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Dificuldades para crescer

Postado em 01/01/2003


Arte PB

Novo governo: economistas discutem o destino do país

Às vésperas do segundo turno das eleições que escolheram Luís Inácio Lula da Silva como novo presidente do país, o Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo promoveu um debate sobre as perspectivas da economia brasileira para os próximos anos.
Os economistas Julian Chacel, Robert Appy, Josef Barat, Josué Mussalém e Carlos Alberto Longo apresentaram suas idéias e análises sobre o assunto, que foi amplamente discutido pelos demais conselheiros.
O encontro, que teve como tema as "Tendências Estruturais da Economia Brasileira", aconteceu no dia 10 de outubro de 2002.

JULIAN CHACEL – A economia nacional passa por uma fase de extrema fragilidade, que tem dois componentes: um crescente endividamento do setor público e uma forte dependência do exterior. A taxa de juros não é um elemento autônomo, mas uma conseqüência dessa fragilidade.
Antes de entrar em matéria propriamente econômica, vou referir-me rapidamente à questão da governabilidade. Independentemente dos resultados da eleição de 6 de outubro, que modificaram um pouco o quadro partidário no Congresso, é indiscutível que nenhum partido isoladamente terá maioria simples e muito menos condições de fazer passar reformas constitucionais. Além disso, existe um elemento novo que deve ser considerado na questão da governabilidade, sobretudo nas relações entre o Executivo e o Legislativo. É que o governo Lula não poderá usar as medidas provisórias com a mesma largueza com que o presidente Fernando Henrique pôde delas dispor, o que significa que a margem de manobra do Executivo será muito mais restrita. E é dentro dessa limitação que o desenho das políticas macroeconômicas terá de ser feito.
Usando uma expressão familiar aos estatísticos, diz-se que há poucos graus de liberdade quando uma curva tem de passar necessariamente por três ou quatro pontos predeterminados. No desenho da política macroeconômica, a trilha já está determinada a pouquíssimos graus de liberdade e não será o voluntarismo político que vai nos permitir sair da crise.
Se fizermos um corte no tempo, entre 1950 e 2000, vamos ter dois períodos de crescimento na economia, bastante distintos, de 1950 a 1980 e de 1980 a 2000. No primeiro, a economia nacional teve uma elevação média de 7,4% ao ano. Em contraste, no segundo trecho, de 1980 a 2000, o ritmo médio caiu para 2,14%. Pior: nesse intervalo de tempo, segundo os demógrafos, o país já vivia uma transição demográfica, e, se considerarmos o aumento da população, os 2,14% se reduzem drasticamente – na verdade os últimos 20 anos são marcados por uma quase estagnação econômica.
A correção do desequilíbrio do setor público passa por um processo de ajuste fiscal. Ajuste fiscal significa que não há medidas que possam produzir efeitos a curtíssimo prazo. O processo se desenrola no tempo, e penso até que essa dimensão será exatamente coincidente com a duração do mandato presidencial. Por seu lado, a redução da dependência externa passa necessariamente por uma participação maior no cenário mundial, com saldos substanciais na balança comercial em favor das exportações. É preciso incentivar as vendas externas para recuperar confiabilidade no exterior, na medida também em que a redução do déficit fiscal permitiria reconquistar credibilidade interna.
Essa lógica da recuperação para sair da precária situação econômica em que nos encontramos teria de ser, portanto, a associação de uma sucessão de superávits fiscais com bons resultados nas contas externas. Nessa relação seqüencial de causalidade, o risco Brasil se reduziria, permitindo então a queda dos juros reais.
É por isso que afirmei que a taxa de juros é uma conseqüência, não um fator autônomo. E a monetização da dívida seria viável, visto que o mercado financeiro estaria inclinado a absorver a colocação de papéis a uma taxa menor de juros, dentro de certos limites, evidentemente, porque deveria haver um estoque de moeda estrangeira para garantir a confiabilidade em relação ao setor externo. É preciso entender que um ajuste fiscal da ordem de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) durante três ou quatro anos sucessivos representa, como condição inicial, uma situação de caráter recessivo. Por conseguinte, a idéia de que o país vai crescer 5%, 6% ao ano é um sonho de uma noite de verão. O Brasil poderá crescer, com sorte, entre 2% e 2,5% nos próximos quatro anos.
Mas, tendo em conta nossa demografia e a pobreza da população, serão necessárias medidas compensatórias desse caráter recessivo do ajuste fiscal, através de uma rede de proteção social que, no meu entender, seria conseqüência de um programa de obras públicas perfeitamente articulado entre União, estados e municípios. Essas medidas requerem a capacidade de investir em infra-estrutura econômica. Relembro que naquela fase de alto crescimento, de 1950 a 1980, o Brasil seguiu na esteira da evolução da economia mundial. Não tivemos desenvolvimento autônomo. E o Estado esteve presente na constituição da taxa de investimento, que desapareceu justamente na segunda metade do período analisado, quando praticamente deixamos de crescer. Então, para apoiar com o capital físico uma promoção das exportações, seria importante recuperar a capacidade de investimento do Estado, e é aí que está o nó da questão. Tal como o orçamento da União é hoje construído, pode-se dizer que as despesas todas estão predeterminadas. A margem de manobra é extremamente restrita. Então seria necessário orientar de outra forma o orçamento. De 2002 para 2003 nada pode ser feito, uma vez que a Lei de Diretrizes Orçamentárias já estaria praticamente aprovada. Mas seria preciso que entre 2003 e 2004 houvesse uma desvinculação orçamentária que permitisse um rearranjo dos dispêndios, porque a experiência brasileira demonstra que, quando se amplia a arrecadação, cresce correlativamente a despesa. Será extremamente difícil alcançar um superávit, a não ser que haja a desvinculação, que se faria do seguinte modo: a despesa de um ano não pode exceder os gastos do ano anterior, de forma que o aumento de receita possa dar margem de liberdade para que se financiem investimentos em infra-estrutura.
Vejo que um pouco mais de inflação, desde que contida dentro de um limite administrável, facilitaria também as finanças públicas, na medida em que, como no passado, no caso inclusive do float do sistema bancário, certo atraso no pagamento a fornecedores e uma revisão para prazos mais alongados das despesas de pessoal resultassem também em folga nos orçamentos públicos.
Vou acrescentar uma proposta que talvez possa chocar meus colegas economistas. Em adendo à idéia de desvinculação orçamentária, para a reabilitação do crédito público a dívida poderia ser objeto de repactuação, com a troca de títulos de vencimento de curto prazo por títulos indexados. Ou seja, reviver a antiga Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), com vencimentos bem mais longos, alterando por conseguinte o perfil da dívida interna. Dirão os senhores: mas a indexação de títulos significa a volta à indexação generalizada. Eu digo que não. Títulos indexados não implicam necessariamente o retorno da indexação generalizada em período infracurto de tempo. A indexação, lembro, não deixou de existir, pois ela consta dos contratos de concessão de serviços públicos. Não é absolutamente verdade que não tenha havido reajuste dos servidores públicos, tanto da União como dos estados. Alguma forma de indexação continua existindo. O que desapareceu foi a indexação em período infracurto, mas ela é admissível até pela medida provisória que criou o real em 1994. Coonestada quatro anos mais tarde pelo Congresso com a reforma monetária, a indexação em períodos anuais continua a subsistir.
Minha experiência pessoal de observador da cena econômica mostra que não há necessidade de uma indexação em períodos inferiores a um ano, desde que a inflação média não passe de 15% ao ano. Desse modo, a adoção de títulos indexados contribuiria para dar uma melhor posição às contas públicas em relação ao PIB.
Para resumir, digo o seguinte: uma vez passada a perturbação causada no plano externo pela situação das economias mundiais, que convergem todas para um período de baixa atividade, coisa que não tinha acontecido no século passado, e tendo em conta também que a inflação seria um pouquinho mais alta do que aquela que está sendo antecipada, poderíamos chegar ao cabo de quatro anos, com as medidas que aqui foram apenas esboçadas, a uma redução substancial da relação dívida total/PIB. Essa relação, através de um modelo econométrico, hoje está em 60 e tantos por cento e poderia chegar a 46% ao fim de quatro anos, com a adoção desse conjunto de medidas. A dúvida que pode subsistir é como realizar saldos substanciais na balança comercial que repercutissem sobre o balanço de pagamentos em conta corrente e restabelecessem a confiabilidade interna, num período de recessão mundial em que não se sabe quando a recuperação poderá acontecer. Eu assinalo para os senhores que, surpreendentemente, o saldo da balança comercial em 2002 deverá alcançar talvez US$ 11 bilhões. Isso é conseqüência do fato de que as chamadas commodities, sobretudo os alimentos, aumentaram em 20% em dólar, em setembro de 2002, em relação ao mesmo mês de 2001, o que teve um efeito extremamente positivo sobre o balanço de pagamentos. A grande pergunta que poderia surgir é: isso constitui um surto ou uma tendência? Se for esta última, teríamos delineado melhor o caminho para a saída da crise.
Digo também que, dada a pouca margem de manobra que os novos governantes têm em função da situação doméstica e da economia mundial, não espero nada de dramático em relação a medidas na área econômica. Tenho a impressão de que o gradualismo será a tônica se o governo tiver um mínimo de bom senso, mercadoria bastante escassa no Brasil, diga-se de passagem. Mas vamos admitir, dando-lhe o benefício da dúvida, que paire uma nuvem de sensatez sobre a cabeça dos novos dirigentes e não tentem fazer uma pirotecnia econômica que poderia nos levar, isso, sim, até a uma crise institucional. De modo que o gradualismo será a tônica, possivelmente com certo teor de nacionalismo, algum fechamento da economia, que não pode ser integral, absoluto. Não se pode transformar o Brasil numa Cuba de grande dimensão, porque o preço disso seria, por não contar com entrada de capital estrangeiro, condenar o país à obsolescência tecnológica.
Para terminar, uma nota de otimismo. Uma taxa cambial de R$ 3 a R$ 3,20 por dólar garantiria tranqüilamente uma entrada de capital estrangeiro da ordem de US$ 5 bilhões, o que é perfeitamente factível quando levamos em consideração que nem há tanto tempo assim recebíamos de US$ 25 bilhões a US$ 30 bilhões. De modo que nossas necessidades de fechamento do balanço de pagamentos seriam drasticamente reduzidas, desde que não aconteça, como ocorreu há dois anos, à medida que a situação econômica fosse melhorando, um desequilíbrio cambial muito forte.

