de tratamento. Hoje, a ordem do Ministério da Saúde é repensar o modelo de atendimento, criando serviços alternativos aos manicômios, como os centros de atenção psicossocial (Caps), hospitais-dia (HD), ambulatórios e leitos em hospitais gerais. O objetivo é permitir que pessoas com problemas psíquicos não sejam alijadas do convívio social.
A reforma, no entanto, confronta ideologias. De um lado estão os que defendem a extinção dos manicômios como primeiro passo para uma assistência mais humana. De outro, também fazem barulho aqueles que vêem no hospital psiquiátrico o único lugar capaz de dar conta dos casos mais graves. "Mas o modelo centrado nele não pode continuar. Isso é consenso", afirma Merval Figueiredo, da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.
O Brasil seguiu a trilha das reformas psiquiátricas realizadas em outros países. Dentre todas, a maior inspiração vem da Itália. Lá, as mudanças nessa área começaram na década de 60, orientadas por Franco Basaglia, em Trieste. Ele propunha a transferência do atendimento para a comunidade e o esvaziamento dos hospitais, com a abolição dos métodos tradicionais de isolamento dos portadores de transtornos.
Os princípios da reforma italiana encontraram terreno fértil no Brasil. Em 1987, surgiu o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), como fruto do 2º Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental. "Trata-se de uma mobilização social contra todo tipo de segregação", explica Elizabeth Arouca, presidente do Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo. Apesar da intensa mobilização do MLA e do crescimento dos serviços comunitários, a verdade é que os hospitais ainda ficam com a maior fatia do orçamento da saúde mental. Em 2002, segundo o ministério, grande parte dos R$ 518 milhões destinados à área foi gasta no pagamento de internações em hospitais públicos e privados, e apenas R$ 51 milhões foram para tratamento extra-hospitalar.
Hoje em dia, só se recomenda a internação em último caso, depois de esgotadas todas as opções de serviços abertos. E, mesmo depois de consumada, o período máximo é de 40 dias, renováveis por mais 30, suficientes para o controle da crise. Mas o que preocupa são os "pacientes moradores", aqueles que se encontram nos hospitais há 20, 30 anos, por não terem para onde ir. Reintegrá-los à sociedade é a parte mais difícil da reforma psiquiátrica.
Legislação
A história da atual lei de saúde mental no Brasil começa em 1989. Naquele ano, o deputado Paulo Delgado (PT-MG) apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei 3.657, que dispunha sobre a "extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais". Depois de 12 anos tramitando no Congresso, e de diversos substitutivos, o projeto deu origem à lei 10.216, que trata "da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos psíquicos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental". O item mais polêmico, a extinção dos hospitais psiquiátricos, acabou deixado de lado.
Críticas à lei não faltam. Luiz Barros, diretor da Ouvidoria Civil em Saúde Mental, diz que a legislação contraria a tradição do direito brasileiro, que prima por textos legais extensos e detalhados. "Foi petulância do Congresso querer reger a saúde mental em apenas 15 artigos." Na verdade, ninguém ficou satisfeito. Para os antimanicomialistas, restou a frustração de ver enterrada a principal bandeira do movimento, o fim dos hospitais psiquiátricos. Já os que defendem a manutenção dos manicômios tiveram de amargar o artigo que limita drasticamente os investimentos em novos leitos nessas instituições.
Debate
Os hospitais psiquiátricos são responsáveis, além de outros motivos, pela cisão entre aqueles que, de alguma maneira, estão ligados à política de saúde mental no Brasil. Os integrantes da causa antimanicomial querem sua extinção e, em contrapartida, a expansão dos serviços alternativos e comunitários. "O paciente em crise deve permanecer inserido na sociedade, fora das grades que cercam essas instituições", propõe Elizabeth Arouca. Em sua opinião, é preciso existir uma rede de serviços abertos e interligados, pois quando se delimita o espaço o paciente não é preparado para enfrentar problemas cotidianos, como a injustiça e o preconceito. Por outro lado, transitando em liberdade, por espaços públicos, ele entraria em contato com a prática da vida em sociedade, o que o ajudaria a resgatar sua cidadania e autonomia. Por essa razão ela defende a idéia de que os portadores de transtorno mental sejam atendidos em meio a pacientes com problemas clínicos, colocando um fim no "gueto" do manicômio.
