Postado em 01/03/2003
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Projeto de reforma no sistema de aposentadorias mobiliza sociedade
OSWALDO RIBAS
O rombo do sistema previdenciário nacional consumiu R$ 72 bilhões em recursos do governo em 2002. Segundo estimativas oficiais, em 2003, para manter funcionando o modelo atual de aposentadoria dos setores público e privado, o Tesouro será forçado a arcar com aproximadamente mais R$ 85 bilhões, ou seja, o dobro do que teve de subsidiar em 1998. Há apenas cinco anos, a Previdência Social fechava o período com um saldo negativo de R$ 42 bilhões e, um pouco antes, em 1995, esse mesmo balanço contabilizava uma conta no vermelho de R$ 19,6 bilhões. Ou seja, em menos de uma década, o déficit previdenciário brasileiro – a diferença entre o que o governo arrecada em contribuições e o que efetivamente paga em benefícios – mais que quadruplicou.
"Basta olhar esses números para perceber que o sistema é insustentável e caminha inexoravelmente para um colapso", afirma o ministro da Previdência Social, Ricardo Berzoini, atualmente envolvido numa ampla campanha de mobilização da opinião pública para procurar equacionar o problema do modelo nacional de aposentadorias. O ministro acredita que, hoje, a percepção geral, não só no governo, mas em várias esferas da sociedade brasileira, é de que está na Previdência um dos maiores ralos por onde escoa a riqueza do país. "O problema", garante, "é encontrar consenso na forma de resolvê-lo."
Todos os anos, para fechar as contas da Previdência Social e permitir que aposentados e pensionistas, de senhoras viúvas a acidentados no trabalho e até generais da reserva, continuem recebendo seus contracheques mensais, o governo federal vem tendo de administrar incômodos déficits públicos, ou seja, cobrindo gastos superiores à receita. Para zerar essa diferença, a saída foi recorrer, por meio do Tesouro Nacional, ao artifício da emissão de títulos da dívida pública no mercado. Graças a essa operação financeira, o governo consegue manter a máquina previdenciária funcionando e evita envolver-se em intermináveis atritos políticos e desgastantes medidas impopulares que sempre são suscitados por eventuais iniciativas para corrigir o sistema. Por outro lado, ao não enfrentar o problema em suas raízes e sair pela tangente financeira, o governo contribui para perpetuar o endividamento do Estado e, como tem de pagar cada vez mais e melhor para atrair investidores aos seus papéis, acaba provocando distorções no mercado financeiro, como por exemplo taxas de juros estratosféricas, que oneram não só os cofres públicos mas todo o setor produtivo nacional.
"A situação do governo frente ao sistema previdenciário é semelhante à do indivíduo que, para saldar seus débitos, assume mais dívidas", comenta um executivo do setor financeiro. "Enquanto essa pessoa tem crédito para continuar emitindo cheques especiais, mesmo com a conta corrente no limite do vermelho, pode manter as aparências e o estilo de vida. No momento em que a dívida a ser rolada supera os ganhos e um de seus credores, como o banco no qual mantém conta, resolve executar os débitos, então a casa cai: sem novos créditos, ele deixa de honrar os compromissos e, como numa bola de neve, acaba se transformando em pária do sistema financeiro e, conseqüentemente, da sociedade", relata o especialista, que preferiu manter-se anônimo. Ele acredita que, no caso da Previdência Social brasileira, o governo vem, de forma irresponsável, utilizando recursos cada vez mais amplos apenas para retardar o fim de um sistema de aposentadorias destinado ao fracasso. Só que, agindo assim, pode acabar comprometendo não apenas a Previdência, mas toda a economia. "O caso recente da Argentina", afirma a fonte, "embora não se aplique exclusivamente à questão previdenciária, mostra como um Estado aparentemente poderoso estava, na verdade, financeiramente fragilizado, e acabou quebrando, levando ao desespero não apenas os aposentados, mas toda a sociedade argentina."
Além de alocar os escassos recursos públicos para manter de pé um sistema de aposentadorias anacrônico, mas politicamente sensível, o governo acaba também prejudicando outras áreas de sua esfera que são igualmente carentes de investimentos, como educação, saúde e habitação. Apenas como parâmetro, enquanto o rombo previdenciário consumiu R$ 72 bilhões dos recursos públicos em 2002, o orçamento federal para a educação em 2003 é de cerca de R$ 18 bilhões.