ROBERT APPY – Vou fazer uma reflexão em duas fases: a transição para o novo governo e seus primeiros meses. Atualmente há duas grandes dificuldades: o manejo da dívida interna e a administração da externa. No quarto trimestre de 2002, o vencimento de títulos federais (cálculo feito em 18 de setembro) representa R$ 47,761 bilhões, dos quais R$ 26,5 bilhões atrelados ao dólar. Temos a possibilidade de rolar parte dessa dívida, mas já existe certa monetização dela. Ao colocar títulos, verificamos que o governo decidiu utilizar o IGP-M, o indexador mais alto de todos. Em sete meses tivemos um aumento de preços de 10% medido pelo IGP-M, contra 4,1% pelo IPCA. Vejam então o efeito sobre a dívida. Os vencimentos em dólar no quarto trimestre chegam a US$ 7,83 bilhões, aos quais se acrescentam US$ 5 bilhões de juros; são quase US$ 13 bilhões. O problema da alta taxa de câmbio que estamos vivendo nestes dias se explica pelos compromissos elevados, um mercado internacional que secou e, naturalmente, o fator eleitoral.
Houve uma excepcional intervenção do Banco Central no mercado. Hoje, as reservas líquidas representam US$ 18 bilhões. Segundo o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), podemos deixar cair essas reservas até US$ 5 bilhões.
O novo governo não poderá fazer nada, porque vai enfrentar desafios que o obrigarão a ser prudente. O primeiro vencimento da dívida interna em 2003 é de R$ 174 bilhões, 60,3% dos quais antes do segundo semestre. Trata-se certamente de um pouco mais do que isso, porque a cada semana o governo emite títulos para substituir os que vencem. Só que com um detalhe: os títulos cambiais representam R$ 35 bilhões e os pós-fixados R$ 176 bilhões. Não há títulos prefixados.
Em 2003 temos US$ 28 bilhões em dívida externa com vencimento de médio e longo prazos, e US$ 16,7 bilhões de juros, num total de US$ 44,7 bilhões. O Banco Central calcula as necessidades da conta externa em US$ 40,7 bilhões para o ano de 2003.
Outro problema é a inflação. Naturalmente o índice inflacionário foi muito afetado pela taxa cambial. Mas o câmbio tem um efeito sempre atrasado, leva praticamente dois meses para chegar ao preço por atacado, mais um mês para o varejo. Assim, o novo governo vai sentir as conseqüências desse fator. Certamente, por razões eleitorais, o Executivo não elevou ainda os preços dos combustíveis, mas nas próximas semanas teremos esse aumento e, se houver uma guerra no Iraque, o impacto inflacionário será acentuado. É nesse contexto que devemos analisar o que poderá fazer o governo. O acordo com o FMI é absolutamente indispensável, pois sem ele haverá uma crise cambial muito grande. Querendo ou não, Lula terá de cumpri-lo. Não será fácil, porque precisaremos realizar um superávit primário de 3,75% do PIB, que aliás é um pouquinho mais elevado até junho, e respeitar também o compromisso de controlar a inflação, que no primeiro semestre varia entre 3% e 8%, e de 2,5% a 7,5% para o ano.
Quanto aos juros, acredito que teremos uma redução da taxa Selic. Fui defensor dessa redução, mas ela não pode ser muito grande, para não favorecer o aumento da demanda interna, que teria o efeito de ampliar as importações. Não esqueçamos que o saldo da balança comercial se deve antes de tudo à queda das importações. Com um processo de substituição existente, mas limitado, qualquer aumento forte da demanda significaria uma ameaça para o superávit da balança comercial.
Quanto à dívida interna, a tentação de monetização vai existir, mas isso teria um efeito tão dramático que ela será reduzida. Tarefa difícil a de controlar a inflação, e é sempre fácil lembrar que a culpa é do governo anterior. O que há de grave é o limite orçamentário. Temos despesas em que não se pode mexer de R$ 256 bilhões, R$ 14 bilhões quase intocáveis, e uma receita de R$ 250 bilhões, abaixo das despesas. O governo terá muita dificuldade. Concordo com Julian Chacel que a rigidez do orçamento deve ser modificada, mas infelizmente isso não poderá ser feito em 2002. Imagino que o governo petista vá implementar algumas medidas, como o aumento da progressividade do imposto de renda, criar um imposto sobre o patrimônio ou sobre a herança, mas tudo isso só em 2003.
Os investimentos estrangeiros são absolutamente indispensáveis. Não há dúvida de que durante seis meses eles não vão aparecer; o investidor quer saber como será o Brasil novo. Os empréstimos, ainda menos. Então é por isso que o FMI é importante.
No prazo mais longo, o que vai acontecer? Não devemos esquecer que o PT que ganhou é o PT da direita, correspondente a 60% do partido. Os outros 40% vão verificar que curiosamente o PT no poder será a mesma coisa que o governo anterior. Tenho medo de que a esquerda do PT tente primeiro ultrapassar esses 40%. Não há dúvida que a composição do Congresso não permite fazer revolução na política econômica, mas existe a possibilidade de uma tensão política que em nada vai ajudar.