Pensam diferente aqueles que não querem o fechamento dos hospitais, como Wagner Gattaz, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ele concorda que há necessidade de criar mais serviços extra-hospitalares, porém sem jamais acabar com os leitos em instituições psiquiátricas. "Ocupar a infra-estrutura de um hospital geral com portadores de transtorno mental seria um desperdício, além de um desserviço para os pacientes, que passariam a ser tratados por equipes não especializadas em psiquiatria."
Outro argumento daqueles que não querem o fim dos manicômios é calcado na experiência da desospitalização em outros países. De acordo com Gattaz, na Itália, após a desativação dos leitos, os pacientes começaram a ser atendidos por hospitais gerais, o que provocou protesto das equipes dessas instituições, despreparadas para lidar com eles. Isso implicou o declínio na qualidade do atendimento. Além disso, nos EUA e na Inglaterra, a desativação dos manicômios contribuiu para o aumento dos homeless (moradores de rua). "O abandono desses pacientes graves provocou um drama social de dimensões alarmantes", conclui.
Há ainda quem seja contra a manutenção dos hospitais psiquiátricos, mas não veja alternativas no caso das grandes metrópoles. "Cidades de médio porte podem dar conta da demanda por leitos só com Caps III [unidades que possuem até cinco leitos, destinadas a pacientes com quadros agudos]. Em lugares como São Paulo, por exemplo, esse serviço seria insuficiente. Sou a favor do atendimento de qualidade, independentemente do espaço que ele ocupe", afirma Eduardo Guidolin, diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico Philippe Pinel, na zona norte da capital paulista.
Caps
A menina-dos-olhos do Ministério da Saúde, no que se refere à assistência em saúde mental, são os Caps. Na prática, esse tipo de centro de tratamento já existe desde 1987, com a inauguração da unidade Luís da Rocha Cerqueira, em São Paulo, conhecida como Caps Itapeva. Porém, só em fevereiro de 2002, por meio da portaria nº 336 do ministério, é que se normatizaram as características desse serviço.
Em um Caps, assim como no HD, o portador de transtorno mental passa o dia ocupado com atividades variadas, além de ser medicado. Também é atendido por uma equipe multiprofissional. A internação só ocorre em casos muito graves, durante um período suficiente para o controle da crise.
De acordo com a portaria, foram criados os Caps I, II e III. A diferença está na complexidade da estrutura da instituição e em sua abrangência populacional. O Caps I foi pensado para pequenas localidades, sem muita demanda por serviços na área de saúde mental. Já a segunda modalidade tem um corpo de profissionais um pouco maior e pode, se necessário, receber pacientes em três turnos diários. O único que possui leitos para internação e que, por isso, deve funcionar 24 horas é o Caps III. Existem ainda outros dois tipos: um destinado ao atendimento de viciados em álcool e drogas, e outro para crianças e adolescentes.
A solução para a reforma da assistência à saúde mental enfrenta ainda outros entraves. O Ministério da Saúde assegura uma verba fixa apenas para a construção de Caps, através do Fundo de Ações Estratégicas e Compensatórias (Faec). "Há dois problemas com o Faec. O dinheiro é temporário, barganhado ano a ano, e as prefeituras deixam de investir em outros serviços, pois já existe a verba destinada aos Caps", explica Merval Figueiredo.
Sem o desenvolvimento de outras unidades, cresce o medo de que os Caps se transformem em outra instituição total, como foi o hospital psiquiátrico no passado. Dessa forma, a assistência, ao deixar de ser centrada no hospital, tenderia a tomar como eixo os Caps. "O problema do manicômio não está nas paredes. Pode-se reproduzi-lo em uma unidade aberta", conclui Sandra Fischetti, diretora do Caps Itapeva.