Não bastasse ser caro, o sistema previdenciário nacional é também injusto. Desses R$ 72 bilhões com que o Tesouro teve de arcar no ano passado para manter a Previdência adimplente, cerca de R$ 18 bilhões se destinaram aos aposentados do setor privado, vinculados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que formam hoje um contingente de 20 milhões de pessoas, cujo teto máximo de proventos é de R$ 1.561 mensais – o que representa um ganho médio para toda a massa de aposentados do setor privado de R$ 350 por mês. Do total do déficit previdenciário, portanto, três quartos devem-se de fato ao setor público. Com efeito, dados do próprio Ministério da Previdência Social (na gestão anterior, Ministério da Previdência e Assistência Social/MPAS) mostram que, no ano passado, a conta dos aposentados do funcionalismo público, abrangendo os sistemas próprios da União, estados e municípios, ficou deficitária em R$ 54 bilhões. E o pior é que neste caso o total de inativos é muito menor: cerca de 3 milhões de pessoas.
Assim, como ilustram dados do governo, a Previdência trabalha hoje com um cruzamento de dados perverso: de um lado, o prato da balança sustenta 20 milhões de aposentados e pensionistas do setor privado com um custo adicional de R$ 18 bilhões; de outro, a balança abriga 3 milhões de ex-servidores públicos cujo prejuízo para os cofres do Tesouro é da ordem de R$ 54 bilhões. "Desse modo", afirma Berzoini, "o Estado gasta em média subsídios de R$ 18 mil per capita ao ano para sustentar os planos de aposentadoria do funcionalismo público, enquanto os do setor privado consomem recursos extras de R$ 900, em média, cada um." Ainda amenizando os gastos com o setor privado, segundo informações do ministério, está o fato de boa parte dessa despesa decorrer de assistência social pura, que diz respeito a pagamentos do INSS a uma grande massa de aposentados rurais e urbanos que nunca contribuíram e atualmente sobrevivem com esses rendimentos, num programa destinado a evitar que milhões de brasileiros fiquem totalmente desassistidos e venham a engrossar as fileiras da exclusão social.
Regime único
A partir da discussão que hoje ocupa as manchetes dos jornais e faz parte do debate nacional, o governo Lula está defendendo a mudança do atual modelo previdenciário para um sistema unificado, com regras idênticas para todos os trabalhadores brasileiros, tanto do setor privado como do público. A tese básica é igualar o teto das aposentadorias, que passariam a obedecer ao modelo atual do INSS, ou seja, um limite de R$ 1.561. Para os que estão na ativa e já contribuem para a Previdência, a idéia que ganha cada vez mais adeptos é a de respeitar os direitos acumulados até a data da aprovação da reforma. Os trabalhadores, tanto da iniciativa privada como do setor público, que quisessem usufruir de maior benefício teriam de realizar projetos individuais de aposentadoria complementar, semelhantes aos planos que hoje são oferecidos por bancos e seguradoras, a chamada previdência privada.
Com a reforma aprovada no Congresso, acontecimento que ainda demanda um amplo e complexo acordo político, os trabalhadores brasileiros tanto da iniciativa privada como do setor público teriam uma regra universal e expectativas idênticas de ganhos vitalícios. Por lidar, no entanto, com uma complexa legislação que garante os direitos adquiridos dos aposentados, o projeto petista prevê uma fase de transição, durante a qual, num primeiro momento, parte da aposentadoria seria composta de acordo com as normas atuais e parte definida a partir da mudança. Essa transição seguiria o critério da progressividade, pelo qual quanto mais tempo de contribuição o trabalhador tivesse no sistema hoje em vigor menor seria o efeito da reforma para ele. Outra opção sugerida prevê um ciclo completo de 35 anos, que é o tempo exigido de atividade para o trabalhador se aposentar (no caso das mulheres o período é de 30 anos). Após esse prazo, a Previdência deixaria de ter qualquer vínculo com o regime atual e todos os aposentados seriam regidos pelo sistema único.