JOSEF BARAT – Não vou fazer projeções, mas mostrar algumas tendências estruturais da economia brasileira, que desembocaram na crise atual. Elas já vêm de algum tempo, não são de hoje. Vejo sete pontos essenciais que, em conjunto, estão provocando a crise, a qual na verdade tem uma natureza muito mais estrutural.
Em primeiro lugar, a inflação. No Brasil, historicamente ela sempre foi um instrumento de redistribuição de renda e de financiamento público. Ela transferiu renda do setor agrícola para o industrial e mais recentemente da indústria para o sistema financeiro. E também redistribuiu renda para aqueles que sabiam aplicar o dinheiro, em detrimento da população desprotegida. Um mecanismo perverso que foi muito enaltecido, até por certas correntes de esquerda, como uma forma de fortalecimento do Estado, que se tornou grande investidor em parte por causa da inflação. Ela permitia que o governo descuidasse do controle dos gastos e até investisse pesadamente na infra-estrutura. Daí o fascínio que até hoje existe em torno da idéia da inflação como instrumento de promoção do desenvolvimento.
Tivemos uma inflação que beirou a hiperinflação no final dos anos 80 e sucessivos planos de estabilização que se frustraram. O único deles que teve duração mais prolongada foi o Plano Real.
O segundo problema é o do desenvolvimento. Julian Chacel lembrou bem que, entre 1950 e 1980, a economia, seja por indução internacional, seja por um processo muito acentuado de substituição de importações, cresceu a uma média de 7,4%. A partir de 80, esse índice caiu drasticamente, e a economia praticamente ficou estagnada em cerca de 2% anuais. Esse arrefecimento teve repercussões muito sérias na vida do país. Se analisarmos um prazo mais longo, de 1947 até hoje, verificaremos que as taxas de crescimento são decrescentes. Chegamos a ter, na década de 70, índices acima de 10% ao ano. Já tivemos, ao longo dos anos 80, taxas negativas, e hoje elas estão em torno de 1%, no máximo 2%. E quando a economia cresce 2%, comemora-se o fato como um grande êxito. Isso é interessante de observar só para ter uma idéia de como os indicadores de crescimento do PIB mudaram num prazo longo. Obviamente, o PIB per capita também apresentou uma tendência à estagnação e, como lembrou bem Julian Chacel, apesar da mudança no perfil demográfico e nas taxas de aumento da população, que hoje estão em torno de 1,8%, há praticamente um crescimento zero da renda per capita real.
O terceiro conjunto de problemas é o das contas externas. É interessante observar a evolução dos saldos anuais da balança comercial. Ao longo dos anos 80, há uma tendência de acumulação de saldos, que chegaram em alguns momentos a ultrapassar, por um período relativamente longo, os US$ 10 bilhões anuais. Com a implantação do Plano Real, a tendência se inverteu e passamos a ter uma seqüência de déficits na balança comercial. No passado, os saldos compensavam os déficits da conta corrente, pois o Brasil é cronicamente deficitário na balança de serviços, e então ao longo dos anos 80 ficava uma coisa pela outra. Mas a partir de 95 tivemos uma dupla acumulação de prejuízo, pois ao déficit nas transações correntes somava-se o da balança comercial. Conseqüentemente, há uma repercussão no balanço de pagamentos, na forma de uma necessidade de absorção de capital externo para alcançar o equilíbrio. As exportações crescem num ritmo reduzido em relação ao que seria necessário para acumular saldos comerciais. O problema mais grave talvez esteja na própria estrutura da pauta de exportações brasileiras. Nos anos 70 e início dos 80, o Brasil chegou a ter uma participação muito forte na venda de produtos manufaturados e de alto valor agregado. Essa tendência se inverteu, e hoje o que predomina é a exportação de commodities e de produtos primários, cujos preços estão fora do controle do país. Então, se houver baixa nos preços de commodities, a receita da balança comercial cairá, apesar do esforço de exportação. Seria necessário um empenho muito grande para que o Brasil voltasse a exportar produtos de alto valor agregado – os que têm componentes tecnológicos. Esse é nosso ponto fraco em relação a outros países emergentes que conseguem incorporar em suas exportações índices mais elevados de know-how.
O endividamento externo e os déficits do balanço de pagamentos são conseqüência desse processo. O aumento da dívida externa foi muito acentuado já na década de 90. Houve uma pequena reversão nos últimos dois anos, mas de qualquer maneira trata-se de uma dívida muito elevada.
O quarto conjunto de problemas refere-se às contas internas. Curiosamente, como acentuou Julian Chacel, a receita tributária aumenta, mas as despesas também crescem e não se consegue conter o déficit. A observação que fez a respeito da necessidade de remanejamento do orçamento da União e dos estados também é importante, por causa do comprometimento das receitas com despesas previamente determinadas, que são vinculações ou compromissos definidos na própria votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Hoje nossa carga tributária gira em torno de 34% do PIB, o que dá origem àquela constatação de que temos uma carga tributária escandinava e uma prestação de serviços africana. A conseqüência, do ponto de vista interno, é uma dívida que se acentuou nos anos 90 e que mantém tendência de crescimento, sem perspectiva imediata de reversão. E a dívida total do setor público já está próxima dos 60% do PIB.
Foi feito um grande esforço para conter a dívida de estados e municípios, renegociar esses débitos nos últimos anos, mas ainda assim ela chega próximo de 20% do PIB.
O quinto bloco de problemas relaciona-se à reestruturação econômica. A utilização da capacidade industrial sofre uma ligeira tendência de declínio, mas de qualquer forma está em torno de 80%. É claro que qualquer aumento de demanda pode fazer com que a indústria opere em ritmo um pouco mais elevado, mas ela está próxima do limite. O que aconteceu de importante foi uma reestruturação industrial em busca de maior produtividade e capacidade competitiva, que ainda é insuficiente para exportar em alta escala e com maior tecnologia. Por outro lado, há uma tendência bastante oscilante ainda, mas com um viés de baixa, do nível salarial na indústria, o que afeta o mercado interno, e o emprego industrial também se reduz relativamente ao do setor de serviços.
Outro conjunto de problemas refere-se ao quadro social. O rendimento dos assalariados está em queda prolongada, o que reduz o potencial do mercado interno e mantém a economia presa a esse empobrecimento. O lado perverso das políticas de estabilização impostas pelo FMI é que a recessão passa a ser o objetivo. Como não podemos aumentar as importações e o consumo interno, nem correr o risco de elevação da inflação e da perda de controle do processo econômico, a recessão passa a ser um fim, porque, com o país estagnado, esses fatos não causam problemas maiores. Estamos vivendo essa situação e empurrando com a barriga a questão da estagnação e da recessão. O resultado é o agravamento do quadro social. Normalmente os economistas não pensam nisso, mas é um dado de nossa realidade.
O desemprego tem dois aspectos. Aparentemente, ele é relativamente baixo no Brasil, sempre inferior a 10%. Mas esse é o desemprego aberto, estatisticamente levantado entre aqueles que não estão empregados naquele momento ou que perderam o emprego. Não se leva em conta o subemprego e os trabalhadores não registrados. O que nos diferencia talvez da Argentina é que ela tem um índice de desemprego alto, mas que não é disfarçado como aqui. Isso provoca uma tolerância maior em relação à falta de trabalho. Se tudo fosse considerado desemprego a taxa seria muito mais elevada.
O número de pessoas abaixo da linha de indigência, nem falo de pobreza, ainda atinge cerca de 21 milhões no país, um valor bastante expressivo. Se somarmos a isso a pobreza (os critérios são muito elásticos), o total fica muito maior.
Finalmente, o sétimo grupo de problemas diz respeito à inserção do Brasil nos novos espaços econômicos. Qual será o destino do país? Ele se fortalece com o Mercosul, adquire maior poder de barganha para negociar com a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), ou o Mercosul se dissolve e o país entra na Alca de forma menos impositiva? Essa é uma questão séria, e as relações internacionais também adquirem outra dimensão à medida que os blocos econômicos não só defendem seus interesses como também se tornam competitivos. Então aquela velha tradição brasileira de estabelecer um comércio exterior mais equilibrado, mais bem dividido entre os diferentes blocos, se alterou. Hoje, um terço das exportações praticamente vai para o Mercosul. É importante definir nossos relacionamentos comerciais, principalmente o modo como o Brasil vai se inserir na Alca.
Quanto ao governo Lula, penso que não vai ser muito diferente do de Fernando Henrique. Vai se formar um centrão em torno do PT, uma parte dele provavelmente se tornará mais radical e, enfim, se separará do partido. Um grupo do PSDB talvez também se destaque e se junte ao centrão, com o nome fantasia de socialdemocracia, que vai governar o país da mesma forma, mantendo os acordos firmados. Concordo com Robert Appy que o futuro governo não tem como sair dessa situação, pois os compromissos já estão assumidos. O que pode surgir é uma postura de afirmação nacional, que não houve no governo Fernando Henrique. É uma diferença que hoje é exigida pela própria sociedade, um posicionamento melhor do país no cenário internacional.

