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Tragédia anunciada

Postado em 01/01/2003


Polícia militar em ação em Sâo Paulo / Arquivo PB

Diagnóstico feito há mais de 20 anos permanece terrivelmente atual

ROBERTO HOMEM DE MELLO

"Numa comunidade do Rio de Janeiro, ironicamente denominada Cidade de Deus, que ocupa uma área de 900 mil metros quadrados e na qual habitam 90 mil pessoas, provenientes de quatro grandes favelas, erradicadas em 1966, quatro quadrilhas disputam o controle do local e só este ano eliminaram 33 vítimas."

O ano era 1979, e ainda não havia acabado. Em 11 de outubro, em reunião na Federação do Comércio do Estado de São Paulo, registrada por Problemas Brasileiros, o sociólogo José Arthur Rios expunha uma pesquisa sobre crime e violência no Brasil, que pouco depois apresentaria ao governo federal.

Após algumas considerações gerais, Rios destacou o caso específico daquele bairro carioca, com informações de uma matéria publicada em 30 de setembro daquele ano no "Jornal do Brasil". A reportagem falava de invasões de lojas e casas para busca de proprietários e moradores, que em seguida eram executados. Mencionava que depois das 20 horas não se saía à rua, por medo de bala perdida "ou encomendada".

"As quatro quadrilhas mantêm guerra constante nesse conjunto e em suas áreas respectivas exploram o tóxico, o jogo do bicho e o assalto à mão armada. Quem passa de uma área para outra é considerado invasor. Crianças de 7 a 8 anos são utilizadas como ‘aviões’, ou seja, vendedores ambulantes de tóxico. Nessa ‘comunidade’ funcionam escolas cujos professores e alunos se sentem permanentemente ameaçados. Uma menina de 10 anos, ao cruzar a rua, foi abatida num tiroteio." A matéria dizia ainda que os policiais que moravam na Cidade de Deus não denunciavam ninguém, por medo de represálias contra seus familiares.

Por fim, José Arthur Rios explicou por que havia aberto espaço em sua palestra para essa reportagem: "A Cidade de Deus nos parece um caso típico de violência urbana à brasileira, que ameaça generalizar-se ante a impotência das autoridades".

Oscar

Mais de 20 anos se passaram. Nova ironia: o filme indicado para representar o Brasil na disputa pelo Oscar de 2003 chama-se Cidade de Deus. E é inspirado em fatos reais, que o escritor Paulo Lins diz ter visto "da sua janela", exatamente no mesmo bairro mencionado acima.

Se estiver entre os finalistas, o filme colocará os jurados do maior prêmio do cinema mundial diante de uma realidade chocante: a situação de abandono em que vive a população da periferia de nossos grandes centros, onde a única coisa capaz de prosperar é a criminalidade.

Afinal, ali estará um retrato de como as condições de vida no bairro foram se deteriorando na mesma proporção em que a organização dos grupos criminosos evoluía. Os bandos reunidos ocasionalmente para praticar pequenos roubos aos poucos se transformam em quadrilhas altamente organizadas, que ditam as regras na comunidade. E que usam armamentos militares obtidos clandestinamente para punir rivais e desafetos, enquanto a polícia é mantida distante à custa da propina oriunda do tráfico de drogas.

Transportado para dentro da arena dos conflitos que conhece apenas pelos jornais, o espectador vê estarrecido crianças manejando armas com desenvoltura, convicção e frieza.

Embora a narrativa, que começa na fundação do bairro, vá apenas até os anos 80, o filme é de uma atualidade impressionante. Artigo do jornalista Arnaldo Jabor diz que ele "mostra o que está acontecendo agora, sem parar, enquanto o assistimos ou lemos estas linhas".

Se fosse uma reportagem, no entanto, a película teria mais uma má notícia, que o espectador, ao menos o brasileiro, já sabe: na verdade, a situação atual é ainda pior, e atinge a todos, como se vê todos os dias nos noticiários.

O grau de sofisticação e ousadia alcançado pelos criminosos começa a encorajá-los a atacar o Estado, como mostrou a investida com tiros de metralhadora contra o Palácio Guanabara, sede do governo estadual fluminense, em outubro de 2002. Ou a rebelião simultânea em 29 presídios paulistas, coordenada pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) por meio de uma complexa teia telefônica que permitia a comunicação dos detentos com companheiros fora das grades e até em outras prisões, em fevereiro de 2001.