Residências terapêuticas
Outra alternativa à internação hospitalar são as residências terapêuticas. De acordo com a portaria nº 106/2000, do Ministério da Saúde, elas constituem moradias ou casas, preferencialmente inseridas na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais egressos de internações psiquiátricas de longa permanência (moradores) que não possuam suporte social e familiar. Tais residências pretendem viabilizar a reinserção social desses pacientes.
O Centro de Reabilitação de Casa Branca, no interior de São Paulo, por exemplo, conta com 609 pacientes moradores, dentre os quais 170 residem em casas localizadas tanto dentro quanto fora da instituição. A maioria é de idosos que precisam de cuidados clínicos e psiquiátricos. Depois de ter alta da internação, os moradores começam a freqüentar o ambulatório do hospital e o Caps.
A transferência dos leitos do hospital para as casas exige um demorado trabalho para gerar autonomia, principalmente no trato com a higiene pessoal. Há também um processo de aprendizado para o gerenciamento de um orçamento doméstico. Os resultados às vezes impressionam os profissionais do centro; certos casos caminham rapidamente para a alta.
A convivência em ambiente menos hermético contribui para a melhora dos pacientes e já levou até à formação de casais. Antônio Theodoro, de 78 anos, e Natalina Bueno, de 51, se conheceram em uma das oficinas do centro e se apaixonaram. Cerca de sete meses depois, casaram-se. A cerimônia aconteceu no centro de Casa Branca, com a igreja lotada. Hoje, o casal mora em uma das residências, recém-pintada e com eletrodomésticos e móveis novos – tudo bancado pelo hospital.
O sonho da diretoria é transformar o centro de reabilitação em um espaço da comunidade. Como a política é de diminuição de leitos, o terreno do hospital seria aberto e abrigaria as casas, já livres da intervenção hospitalar.
No Centro Hospitalar Philippe Pinel, que aderiu à prática das residências terapêuticas, elas são chamadas de lares abrigados. Dos 70 moradores, 30 estão alocados em casas, e os demais participam do programa de reabilitação social. Patrícia e Wilma moram juntas com mais duas colegas. Elas limpam, cozinham e tomam conta de sua casa. Às vezes, saem dos limites do Pinel para ir ao supermercado ou passear. Mas suas vidas ainda estão atreladas ao hospital.
"É preciso devolver os pacientes moradores à sociedade", afirma Guidolin. Entretanto, isso não significa apenas desospitalizar. A tarefa mais árdua é a desinstitucionalização, ou seja, fazer com que o portador de transtorno mental consiga viver sem a tutela e os recursos de um hospital.
A tentativa de recuperação da sociabilidade dos pacientes moradores ainda esbarra no forte vínculo com a instituição que os abriga, principalmente pelo fato de as residências terapêuticas estarem dentro dos limites do hospital. Além disso, eles precisam do apoio de profissionais que os visitam semanalmente para orientá-los na administração de seu lar.
Reinserção social
À primeira vista, parece impossível juntar numa atividade artística coletiva portadores de transtornos mentais e aqueles que não sofrem desse problema. Mas é esse preconceito que o Centro de Convivência e Cooperativa (Cecco) Ibirapuera, em parceria com o Centro Cultural São Paulo (CCSP), consegue superar. "A idéia é unir as pessoas pelas afinidades", explica Isabel Cristina Lopes, coordenadora do Cecco.
Três vezes por semana, oficinas de teatro, dança e coral, abertas à comunidade, reúnem nas salas do CCSP estudantes, profissionais liberais e portadores de transtornos. Durante as atividades, é difícil apontar quem tem ou não problemas psíquicos. "Queremos proporcionar a convivência dos diferentes em lugares comuns", completa Isabel. Hoje existem 18 Cecco espalhados pela capital paulista.
Apesar de os portadores de transtornos serem maioria, as oficinas do CCSP não objetivam um tipo de tratamento. "Não há um contrato terapêutico e sim um alcance terapêutico. A meta é despertar a autonomia mediante a arte", resume Isabel.