JOSUÉ MUSSALÉM – Também acredito que não vai haver tanta diferença entre o governo de Lula e o de Fernando Henrique Cardoso. Pelo menos nos dois primeiros anos, até porque os problemas estão aí. Os desafios a enfrentar são semelhantes, como as reformas fiscal, tributária e previdenciária, a elevada dívida interna, a questão da estabilidade monetária, o esforço exportador, a reconstrução do Mercosul, os acordos com a União Européia e a provavelmente difícil negociação que vamos ter com os Estados Unidos a respeito da Alca. E há outros desafios, como a segurança pública, o emprego, a saúde pública. É muito séria a situação da saúde no Brasil, que não se mensura apenas pela qualidade ou pelo número de hospitais, mas também pelo saneamento básico. O investimento necessário no setor de água e esgoto é da ordem de R$ 45 bilhões em cinco anos, ou seja, uma média de R$ 9 bilhões anuais, valor bastante superior ao limite máximo de investimento previsto pelo Orçamento Geral da União para 2003, que é de R$ 7,3 bilhões.
Outros desafios para o novo governo: na área política, a construção de uma base parlamentar no Congresso. A questão é a articulação política com o objetivo de aprovar as reformas fundamentais. A Receita Federal declarou recentemente que a arrecadação tributária atingiu 34,6% do PIB em 2001. Em 2002, provavelmente ultrapassaremos os 35%, e assim chegamos ao limite da capacidade contributiva da sociedade brasileira. É difícil entender uma arrecadação tributária que se aproxime de 40% do PIB, quando a taxa de retorno, a contraprestação de serviços sociais, equivale a praticamente zero.
Outro problema será a negociação com o Congresso sobre a reestruturação do sistema previdenciário do setor público. Em artigo publicado na "Gazeta Mercantil", o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Carlos Eduardo Moreira Ferreira, discorreu sobre a gravidade da situação previdenciária brasileira no setor público, pois o déficit é brutal, muito maior do que o do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Chega a superar os R$ 30 bilhões por ano, que estão sendo cobertos com esforço pelo Tesouro Nacional.
Os desafios de ordem econômica já foram muito bem tratados aqui, e vou dar ênfase à questão da administração, ao alongamento da dívida interna e à estabilidade da moeda, com vigilância permanente sobre o sistema de preços. Temos hoje um sistema livre de preços e a indexação não voltou, embora recente artigo de José Paulo Kupfer diga que ela está de volta, ainda que de forma muito discreta. O que se observa é que os preços estão subindo, inclusive os que não dependem tanto das importações, ou seja, há um movimento de reajuste de preços.
Nosso grande problema está na taxa de juros e na administração da dívida. Temos de fazer um esforço por uma menor dependência de fluxo de capitais estrangeiros no médio prazo. Temos também de reduzir a necessidade de financiamento do setor público, e para isso precisamos de reformas fundamentais, tanto a fiscal e tributária quanto a previdenciária. Outro ponto é a manutenção do esforço exportador, sem comprometer a oferta interna. Julian Chacel falou sobre isso, citando as commodities que subiram de preço. Mas vejam que não importamos frango nem soja, e esses dois produtos ficaram mais caros no mercado interno, porque as exportações cresceram muito em função da alta do dólar. A produção brasileira de soja e frango está indo para o exterior, e a oferta interna cai, com impacto sobre o sistema de preços e sobre a taxa de inflação. Finalmente, precisamos aumentar, no médio prazo, a capacidade de investimento do setor público.
Os desafios de ordem social também são vários. As chamadas políticas compensatórias na área de segurança, educação e saúde são fundamentais para qualquer governo. É necessária uma recuperação gradativa do poder de compra da população, principalmente da de baixa renda. Isso somente será possível com um esforço concentrado num setor fundamental, que é a construção civil. Temos um déficit declarado de 5,5 milhões de habitações no Brasil. Se construíssemos 300 mil por ano, em quatro anos haveria 1,2 milhão de novas casas. Imaginando uma média de cinco trabalhadores empregados por habitação popular teríamos pelo menos 6 milhões de empregos.
Quanto à segurança pública, precisamos reformar sua estrutura, e isso passa pela Justiça. Para ter uma idéia, aconteceu em Pernambuco uma operação chamada Vassourinhas, o nome de um frevo famoso no estado. Cento e dez agentes federais de outros estados chegaram num avião da FAB e prenderam 16 personalidades, entre empresários, o delegado da Polícia Federal, secretários de municípios, etc., de uma só vez. Foi uma ação do Ministério Público, que tinha comprovado a corrupção dessas pessoas. Em três dias, porém, todas estavam soltas. Então não basta combater a corrupção, sem modificar o estamento da Justiça no Brasil. A legislação hoje é uma facilitadora da corrupção e do crime no país.
Com relação à política internacional, temos de recompor o Mercosul. Sofremos uma perda brutal de exportações para a Argentina, e isso se reflete na negociação do Brasil com a Alca e com a União Européia. É preciso melhorar a competitividade dos produtos argentinos e brasileiros, para enfrentar os europeus, notadamente na área de barreiras não-tarifárias. E expandir nossas vendas para a China e demais países asiáticos. Porque negociar a Alca com a maior potência econômico-militar do mundo não será fácil.

