Postado em 01/01/2003
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Na prática, nossa lei magna continua a ser provisória
IVES GANDRA MARTINS
Comemora a revista Problemas Brasileiros 40 anos de existência. Muitas mudanças ocorreram no país, nesse período. De toda natureza: política, social, econômica, jurídica, cultural, esportiva, científica e em várias outras áreas de conhecimento.
Tivemos o regime presidencialista substituído pelo parlamentarismo – que não resistiu ao plebiscito de 1963 –, um presidente deposto, um regime de exceção instaurado em 1964 e a volta à normalidade autorizada pelos próprios detentores do poder. O primeiro presidente eleito contra o sistema não tomou posse e seu sucessor convocou uma Constituinte, que promulgou uma das mais extensas Constituições do mundo, na qual se tentou conciliar todas as teses socialistas com aquelas neoliberais. O resultado foi o texto ter sido emendado 44 vezes até agora, sendo o número de novos dispositivos introduzidos maior do que os constantes em toda a Constituição norte-americana e nas 26 emendas nela efetuadas ao longo dos últimos 215 anos!
Nada obstante os sucessivos remendos constitucionais, a lei suprema continua a ser provisória, havendo algumas centenas de propostas de emendas a serem examinadas pelo Congresso Nacional.
As 44 emendas dos últimos 14 anos – recorde absoluto no país e das "melhores" performances no cenário mundial – de rigor continuaram enfrentando a incompatibilidade de duas concepções diferentes hospedadas pela Carta de 1988.
Assim é que, enquanto os economistas favoráveis às leis de mercado concentraram-se na Comissão 7, que cuidou dessa área e estabeleceu a escultura constitucional de uma economia de perfil neoliberal, com prevalência da livre iniciativa, livre concorrência e planejamento econômico oficial apenas indicativo para o setor privado, as Comissões 3 e 8 receberam os economistas e adeptos do socialismo e do marxismo, gerando textos em que o funcionalismo público passou a ter direitos incomensuravelmente superiores aos dos trabalhadores do setor não-governamental e os direitos ditos sociais tornaram-se mais assegurados do que nos países desenvolvidos.
Esse conflito levou o Brasil à situação atual, em que a elevada carga tributária (35% do PIB) não é suficiente para atender à inchadíssima e imodificável máquina administrativa estatal (50% da receita da União e 60% da dos estados e municípios são destinadas exclusivamente ao pagamento da "mão-de-obra oficial"), assim como aos benefícios e proventos de aposentadoria para os servidores públicos, a grande causa do insuportável déficit da previdência.
E, como decorrência, os direitos sociais hoje pressionam a folha de pagamento em mais de 100% de seu valor, prejudicando o desenvolvimento do setor produtivo brasileiro.
Com carga tributária elevada, máquina administrativa esclerosada, onerosa e insuficiente e direitos sociais superiores até mesmo aos reconhecidos por países mais desenvolvidos, a economia não desabrocha, as empresas crescem menos do que o desejável, o nível de emprego diminui, a economia informal explode, não atendendo, o Estado, o mínimo de serviços públicos a que a população tem direito em educação, saúde e, principalmente, segurança pública.
Os 35% de receita tributária, em relação ao PIB, são destinados, em mais da metade, ao pagamento da mão-de-obra e aposentadoria oficial, não possibilitando, inclusive, a redução do endividamento, hoje na casa dos 100% do produto interno bruto.
Sendo obrigado a se responsabilizar por serviços que deveriam ser prestados pelo poder público, a sustentar uma administração desfigurada e onerosa, a exportar tributos, a concorrer no mercado interno com produtos estrangeiros menos tributados que os nacionais (sobre os artigos importados incidem menos PIS, Cofins e CPMF), a pagar juros elevadíssimos sem ter acesso a financiamentos externos, o empresariado nacional não encontra forças para superar – apesar do sensível aumento de produtividade e modernização – as amarras colocadas pela lei suprema, o corporativismo burocrático, a alta carga tributária e a concorrência desleal dos produtos estrangeiros "patrocinados" pelo poder público, visto que menos onerados tributariamente.
Alega o governo que não reduz a carga tributária porque necessita gerar "superávits primários", apesar de esta incidir mais sobre o produtor brasileiro do que sobre o estrangeiro, além de impedir a expansão do comércio exterior. E que parte dela, além da mão-de-obra oficial, é consumida em juros de uma dívida que só aumentou após a implantação do real, criando atmosfera de permanente preocupação nos meios financeiros externos e internos.
Não há dúvida de que grande parte dessas distorções é fruto da "Constituição Cidadã", de 1988, que criou uma federação maior do que o PIB, incapaz de ser sustentada pelo povo e pela classe empresarial.
Nos últimos 40 anos de sua história, o país passou por três diferentes regimes constitucionais, a saber, o da Constituição de 1946 – a melhor de todas, por ter, inclusive, entre os parlamentares que a elaboraram eminentes juristas –, o da de 1967, que incorporou 27 emendas em 21 anos, e o da Carta de 1988, já com 44 emendas, em 14 anos.
Nenhuma outra Constituição gerou tanta insegurança jurídica, apesar de o texto constitucional de 1988 ter colocado a "segurança" como um dos cinco princípios fundamentais, no capítulo dedicado aos direitos e garantias individuais e coletivos, que são cláusulas imodificáveis da Carta Magna.
De rigor, o constitucionalismo brasileiro, que principia com a promulgação, por dom Pedro I, da Constituição de 1824 – a mais duradoura de todas –, teve, com a proclamação da República (o marechal Deodoro acreditava ter derrubado o gabinete e não proclamado a República), um modelo importado por Rui Barbosa dos Estados Unidos e que deu forma a uma democracia de pouca representação popular e muita composição elitista, prevalecendo, a Constituição de 1891, até 1934, com muitas alterações.
A Carta de 1934 foi uma conquista da Revolução de 1932, que redimiu a gente de São Paulo, derrotada nos campos de batalha, mas vitoriosa nos ideais constitucionalistas. Durou três anos, até 1937. Naquele último ano, a 10 de novembro, Getúlio Vargas, com a colaboração de "Chico Ciência" (Francisco Campos), impôs a Constituição Polaca, que outorgava ao presidente poderes que englobavam, inclusive, o de desobedecer decisões da Suprema Corte. Dizia-se, à época, que o brilho de Francisco Campos era tão grande que quando as luzes de seu intelecto acendiam todos os fusíveis da democracia eram queimados.
O movimento de 1945, que derrubou o governo de Getúlio Vargas e impôs a Constituinte de 1946, gerou, de rigor, o melhor texto constitucional conhecido, sob cujo pálio nasceu a revista Problemas Brasileiros.
Oxalá, em breve, em seus próximos aniversários, esta publicação possa comemorar uma reforma constitucional capaz de viabilizar a melhor parte do texto atual, o que passa, necessariamente, por reformas política, administrativa, judiciária, tributária e previdenciária.
Tais reformas, todavia, são os desafios do próximo governo, que a Problemas Brasileiros acompanhará, ofertando a colaboração que os conselhos empresariais e acadêmicos das Casas do Comércio têm dado às autoridades, nos últimos anos.
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