"Essa não é uma decisão apenas política dos parlamentares, dos partidos, do Executivo, mas deve contar com o envolvimento de toda a população", afirma Berzoini, que não esconde sua euforia com o momento histórico propício para que o país consiga, finalmente, resolver um de seus maiores entraves à distribuição eficiente da renda nacional. "Vamos abrir ao máximo essa discussão, reunir o que for possível de informações, e o projeto final surgirá ao término desse debate", acrescenta o ministro, que espera encaminhar o projeto de reforma previdenciária ao Congresso até abril.
Já para esclarecer que não há remédio instantâneo para o mal da Previdência, Berzoini antecipa que o modelo a ser adotado não deverá ter um impacto imediato nas contas públicas. "No curto prazo poderá ocorrer ainda um crescimento do déficit por mais dois ou três anos, para só então haver uma reversão da curva." Na expectativa do ministro, a diminuição efetiva dos gastos com a Previdência passará a acontecer num prazo de cinco anos a partir da vigência da nova lei. Ou seja, caso ela fosse aprovada no segundo semestre de 2003, os efeitos positivos da queda de despesa previdenciária só poderiam ser sentidos efetivamente no orçamento federal de 2008.
"Em nossa avaliação, a definição de um modelo sustentável de previdência trará um impacto muito positivo para as finanças públicas dentro de oito a dez anos. Como conseqüência, teremos uma queda do risco país e possibilidade real de recuo das taxas de juros", acrescenta Berzoini.
Vozes discordantes
Num debate tão amplo e complexo como o que toma conta da sociedade brasileira, também há espaço para opiniões contrárias ao projeto de reforma previdenciária. Na verdade, há consenso sobre a necessidade de realizá-la, mas setores e funcionários do serviço público que vêem nela a possibilidade de perdas para sua estabilidade financeira vitalícia estão buscando maneiras de manter algumas exceções.
Os militares, por exemplo, foram o primeiro grupo profissional a obter do governo Lula uma garantia de que a lei não deverá aplicar-se a eles. Com uma média de ganhos vitalícios de R$ 4 mil, definidos pelo último vencimento de seus salários enquanto na ativa, os militares apontam o caráter especial de sua função, bem como seu regime de contribuição, para reivindicar o direito de ficar à margem da mudança.
A manifestação dos militares serviu para o grupo de magistrados do setor público também defender a manutenção de seus direitos. Hoje, um juiz se aposenta com ganhos, em média, de R$ 7 mil mensais. "Se os militares podem ficar fora do regime único de previdência, entendemos que, com muito mais razão, os magistrados também poderão", alega a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em nota oficial. Na avaliação da associação, um juiz que contribui mensalmente com 11% de seus proventos por mais de 30 anos não pode ser prejudicado financeiramente no momento da aposentadoria. "Um militar, por exemplo, contribui com 7,5%." Pelo regime único, os juízes passariam a ganhar o teto estipulado pelo INSS, de R$ 1,5 mil.
"Ou as regras valem para todos, ou o projeto não serve a ninguém", protesta João Felício, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Antigos defensores do regime único, os cutistas estão revoltados com a atuação do que chamam de grupos privilegiados dentro do serviço público, que, à custa de toda a sociedade brasileira, utilizam seu poder de influência para manter a situação inalterada.
"Não é justo que a sociedade brasileira pague para que juízes, militares e marajás do serviço público continuem usufruindo de altíssimos rendimentos, enquanto a massa dos aposentados está arriscada a perder ganhos médios de apenas R$ 300 mensais por conta do insustentável déficit que é provocado exatamente pela aposentadoria dos mais poderosos", desabafa Felício. Ele, assim como outros líderes de centrais sindicais, acredita que a reforma está sendo feita especialmente para acabar com essas desigualdades. "Se os privilégios de qualquer grupo forem mantidos, a reforma toda perderá seu significado e dará margem a que muitas outras categorias profissionais reivindiquem sua exclusão da lei", acrescenta o líder da CUT, que não deseja ver o projeto seguir para o Congresso com cláusulas que isentem determinados profissionais de cumprirem o regime único. "A reforma previdenciária exige mudanças profundas e impopulares, e por isso mesmo a população precisa estar ciente de que aceitar modificações hoje poderá evitar o colapso de amanhã." Ele contudo é adepto de uma fase de transição que, a longo prazo, conduza à universalização do sistema.