CARLOS ALBERTO LONGO – Levando em conta o que se falou aqui, existe uma razoável unanimidade sobre os diagnósticos da crise e saídas para ela. Concordo com o que disse Julian Chacel: os graus de liberdade são muito pequenos para o governo. Dá para perceber que, passados os três ou seis meses iniciais, o governo do PT vai adquirir uma característica, dentro daqueles ciclos normais da economia, de crescimento a qualquer custo, com inflação em ascensão. Vamos entrar no ciclo do Estado ativista, do nacionalismo progressista, porque é com base no crescimento que se empregam mais pessoas e, portanto, se resolve o problema do carro-chefe da economia, ou seja, a questão social, do emprego e da distribuição de renda. Obviamente, temos de nos preocupar com isso, porque, quando se fala de inflação de 5% ou 7%, como disse Robert Appy, parece uma brincadeira. Se analisarmos os índices de preços dos últimos trimestres, já estamos prevendo 20%, no mínimo. A inflação vai subir muito e a taxa de juros nominal não terá como cair. Pode até haver uma queda no começo, mas voltará a crescer para acompanhar a inflação em alta. A taxa real de juros provavelmente vai ser muito baixa, o que de certa maneira compromete alguns fundamentos da economia, como, por exemplo, o atual superávit comercial. Mas isso mais adiante, porque por enquanto os fundamentos estão justificando certa exuberância no comércio exterior.
Então vamos passar por um ciclo bastante conhecido no Brasil, de nacionalismo progressista, em contraponto ao chamado liberalismo estabilizador, por assim dizer, que foi claramente a linha do último governo e que foi, por exemplo, a adotada pelos ministros Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos depois da revolução de 64. É mais um ciclo, agora de expansão, que vai perdurar até um novo mandato para o governo petista.
O segundo comentário é a respeito do estilo do governo. Ele procura o consenso, gosta de dialogar, de orçamentos participativos. Penso que haverá uma tendência natural, levando em conta as personalidades envolvidas, para uma atuação até autoritária. Vamos sentir um pouco de saudades da cordialidade do atual presidente, desse diálogo franco, talvez até exagerado mesmo – essa é uma crítica que se faz a Fernando Henrique, a falta de ação em alguns momentos em que havia necessidade de apresentar determinados projetos, coisa que não foi feita exatamente pelo excesso de paciência e disponibilidade para conversar.
Meu temor em relação ao futuro é exatamente esse voluntarismo que pode beirar a soberba do novo presidente.