A escalada da violência foi igualmente denunciada em outra edição de Problemas Brasileiros, em novembro de 1991, cuja chamada de capa, pode-se dizer hoje, continha algo de profético: "E o traficante se fez governo". Em palestra proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o cientista social Homero Icaza Sanchez chamava a atenção para o vácuo provocado pela ausência do Estado nas comunidades carentes da periferia das grandes cidades, o qual era logo preenchido pelos comerciantes de drogas. Mais de 11 anos depois, o que era um alerta se tornou realidade.

O medo do crime organizado é uma face bem evidente de um quadro geral de aumento da insegurança. Em setembro de 2002, uma pesquisa de opinião do instituto Datafolha revelou que a falta de segurança era considerada o pior problema do país por 18% dos brasileiros, atrás do desemprego, citado por 42% dos entrevistados, mas à frente de saúde (8%), educação (6%) e fome e miséria (5%).

Os (poucos) indicadores criminais disponíveis atestam o crescimento da violência. Segundo dados oficiais, em 1979 pouco mais de 11 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Em 2000, esse número já era mais de quatro vezes maior: 45.919 homicídios.

A tragédia é maior nas cidades de deus espalhadas pelo país. O Mapa da Violência, que leva a assinatura da Unesco, órgão das Nações Unidas dedicado à educação, ciência e cultura, mostra que o salto nas taxas de homicídio é puxado pela grande incidência entre jovens de 15 a 24 anos do sexo masculino que vivem nas capitais do país. Em 2000, a taxa de mortes por agressões nessa parcela da população chegou a 98,8 casos por 100 mil habitantes, cifra 109,3% superior à da população total das capitais e 265,9% acima da média brasileira.

"Houve um crescimento muito grande da violência nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil", diz o sociólogo Paulo de Mesquita Neto, secretário executivo do Instituto São Paulo contra a Violência. Segundo ele, resultado da combinação de problemas econômicos, sociais e urbanos, intensificados nesse período, com a ausência de iniciativas que poderiam pelo menos amenizá-los: reformas nas instituições policiais, judiciais e prisionais e produção de estatísticas que dessem referências confiáveis e precisas para as políticas de segurança pública. "Nesse contexto, as oportunidades para o crescimento da violência e da criminalidade são enormes", conclui Mesquita Neto.

Quadro sombrio

A inação oficial é confirmada quando se percebe que, em 1979, José Arthur Rios fazia um diagnóstico que vale ainda hoje, em quase todos os seus pontos. Ele condenava, por exemplo, o formalismo e o excesso de burocracia dos órgãos de execução da Justiça e o congestionamento das penitenciárias, "que se transformaram em depósitos de presos ou, ainda pior, em escolas de criminalidade com seus requisitos de admissão, seus níveis de graduação e de pós-graduação".

Traçava também um quadro sombrio da polícia, que "entre nós não só tortura. Espanca e extrai confissões por métodos brutais, como também julga e aplica a pena capital". Em outro momento da palestra, afirmava que "as fileiras da polícia estão infiltradas de delinqüentes que ombreiam certamente com policiais honestos, mas o número de policiais associados com o jogo do bicho, lenocínio, furto de carros, seqüestros é nos últimos tempos espantoso".

Levantamento publicado pela revista "Veja" informava que, em 1999, havia 15 mil policiais acusados de crimes graves como roubo a banco, de carga, extorsão mediante ameaça, seqüestro, homicídio, tráfico de drogas e formação de quadrilha.

A impunidade e o corporativismo que resistem até hoje nas instituições policiais tiveram no regime repressivo que vigorou no país de 1964 a 1985 o ambiente propício para se fortalecer. "O sistema de segurança pública, tal como está aí, em grande parte responsável pelo descontrole que existe atualmente no setor, é, em linhas gerais, herança do regime militar. Foi criado para reprimir opositores, não para prevenir e controlar o crime", diz Mesquita Neto.

Essa questão não foi poupada na análise de Rios, para quem um obstáculo à prevenção e ao controle da criminalidade era "a confusão que se estabeleceu entre defesa social e segurança nacional". Segundo ele, a presença militar na segurança pública "introduziu padrões de prepotência e impunidade na polícia, sem melhorar a qualidade do recrutamento ou as técnicas de atuação".

Para Mesquita Neto, até hoje o sistema de segurança pública não foi capaz de se adaptar ao novo regime e aos novos desafios. Enquanto isso, multidões assistem perplexas a Cidade de Deus.

 

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