Do mesmo modo que Felício e o ministro Berzoini, tributaristas renomados, como Ives Gandra Martins, defendem a tese dos direitos acumulados, em que parte da nova aposentadoria é calculada com base no sistema antigo. "Essa é a única alternativa possível para fazer a reforma", afirma Ives Gandra. Ele discorda da tese de juristas que acham que, mesmo antes de se aposentar, o trabalhador já tem direito adquirido pela expectativa que o sistema atual define. Segundo essa tese, mesmo sem estar aposentado, todo servidor público já teria adquirido o direito de ter uma aposentadoria integral com base em seu último salário na ativa. A briga, ainda sem desfecho previsível, deverá consumir boa parte das energias do governo Lula, que tem pressa em ver o projeto aprovado.
Outro ponto extremamente polêmico que opõe à proposta de Berzoini até os aliados sindicalistas da CUT é o teto da aposentadoria. Enquanto o ministro defende o limite vigente atualmente no INSS, representantes da sociedade civil consideram-no muito baixo. Para a CUT, por exemplo, o teto deveria ser estipulado em R$ 4 mil, o que, teoricamente, abrangeria o valor do último salário na ativa de 95% da massa trabalhadora brasileira. Com esse valor, contudo, o governo argumenta que a Previdência se manteria sob risco de quebra, consumindo recursos preciosos de outras áreas socialmente sensíveis.
A reforma previdenciária não é uma questão nova. Durante os oito anos do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso houve empenho do Legislativo e do Executivo em ver aprovada uma mudança estrutural que afastasse o risco de falência do sistema. Posições intransigentes, adotadas exatamente por representantes petistas no Congresso, inviabilizaram qualquer tentativa de mudança. Ao herdar o problema, a atual administração também recebeu um amplo estudo sobre a questão previdenciária produzido na gestão do governo anterior. Chefiado então por José Cechin, o ministério elaborou o "Livro Branco da Previdência Social", editado na transição de governos, no qual a equiparação do regime de benefícios dos servidores públicos aos dos demais trabalhadores do país é apontada como condição sine qua non para conseguir reverter a pirâmide deficitária.
O "Livro Branco da Previdência Social" de 2002 defende ainda a eliminação de vários privilégios que, se de um lado beneficiam os aposentados, de outro oneram perigosamente todo o sistema. Entre eles, a administração anterior aponta a prática do acréscimo salarial de 11% para os servidores da União no momento em que se aposentam, e ressalta a necessidade de instituir a contribuição dos inativos, uma vez que a grande maioria dos atuais aposentados efetuou recolhimentos com uma alíquota baixa durante sua vida ativa. O estudo recomenda ainda a alteração da fórmula de cálculo da aposentadoria de modo a evitar que um servidor que trabalhou apenas cinco anos no serviço público receba, ao se aposentar, proventos iguais ao último salário. Por fim, defende-se uma revisão completa das chamadas aposentadorias especiais, que, no caso, incluem até o próprio presidente da República.
Sistema de capitalização
Peça-chave no xadrez da reforma da Previdência, o papel da poupança nacional, por meio de fundos de previdência privada, ganha destaque cada vez mais amplo. Desde que o Estado brasileiro só teria condições de arcar com aposentadorias cujo teto fosse, por exemplo, R$ 1,5 mil mensais, todos os futuros aposentados da iniciativa privada ou do setor público que encarassem esse valor como insuficiente para manter seu nível de vida poderiam optar por produtos da aposentadoria complementar oferecidos no mercado financeiro. Assim, quem quiser mais ao se aposentar terá também de contribuir mais durante a vida ativa. Esse processo, diga-se de passagem, já está razoavelmente implantado entre os funcionários da iniciativa privada, mas ainda é completa novidade para os servidores públicos, exatamente por eles terem a vantagem de se aposentar com o valor do último salário (e às vezes até mais do que isso).