ISAAC JARDANOVSKI – A certa altura do processo eleitoral de 2002, o candidato Ciro Gomes trouxe um economista brasileiro de prestígio internacional, José Alexandre Scheinkman, para assessorá-lo, muito ligado aos pesquisadores que receberam o Prêmio Nobel por terem "descoberto" a influência da psicologia na economia. Scheinkman reuniu um grupo de economistas que elaboraram um documento chamado Agenda Perdida. Gostaria de saber se alguém poderia dar um flash sobre o conteúdo desse documento que não chegou a ser endossado por Ciro Gomes, nem foi divulgado por nenhum dos candidatos.

CHACEL – Foi uma reunião de 17 economistas de diferentes correntes que teve lugar, sem nenhum compromisso, na Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. O relator foi o professor Marcos Lisboa, um dos economistas da Escola de Pós-Graduação em Economia daquela fundação. Li a Agenda Perdida e não gostei. A começar pelo título: se temos de olhar para o futuro, por que uma agenda perdida? Havia muito pouco de política macroeconômica, tema que ficou vinculado à participação do professor Affonso Celso Pastore. Na verdade, o objetivo dos economistas que redigiram o trabalho era sublinhar questões que chamavam de microeconômicas, mas que para mim são apenas trabalhadas num nível menor de agregação do que na formulação da política macroeconômica, que joga sempre com taxas de câmbio, de juros e finanças públicas. Digo isso porque uma das questões debatidas foi a estrutura da taxa de juros, e aí cabe lembrar aos senhores que a taxa Selic não garante absolutamente o valor dos juros aos tomadores de empréstimo. Ela é apenas um nível a partir do qual vai se estruturar a taxa de juros do mercado para os negócios, sobretudo do comércio. Existe a cunha fiscal, a taxa de inadimplência, o recolhimento compulsório, a ordem do Banco Central, tudo isso para formar essa taxa, que em muitos casos atinge uma altura alucinante. Esse foi um dos pontos tratados nesse trabalho. O que se conclui da agenda na verdade é o seguinte: temos um país, no seu conjunto, de baixa eficiência, mas, se se adotasse uma série de medidas pontuais, essa eficiência poderia ser melhorada e então se esboçaria um caminho para a reconstrução da economia e para a saída da crise. Era fundamentalmente essa a natureza do trabalho. Mas em termos de política macroeconômica, que no caso me parece realmente a questão fundamental, muito pouco foi dito, duas páginas e meia apenas.

VAMIREH CHACON – Tenho três perguntas a fazer, que dirijo a nossos economistas. Primeira: quanto por cento e por que grande parte da dívida interna brasileira está dolarizada? Segunda: como será possível renegociar a dívida interna dolarizada? Não estou me referindo à externa nem à interna não dolarizada. Terceira: o que será melhor, câmbio flutuante ou controle cambial, de que modo e até que ponto?

CHACEL – Em relação à dívida dolarizada, se fizermos um retrospecto fica claro que foi um erro de política econômica e financeira colocar títulos ajustados ao câmbio. Grosso modo, isso deve representar entre 30% e 40% da dívida pública interna. Penso que uma forma de resolver o problema seria fazer uma troca de títulos, que ficariam de alguma forma indexados a um indicador de preços interno.

CHACON – Desdolarizar, então.

CHACEL – Desdolarizar, mas através de uma indexação, que seria o elemento de garantia substituto da taxa cambial.

MUSSALÉM – Complementando o que Julian Chacel disse, penso que a dívida dolarizada está em torno de 35% a 38% (o último dado do Banco Central) do volume total da dívida, que deve ter ultrapassado 60% do PIB no mês de setembro de 2002. O grande problema é o vencimento dessa dívida, de curtíssimo prazo. O Banco Central avaliou mal a capacidade de a especulação fazer o dólar subir e, evidentemente, a capacidade de o sistema internacional conter o fluxo de financiamento das exportações brasileiras. E então, para mostrar que o dólar não explodiria, para dar mais credibilidade à rolagem da dívida, dolarizou uma parte dela, que já está sendo renegociada. O problema é que os banqueiros que estão ganhando muito dinheiro na sobrevalorização do dólar exigem uma taxa de juros muito maior do que se possa imaginar, chegando até a 50% ao ano. Diariamente estamos com problemas de rolagem da dívida. O Banco Central não divulga isso claramente, e os banqueiros também não têm interesse em dizer que estão lucrando muito. O certo é que neste país banqueiro está cada dia mais rico.

APPY – Não há dúvida de que temos de manter o câmbio flutuante. Sem ele, o Brasil hoje estaria numa situação mais do que dramática.

ISAAC – Seria a da Argentina, provavelmente.

APPY – Câmbio flutuante não significa flutuação totalmente livre. O governo tem razão em intervir, só que aquele que começa em janeiro terá pouca munição para fazer isso, porque as reservas estão baixas.

CHACON – Quais os controles cambiais previsíveis?