Há também casos em que as oficinas chegam a constituir uma alternativa à assistência. Chico, por exemplo, que delas participa desde 1999, já passou por internações em clínicas e hospitais psiquiátricos, além de freqüentar HD. "Mas hoje não tenho perspectiva de voltar para esses lugares. Os programas do Cecco me são suficientes", revela.
Outro projeto desenvolvido pelo Cecco Ibirapuera é a Cooperativa Papelão Economia Solidária. No início de 2001, surgiu a idéia de desenvolver uma atividade – a coleta de papelão – que pudesse gerar certa autonomia financeira para os portadores de transtornos mentais. O projeto ainda está engatinhando, a renda obtida é simbólica, "mas a cooperativa é nossa", ressalva Chico.
Nessa atividade, todas as decisões são tomadas em conjunto. A renda é repartida igualmente entre os cooperados. "Todos dão tudo de si, mas a gente cobra o máximo que cada um pode fazer", explica Isabel. Se alguém não trabalha direito, dentro de seus limites, obviamente, não é poupado da cobrança. "Mas não é para excluir ninguém. Todos aqui, de certa forma, são ou já foram excluídos", justifica Chico.
Segregação
No início do século passado, muitos hospitais psiquiátricos eram depósitos de pessoas excluídas e marginalizadas, como mendigos, alcoólatras, prostitutas, menores criminosos e, obviamente, portadores de transtornos mentais. Esses lugares ficavam longe dos centros urbanos, "pois cumpriam a função de afastar aqueles que perturbavam a ordem estabelecida", afirma Mirsa Dellosi, coordenadora da área técnica de Saúde Mental do Estado de São Paulo. Os espaços das colônias de hansenianos e tuberculosos, também distantes das grandes aglomerações urbanas, deram lugar a hospitais psiquiátricos a partir da segunda metade do século 20.
O Complexo do Juquery também é um exemplo dessa política de isolamento. Atualmente, além da área psiquiátrica, ele abriga uma rede inteira de saúde, com pronto-socorro e hospital de clínicas, que assiste a uma população de mais de 400 mil habitantes. No final da década de 60, chegou a abrigar extra-oficialmente 17 mil pessoas. Não é difícil imaginar que faltassem cuidados básicos para os pacientes. Um relatório da própria instituição registra que, nessa época, houve o "confinamento progressivo dos internos nos pavilhões e clínicas. Desde então, passaram a ser comuns os escândalos na imprensa, com denúncias de maus-tratos e desvios de verbas". Excluídos e em regime asilar, os pacientes dos manicômios ficaram esquecidos por décadas, até que se propôs uma reforma no fim dos anos 80.
Até então, os hospitais privados eram muito lucrativos. "Os gastos dessas instituições eram bancados pelo governo", afirma Sérgio Tamai, diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism) da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Quanto maior o número de leitos conveniados, mais verbas públicas eram desembolsadas – um hospital maior ganhava mais por paciente/dia. Com a portaria nº 469/2001, do Ministério da Saúde, a situação se reverteu: um hospital que tenha até 80 pacientes/mês conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS) ganha cerca de 15% mais por diária do que aquele com 400 pacientes/mês. Esse valor varia entre R$ 25,45 e R$ 30,30, quantia insuficiente e que confirma a política de desativação de leitos.
Com as contas no vermelho, muitos hospitais particulares fecharam as portas. No estado de São Paulo, por exemplo, "a redução foi de mais de 8 mil leitos, e o número de hospitais caiu de 80 para 60", afirma Mirsa.
Tratamento
A mudança na qualidade dos serviços prestados, almejada pelos militantes do MLA, é muito recente. "Até 1999, os portadores de transtorno mental de Casa Branca tomavam banho em locais que mais pareciam as duchas de Auschwitz [campo de concentração nazista na 2ª Guerra Mundial]", conta Gabriela Magri, coordenadora da instituição. Com vassouras, os funcionários esfregavam os pacientes, que eram atingidos por jatos de água gelada ou extremamente quente. Hoje, esse espaço virou museu; a estrutura dos banheiros e do refeitório foi alterada; o atendimento, personalizado. Mas as grandes enfermarias e os imensos corredores com pessoas deitadas pelo chão ainda persistem.