Osvaldo Nascimento, presidente da Associação Nacional da Previdência Privada (Anapp), acha que o momento é auspicioso para que possa ocorrer o início de um círculo virtuoso na economia, em que partisse do próprio governo a determinação de criar na sociedade a necessidade da participação da poupança individual complementar na aposentadoria. Além de se evitar o aumento da dívida pública, seria reduzida a tensão social vivenciada pela terceira idade. Esse sistema contribuiria ainda para financiar o capital produtivo que impulsiona o desenvolvimento do país.
"Nós, da previdência privada, já nos colocamos à disposição do governo e de setores da sociedade civil para participar dos debates sobre as mudanças necessárias", afirma Nascimento.
Para ajudar no debate, o presidente da Anapp identifica um ponto que considera fundamental para entender o colapso do atual sistema de previdência pública. "Trata-se do regime de repartição simples, em que todos contribuem para um grande fundo, que distribui os recursos entre os beneficiários. Esse método transmite uma idéia negativa ao trabalhador, a de que ele paga a Previdência, mas quem se beneficia são os já aposentados. No futuro, quando o contribuinte de hoje estiver inativo, ele deverá esperar que os trabalhadores na ativa façam o mesmo que ele no passado. Essa é certamente uma situação incômoda e pouco estimulante", adverte Nascimento. A seu ver, isso cria, no funcionário que está trabalhando, expedientes para reduzir ao máximo a contribuição à Previdência, enquanto o que está se aposentando busca ampliá-la ao máximo.
O problema é ainda mais preocupante quando se observa o processo de envelhecimento da sociedade, pois cada vez menos trabalhadores na ativa financiam os inativos. Em 1950, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 7,9 trabalhadores na ativa por aposentado. Em 2002, segundo dados estimativos, essa proporção caiu para 1,2 funcionário na ativa por aposentado. A expectativa é de que dentro de mais cinco anos ocorra um empate, como já se observa hoje no funcionalismo público. Ao mesmo tempo, a população idosa dobrou nos últimos 50 anos, enquanto a taxa de natalidade nesta década deverá se reduzir a pouco mais de 1%.
Para Nascimento, a saída de um problema estrutural dessa magnitude está em os trabalhadores na ativa adotarem o sistema de capitalização compulsória. De acordo com esse regime, todos contribuiriam obrigatoriamente com uma parcela do salário para capitalizar a seu próprio favor. Cada pessoa teria uma conta, e os recursos nela colocados retornariam, na época da aposentadoria, para ela mesma. O dinheiro investido, ao final de um período pré-estipulado, voltaria ao contribuinte corrigido e acrescido de juros. A administração desse capital, na avaliação da Anapp, deveria ficar em mãos de instituições financeiras privadas nacionais, a exemplo do que já ocorre em outros países, como o Chile, com bastante êxito. Ao Estado, dentro desse modelo, caberia administrar recursos para uma população de baixa renda, que não teria condições de poupar o suficiente para se manter no futuro.
"Dessa forma se criaria a cultura de o trabalhador montar seu próprio plano de previdência, e o contribuinte, ao administrar essa conta, teria o interesse de alocar o máximo de recursos possível para engordar seu futuro e garantir sua tranqüilidade." Para Nascimento, a iniciativa é ainda interessante por ser aplicável também à imensa massa de trabalhadores que hoje atua no setor informal da economia e que, portanto, não contribui para o INSS mas, no futuro, tentará, de alguma forma, se tornar apta a receber pensões e aposentadorias vitalícias. No caso dos empregados de empresas que administram fundos de pensão fechados, o problema é menor, mas mesmo assim nada impede que cada um abra sua própria conta complementar.
Padrão de renda
Os números parecem estar a favor do discurso da Anapp, uma vez que a média dos planos oferecidos hoje pela previdência privada apresenta resultados bem melhores. Atualmente, para ter direito a uma aposentadoria de R$ 1.561,56 após 35 anos de contribuição, o trabalhador autônomo inscrito no INSS deve recolher R$ 312,31 por mês, enquanto para aquele que tem carteira assinada o desconto mensal é de R$ 171,77 (sem esquecer que o empregador também realiza um aporte correspondente a 20% do salário bruto do funcionário).