MUSSALÉM – Robert Appy falou na centralização do câmbio. Ao adotá-la, ficaríamos numa situação não igual à da Argentina – que tem uma economia bem diferente da nossa –, mas semelhante, diante da sobrevalorização da moeda norte-americana. Ao aceitar o modelo de fornecedor de dólares ao mercado, o Banco Central está se transformando em mero provedor de moeda forte para quem quiser comprar. O que deveria fazer era definir o perfil de pagamentos que temos de fazer ao exterior, quem vai pagar dólares e quem não vai ter condições de rolar a dívida com o credor estrangeiro. Nesse caso o Banco Central venderia os dólares necessários à rolagem da dívida a um preço menor do que o praticado no mercado. Não seria uma centralização do câmbio, mas uma certa coordenação para sair desse erro cometido pelo Brasil.

ISAAC – O termo que está sendo usado eufemisticamente é contingenciamento na liberação dos dólares. Isso na verdade é outro nome para o calote. É um começo de calote o Banco Central decidir para quem e quanto libera, para não chegar a nível zero de reservas, que é um risco que existe.

EDUARDO SILVA – Comentando os dados apresentados por Josef Barat, concluímos que a situação do Brasil nas décadas de 1950 ou 60 estava melhor do que a de hoje. Todos os índices importantes decresceram. Será que o país está pior? Penso que não. O que está acontecendo é que nossos políticos deixaram de cuidar da administração. Mário Covas, quando assumiu o governo de São Paulo, disse que ia dar um choque de capitalismo. O que era isso? Era a paixão dele pela administração. Ele conseguiu em boa parte sanear o Estado com uma administração cuidadosa, minuciosa.
Acredito que ou Lula consegue imprimir uma administração muito forte, não no sentido do autoritarismo (vejo esse risco também), mas montando uma equipe coesa, dando as diretrizes necessárias e trabalhando mesmo na administração, ou vamos ter muita cobrança, resultado dessa paixão que ele despertou na população, desejosa de grandes mudanças.
Quando as coisas estiverem mais difíceis, a tendência será endurecer o discurso, e então podemos correr o risco de cair outra vez na batalha ideológica, que não leva a lugar nenhum.
Último comentário: durante os anos de inflação, dizia-se que nosso maior adversário era o surto inflacionário, que tinha de ser debelado. Hoje, parece que as pessoas se tornaram mais transigentes, aceitando sem problemas um pouquinho de inflação. Sinto que isso é falta de perspectiva mesmo. Não podemos deixar para trás as conquistas alcançadas.

BARAT – Os dados apresentados não mostram necessariamente que o país piorou, o que tentei mostrar são fatores estruturais, que acompanham a economia já há algum tempo. É claro que o país melhorou sob muitos aspectos. Por exemplo, hoje é difícil vender a idéia de que a inflação é um instrumento necessário ao desenvolvimento, e há 20 ou 30 anos isso era aceito. Então o discurso ideológico fica mais apagado diante dessa realidade.

NEY PRADO – Pode-se observar, por este debate, que a economia brasileira está vivendo quatro grandes crises. A primeira é a da legalidade. Nossa ordem jurídica está totalmente caótica, a Constituição de 1988 tornou o país ingovernável. A restrição à emissão de medidas provisórias vai criar limitações à tentativa do governo de adequar a ordem jurídica a seus propósitos. Isso está gerando insegurança econômica, o temor de que os contratos não serão respeitados, o que já está acontecendo. Enfim, estamos vivendo aquilo que o professor Miguel Reale chama de autoritarismo normativo. O Supremo Tribunal Federal tem tentado adequar a Constituição, que é casuística, muito mais do que analítica, às necessidades do país, principalmente na área econômica.
A segunda macrocrise é a da legitimidade do sistema econômico. Por mais que defendamos a economia de mercado, a verdade é que vivemos o neoliberalismo baseado no Consenso de Washington, uma conspiração internacional para transformar a globalização em algo pernicioso aos países emergentes.
Há outra macrocrise, que é a da licitude, a justificativa ética da economia. Para muitos brasileiros, o sistema é profundamente injusto, excludente, há beneficiários manifestos, notório desemprego e redução salarial. Tudo isso transforma a economia, do ponto de vista da licitude, em algo injusto.
Mas existe ainda a quarta macrocrise, a da funcionalidade. O sistema não está funcionando. Quando falo em funcionalidade, o objetivo é mostrar os resultados concretos. Muito embora alguns deles sejam notórios, ainda assim são insuficientes em razão da demanda e das expectativas da sociedade. O regime econômico brasileiro, tal qual posto hoje, se transformou em algo disfuncional, gerando pessimismo.
Se o quadro é esse, que prognóstico podemos fazer? Somente um pessimista. Como são macrocrises, as medidas de microeconomia encontrarão diversas barreiras que vejo quase insuperáveis.

ISAAC – Uma observação sobre o sistema financeiro, crucificado não só aqui como em todos os fóruns de debates. Gostaria de lembrar que esse sistema não existe como entidade autônoma comandada por banqueiros, é um braço armado do governo, sempre foi. É o instrumento usado pelos governantes para arrecadar, rolar títulos. É o governo que estabelece as regras do jogo, as taxas de juros, as chamadas cunhas fiscais e os depósitos compulsórios. Quem não foi competente nesse setor, quebrou. Nos últimos cinco anos o Brasil perdeu três de seus dez maiores bancos. Então, qual é o negócio? O negócio é o governo, não o banco. Isso vale também para países. O Japão está quebrado há 20 anos por causa da insuficiência de garantias assumidas pelo sistema financeiro e não consegue sair da crise. Os bancos japoneses aceitaram como garantia créditos podres ou investimentos imobiliários superavaliados nos Estados Unidos, que logo depois caíram para um terço de seu valor. Se no Brasil não se tivesse tomado alguma iniciativa como as do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), a situação estaria muito pior do que no Japão e na Argentina. Estou lembrando isso porque ouço continuamente dizer que o drama do Brasil é o lucro dos banqueiros.

MUSSALÉM – O Banco Central é sócio do sistema financeiro. Ele dita as regras de partida, só que elas são mudadas no meio do jogo, e quem muda são os banqueiros. Por exemplo, no momento em que você precisa rolar a dívida mobiliária indexada ao dólar, o sistema financeiro pede 50% de juros e não valem os 18% da taxa Selic.

ISAAC – Quem pede isso são os estrangeiros, que não têm confiança na moeda brasileira. Os bancos nacionais vão na onda.