No Juquery, esse problema é agravado pelo número de pacientes que lá vivem. São mais de 1,1 mil, distribuídos em enfermarias de 30, 40 pessoas e em lares com quartos para até seis leitos. Solitárias, eletrochoques e outras formas de punição foram extintos. Isso não significa, porém, que uniformes e cadeados tenham sido retirados do dia-a-dia dos moradores. "Há aqueles que exigem maior atenção porque são mais agitados e com pouca autonomia", explica Alessandra Brizola, chefe técnica de planejamento.
Enquanto uns são vigiados, outros têm grande liberdade. Os pacientes que moram nos lares podem sair do hospital quando bem entendem. Carol, de 44 anos, tem livre passagem nos portões do Juquery, e comenta-se que é freqüentadora assídua de um supermercado das redondezas. Quando estava internada, ficou em uma cela-forte durante sete anos, e agora seu desejo é morar com o irmão, que não tem condições financeiras para mantê-la – situação comum entre os moradores da instituição.
Além de residir em antigas instalações, ser vítima de preconceito social e alvo de graves problemas econômicos, a maioria dos moradores não tem contato com suas famílias. Por mais que recuperem a autonomia, perdida durante os anos de internação, poucos poderão voltar à convivência da qual foram privados. "É um trabalho de formiguinha. Os assistentes sociais procuram, a partir de depoimentos fragmentados do paciente, pela família desse morador. Às vezes, isso demora mais de um ano", explica Cristiane Reynaldo, diretora técnica do serviço de reabilitação psicossocial do Juquery.
Ignorada Mulher. Esse é o nome que consta do registro de Ig, senhora de mais de 70 anos que vive no Centro de Convivência da Terceira Idade do Juquery. Sem conseguir falar e totalmente dependente do hospital, seu caso é corriqueiro entre os moradores das instituições psiquiátricas. "Muitos são apelidados porque não possuem documentos", afirma Alessandra. Depois de décadas de internação, eles nem nome têm. Quem possui mais autonomia pode escolher um nome e tirar a Certidão Tardia. Com um registro oficial, é possível receber os benefícios da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social). No caso de Ig, assim como de muitos outros, a recuperação da cidadania enfrenta barreiras intransponíveis. "Infelizmente, esses pacientes irão morrer aqui", lamenta Cristiane.
O Caism da Santa Casa de São Paulo é um caso à parte. Ali o atendimento é feito em instalações novas e livres de grades e cadeados. Além disso, não há pacientes moradores, mas sim pessoas com quadro agudo e os freqüentadores do HD. A infra-estrutura se assemelha à de um hospital geral, com paredes claras, pé-direito baixo e quartos com duas ou três camas. Para manter o alto padrão, a instituição utiliza outras verbas além daquela recebida do SUS. "O governo nos paga R$ 28 por paciente/dia. O custo da internação é de R$ 192. A diferença quem paga é a Santa Casa, por meio de doações e convênio, já que somos uma entidade filantrópica", diz o psiquiatra Sérgio Tamai.
Enquanto se tenta restituir a dignidade dos antigos pacientes e preservar a dos novos, "é preciso promover a prevenção na saúde mental, garantindo qualidade de vida à população", afirma Mirsa. "A saúde mental não quer apenas tratar os transtornos, mas evitar que eles surjam."
Todos os que trabalham na área estão de acordo sobre as alternativas de tratamento: precisa haver mais investimento em serviços comunitários extra-hospitalares, pois, em muitos casos, eles podem prevenir crises e as conseqüentes internações advindas de quadros agudos.
Para que a reforma psiquiátrica tenha sucesso, no entanto, não adianta apenas fechar ou reformular hospitais. É necessário criar uma cultura livre de preconceitos para que os portadores de transtorno mental possam transitar livremente pela comunidade, produzir e se sentir parte da vida social, política e econômica do país.
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