Já no caso da previdência privada, o contribuinte que aos 25 anos decidisse aderir a um plano como o Vida Gerador de Benefícios Livres (VGBL) teria de, por 35 anos, realizar um aporte mensal de R$ 56,80 para obter rendas vitalícias de R$ 1,5 mil. Se a pessoa iniciasse os recolhimentos aos 40 anos, essa contribuição mensal subiria para R$ 308,60, segundo dados da empresa Vera Cruz Vida e Previdência, mas o período de contribuição cairia de 35 anos para 20. Se a intenção do contribuinte de 40 anos fosse se aposentar aos 65, o aporte de R$ 308,60 baixaria para R$ 151.
Outro dado interessante a favor dos fundos de previdência aberta é a portabilidade. Para mostrar que o titular da conta é efetivamente seu dono, caso ele não esteja satisfeito com os resultados dos investimentos que o administrador está fazendo, poderá solicitar a transferência dos depósitos para outro banco ou seguradora. Se de um lado isso dá mais poder ao detentor da conta, de outro fomenta maior competitividade entre os fundos, estimulando-os a buscar rentabilidades cada vez maiores e evitar, assim, a fuga de recursos para bancos e seguradoras rivais. Uma situação em que todos ganham.
Problema global
O que têm em comum países tão distantes entre si e tão diversos culturalmente como Austrália, Chile e Suécia? Sujeitos a problemas similares, como o rápido processo de envelhecimento da população, um mercado de trabalho que estimula a saída precoce da mão-de-obra ativa e ainda vultosos déficits públicos provocados por rombos previdenciários, eles decidiram, ao longo das duas últimas décadas, com o maciço apoio da opinião pública, abandonar o sistema de repartição simples, em que os trabalhadores na ativa financiavam os que conseguiam aposentar-se por tempo de serviço ou por idade, e iniciaram a implantação de modelos de capitalização pelos quais, em linhas gerais, o trabalhador destina, compulsoriamente, um percentual de seu salário, já descontado na folha de pagamento, a fundos privados. Os resultados têm apontado rendimentos melhores para os que se aposentam, ao mesmo tempo em que o Estado ficou mais aliviado no processo.
Segundo especialistas do setor, chilenos, suecos e australianos, ao que tudo indica, podem estar abrindo para o resto do mundo uma nova forma de equacionar o dilema previdenciário, embora ainda persistam dúvidas sobre a eficácia desses regimes. No rastro desses países, a reforma que envolve a redução do papel do Estado no sistema previdenciário vem atingindo desde a pátria do capitalismo moderno, os Estados Unidos, até nações antes refratárias a qualquer mudança, como a China. Tendo de cobrir aposentadorias de cerca de 200 milhões de trabalhadores, os chineses já iniciaram o processo de acoplar pensões individuais complementares geridas pelo emergente mercado financeiro local.
Basicamente, o que diferencia os modelos chileno, australiano e sueco são os aportes mínimos que cada trabalhador na ativa é obrigado a efetuar. No caso chileno, o mais antigo de todos, iniciado em 1981, a carteira de aposentadoria gerida pelas administradoras de fundos de pensão (AFPs) é formada por um percentual compulsório de 10% do salário, sem nenhuma contrapartida do empregador. Na Austrália, esse percentual é um pouco menor (9%), enquanto na Suécia a fatia é bem mais salgada (18,5%), ambos com uma participação do empregador na base do meio a meio. O que diferencia o modelo sueco é o fato de os recursos recolhidos mensalmente seguirem para dois fins diferentes: a maior parte, 16,5%, vai para um fundo universal de aposentadoria que se mantém em operação no país, enquanto os restantes 2% engrossam um fundo de capitalização individual, que tem por função complementar o benefício oficial. Nesses três países, o trabalhador vem se aposentando por volta de 61 anos.
Exuberância e fissuras
No modelo chileno, implantado durante o regime militar do general Augusto Pinochet, os servidores públicos, a exemplo dos trabalhadores da iniciativa privada, passaram a contribuir compulsoriamente para um fundo de previdência não oficial. A única exceção foram os militares, que continuaram a se aposentar por tempo de serviço, recebendo o salário integral da ativa, como acontecia antes com todo o funcionalismo público.