LONGO – É freqüente a crítica aos bancos, mas não podemos esquecer que o banqueiro não passa de um corretor de negócios, que não tem capital próprio. Então quem pede uma taxa de juros alta para rolar os títulos não é o banqueiro, é o captador. Sem o captador, não existe o banco.

ISAAC – Aliás, estão falando em inflação, em indexação. Ela está de volta a todo o vapor. A grande opção de investimento oferecida agora pelos bancos são aplicações indexadas ao IGP-M, que não existia até poucos meses atrás, IGP-M mais "x" por cento. Isso é indexação.

MÁRIO AMATO – Por que o Brasil está assim? Tivemos três gerações perdidas sob o ponto de vista da ética, envolvidas por muita corrupção. Não há procedimento no Brasil que não seja corrompido, é coisa raríssima. Isso atinge as casas legislativas e, o que é pior, até o próprio Poder Judiciário. O governo do país reflete a qualidade do povo.
O que me consola é verificar que hoje as firmas têm o contrato social. Os empresários estão defendendo sua sobrevivência. Vai chegar um ponto em que ou fazemos isso ou perecemos.
Gostaria de dizer que não sou contra o Lula, a quem conheci por anos seguidos, e que é uma pessoa determinada. O pior é o lado esquerdo, que é tinhoso. Eles não seguem a razão, mas a emoção. Tenho a impressão, como patriota, de que podemos sofrer um retrocesso. Penso até que a pessoa indicada nem fosse José Serra, mas pelo menos ele estaria seguindo na mesma direção do atual governo. Meu temor é que vamos, em vez de evoluir, involuir. Como brasileiro, fico amedrontado com a situação, mas sou otimista, porque já vencemos muitas crises.

JACOB KLINTOWITZ – O PT na verdade é uma composição, neste momento, de grupos religiosos populares não-doutrinários. São grupos religiosos, do ponto de vista sociológico, demagógicos. E a outra parte, a que se chamava antigamente de pequena burguesia, que hoje se localiza no funcionalismo público e no pequeno empresariado, traz grande demanda que o país não tem como resolver. Esse fenômeno ocorreu em outros lugares, como na China, onde resultou na famosa revolução cultural. Morreram milhões de pessoas, e o país teve arrasadas sua tradição mais do que milenar, sua estrutura cultural e religiosa. Aconteceu na Argentina com a chegada de Domingo Perón, que implantou um tipo de sindicalismo e, a pretexto da inclusão social, destruiu o país, que na época era o sexto do mundo em qualidade de vida. Também ocorreu na antiga União Soviética.
A organização do orçamento participativo não é outra coisa senão o controle implementado pelos soviéticos, de bairro a bairro, o controle cotidiano da vida das pessoas, com a delação, a perseguição. Não quero me estender muito, mas podia citar que também na Alemanha aconteceu esse fenômeno. Quando ocorre, você pode dizer que é de esquerda ou de direita. Aqui, diante dessa composição, seria de extrema direita na verdade, não de esquerda. Mas tanto na esquerda como na direita o fenômeno é igual, já que há ressentimento e tentativa de responder a uma demanda, independentemente de razões objetivas. Isso implica a escolha permanente de inimigos, porque, como não se pode fazer a coisa, o inimigo tem de existir. É o resquício burguês na China ou é o comerciante, que, inclusive na linguagem atual, deixou de ser comerciante, virou atravessador. Então fatalmente se escolherão inimigos que não permitem que o país avance. Ou serão os industriais, como se dizia na Argentina, ou os que não professam os mesmos credos, ou os considerados internacionalistas. Seja o que for, teremos como tendência histórica o fechamento do país e a perseguição a segmentos da sociedade.
A pergunta é: esse possível fechamento, essa perseguição paulatina aos "inimigos" da pátria, que efeito terá sobre o país do ponto de vista econômico?

MUSSALÉM – Eu não teria esse receio porque, alguém disse aqui de forma muito inteligente, é a direita do PT que ganhou as eleições. O grande arco de alianças que está sendo feito é voltado para as forças políticas de direita.
Além disso, não existem mais paradigmas comunistas no mundo. Tivemos o desmoronamento da União Soviética, Cuba é uma ficção e a China hoje é mais capitalista do que os Estados Unidos. Pela inexistência de um modelo mundial, vejam o que aconteceu em alguns setores da Igreja Católica no Brasil depois do fim da União Soviética: vários padres da chamada teologia da libertação deixaram a Igreja.

KLINTOWITZ – Um reparo. Eu não estava falando de comunismo. Penso que a tradição do domínio da pequena classe média, mesmo no regime militar, resultou em fechamento, em perseguição, em escolha de inimigos.

CHACEL – Tenho alguns comentários. Há não muito tempo se dizia que o ciclo econômico estava morto, que não havia mais essas alternativas de fases de prosperidade seguidas de fases de depressão e depois de nova fase próspera. No plano mundial percebe-se agora que isso não é verdade. O ciclo econômico está mais vivo do que nunca, reabilitando a escola austríaca de pensamento econômico. Nas circunstâncias de hoje existe um fenômeno do conhecimento de todos que distingue o ciclo econômico mundial dos anteriores. Antes, quando uma economia líder entrava em recessão, havia uma outra em fase de prosperidade, de modo que existia uma compensação que impedia que a perda de atividade econômica em nível mundial fosse muito forte. Hoje assistimos a um fenômeno de convergência de uma atividade econômica comparativamente baixa. Relembro por conseguinte que na experiência histórica a verificação empírica que fizemos é de que a economia brasileira não tem crescimento autônomo, é dependente da evolução mundial. Portanto, o discurso de retomada de crescimento tem de ser recebido com grande reserva. Diria até que o novo governo corre o risco de frustrar uma expectativa da nação ao acentuar que o Brasil pode crescer de 5% a 6% ao ano num período relativamente curto de tempo.
Segunda observação: como foi dito aqui, haveria um teor maior de nacionalismo do próximo governante. Não imagino nada assim ostensivo, mas uma medida possível talvez seja a adoção do sistema chileno de controle da entrada de capitais. Não da saída, mas da entrada, controle que teria uma destinação seletiva para este ou aquele setor da economia, dependendo da política macroeconômica que viesse a ser desenhada.

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