Mesmo levando-se em consideração as especificidades político-econômicas do país, a reforma previdenciária chilena é a maior referência internacional e exibe números extraordinários: o sistema, que inicialmente contava com a adesão de 22% da massa trabalhadora, dispõe hoje dos recursos de 93% da mão-de-obra em atividade. O patrimônio das AFPs, formado predominantemente por bônus do governo, alcança atualmente cerca de 50% do PIB, que é de US$ 55 bilhões. Até 2030, as AFPs acreditam que estarão administrando recursos da ordem de 100% do PIB.
O modelo chileno, no entanto, vem apresentando algumas fissuras. A mais importante, que de resto ameaça igualmente os sistemas de previdência nos demais países do mundo que ainda não fizeram a reforma, é a redução de aporte, ou seja, a mão-de-obra ativa vai gradativamente encolhendo enquanto cresce a massa de aposentados. Para os analistas, esse fenômeno resulta da mudança mundial nas relações de trabalho, com o aumento do número de trabalhadores autônomos ou informais.
Essa tendência, no entanto, vem engrossando a fila de trabalhadores chilenos que buscam os benefícios assistenciais mínimos oferecidos pelo governo, destinados a propiciar a inclusão social da parcela mais pobre da população, que não consegue poupar o suficiente para ter acesso às contas da previdência privada. Com isso, embora em menor escala, cresce a necessidade de subsídios oficiais, que, em última instância, vêm pressionando as contas públicas e reativando os problemas que, paradoxalmente, motivaram a reforma.
Fraudes não se aposentam
Uma coisa é certa. Se a Previdência fosse uma empresa privada e não um órgão do governo, já teria fechado as portas há muito tempo. Não bastasse a situação de pagar benefícios em volume muitas vezes superior ao das contribuições, origem do déficit crônico e crescente em seu balanço, a previdência brasileira é ainda vítima constante de fraudes que minam sua credibilidade e dilapidam seus recursos.
Não existem informações precisas sobre as fraudes dos benefícios previdenciários e assistenciais, mas estimativas do próprio Ministério da Previdência Social mostram que cerca de 30% do total de benefícios da instituição podem estar sendo pagos de forma indevida. Indicadores como os que revelam que quase metade das aposentadorias em centros urbanos têm como causa a invalidez permanente são uma amostra evidente de irregularidades. Na área rural há também indícios de que pelo menos metade das aposentadorias é irregular.
Um levantamento do ministério mostra que, do total de aposentadorias por velhice concedidas antes de 1983, cerca de 70% foram para mulheres inscritas como domésticas ou vinculadas a empresas de seus próprios familiares somente para usufruir desse benefício. Esse é o caso de uma juíza de Goiânia, que conseguiu no Tribunal de Justiça, aos 27 anos, uma declaração de tempo de serviço que contabilizava 11 anos de trabalho. Só que, desse período, sete anos ela teria sido empregada doméstica do próprio pai, um juiz de direito aposentado.
Além desses pequenos delitos, o INSS já foi vítima também do crime organizado. O caso mais célebre de desvio de verbas da previdência foi protagonizado, nos anos 90, por uma quadrilha formada por advogados e apoiada por procuradores do próprio INSS. Os fraudadores contavam ainda com a colaboração de alguns juízes.
O esquema funcionava assim: os advogados que faziam parte da quadrilha pediam indenizações vultosas por acidentes de trabalho, em nome de segurados pobres e às vezes até já mortos. Se o processo corresse apenas na esfera administrativa, o procurador do INSS, também integrante do grupo de fraudadores, aceitava o pedido de indenização pelo valor solicitado sem criar maiores dificuldades aos advogados. Na eventualidade de ser encaminhado à Justiça, era o próprio juiz quem apoiava o pedido. O INSS calcula que a quadrilha tenha sido responsável pelo desvio de cerca de US$ 600 milhões dos cofres da Previdência, no período de 1989 a 1991.
O caso figura entre os maiores escândalos brasileiros e levou à prisão uma ex-procuradora do INSS, Georgina de Freitas, e um juiz. Ela foi condenada em 1992 pelo desvio de US$ 114 milhões e ficou foragida na Costa Rica até ser extraditada, em 1997. Cumpre pena de prisão até hoje, mas vem buscando absolvição por "bom comportamento".
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