Postado em 01/01/2003
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Temos bons artistas, mas pouco se exerce o pensamento crítico
JACOB KLINTOWITZ
É deliciosamente sedutor tentar apresentar o processo artístico através de sua evolução em décadas. E é mais emocionante ainda porque é tarefa impossível, pois as décadas não correspondem a uma escala mecânica e ascensional da arte. Nesse campo, a própria idéia de evolução, como uma linha que se dirige ao infinito, cada vez mais refinada e brilhante, é equivocada. A arte pode dirigir-se ao infinito, mas a de 2002, por exemplo, não é de modo nenhum superior à gótica do século 13. Desta maneira, a proposta da Problemas Brasileiros, de discorrer sobre os últimos 40 anos da arte brasileira, é ao mesmo tempo um estímulo e um desafio. Mesmo inalcançável por impossível, a própria utopia é fascinante e há muito a dizer sobre o tema.
Três vertentes permitem observar as tendências desse período. A primeira é a história e a presença dos artistas. A produção artística, as obras relevantes, as inovações, a vibração elevada da individualidade, a intuição sublime. A segunda vertente é o pensamento crítico, a capacidade reflexiva, o entendimento do que se passa, o diálogo público sobre a produção da arte e o circuito artístico, a interlocução do pensamento criador e reflexivo sobre e com a atividade artística, constituindo-se em visão crítica fundamental sobre o país exercida nos meios de comunicação de massa, em livros, conferências e cursos. A terceira é o percurso das instituições brasileiras, os museus, centros culturais, institutos, salões de arte, bienais. A atividade pública, as exposições, o investimento, a criação e produção de mostras temáticas, a recepção de obras internacionais.
Existem importantes artistas que devem ficar fora deste artigo. Eles marcaram nossa vida, contribuíram decisivamente para nossa história, mas, de certa maneira, sua obra esgotou-se antes da década de 60, nosso marco inicial. Tarsila do Amaral, por exemplo, morreu em 1973, mas sua produção já não contava muito, ainda que a influência de seu trabalho anterior, como atitude, persista nas novas gerações. Não examinaremos a arte como linguagem típica de cada década, pois, felizmente, ela está além das aparências. Mas o artista não está fora de sua época e há que criar com intuição renovada.
Adotamos como critério escolher alguns nomes que liderem e representem as principais tendências, cientes de que este tipo de resumo destaca-se pelo obrigatório esquecimento e omissão. E, forçosamente, as aproximações entre artistas se dão por alguns de seus aspectos. Seria possível e legítimo, na verdade, também distanciá-los por suas diferenças.
Israel Pedrosa é o mago da teoria das cores e criador de uma obra de alto vigor. Ele e Alfredo Volpi são os principais coloristas do país. Waldemar Cordeiro, líder do concretismo; Hélio Oiticica, dos Parangolés e Penetráveis; Antônio Dias, visceral e inquieto; Regina Silveira, a reflexão sobre a visualidade consensual; Lígia Clark, pesquisadora da arte relacional; Tunga, criador de improváveis esculturas; todos inventores de objetos e experimentalistas. Iberê Camargo, dramático e matérico pintor; Manabu Mabe, sensibilíssimo colorista; Fayga Ostrower, refinada formalista; Antônio Bandeira, idealizador de luminosas cidades, são as expressões do sentimento. Mário Cravo Jr. é o escultor mais inventivo do país; Aldemir Martins construiu uma visão brasileira do Brasil; Milton Dacosta, colorista e, posteriormente, geométrico, produziu uma obra de alto nível; Bruno Giorgi, criador do Meteoro, é nosso mais conhecido escultor; são artistas de alta individualidade. Yutaka Toyota, de reflexos iluminados, e Maria Bonomi, cuja obra pública renova a cidade brasileira, tornaram simbólica a linguagem contemporânea. Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Sérgio de Camargo são extraordinários escultores da vertente construtiva, com obras sensivelmente pessoais. Mira Schendel e Leonilson, artistas de gerações distantes, transformaram a sensibilidade, a delicadeza e a dor em sentimento do mundo. Rubens Gerchman, Henrique Leo Fuhro, João Câmara, Siron Franco, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, José Resende, Cláudio Tozzi, Mário Cravo Neto, César Romero e Daniel Senise, com seus solitários percursos, e em seus melhores momentos, verdadeiramente ajudaram a criar a fisionomia da atual arte brasileira.
Pouca crítica
A questão reflexiva, fundamental na criação de uma grande arte, lamentavelmente vem de derrota em derrota, no Brasil. Já tivemos, em levas sucessivas e concomitantes, escrevendo sobre arte, periodicamente, nos principais veículos de comunicação de massa de nosso país, intelectuais e críticos de nomeada. Para nos restringirmos a alguns nomes e ao período abordado, podemos elencar, entre outros, Mário Pedrosa, Jaime Maurício, Pietro Maria Bardi, Geraldo Ferraz, Mário Schemberg, Roberto Pontual, Harry Laus, Sheila Leirner, Olívio Tavares de Araújo, Ferreira Gullar, Quirino Campofiorito, Radha Abramo, Rubem Braga, Alberto Beutenmüller, Paulo Mendes de Almeida, Enock Sacramento, José Roberto Teixeira Leite, Walmir Ayala, Geraldo Edson de Andrade, Flávio de Aquino. Muitos desses comentaristas, com colunas permanentes em veículos como "Correio da Manhã", "Jornal do Brasil", "Tribuna da Imprensa", "O Estado de S. Paulo", "Folha de S. Paulo", revistas "Visão", "Veja", "Manchete", Rede Globo de Televisão. Hoje, a pretexto da fragmentação de assuntos e público, quase nada se publica de crítica e muito de reportagens genéricas e superficiais.
Ora, se a fragmentação vale como pretexto e argumento, não há como explicar a presença diária de colunas sobre política, economia, futebol, bolsa de futuros, etc., também setores que não interessam a todos.
Onde se exerce o pensamento crítico, em nossa sociedade ? Nas universidades, as sucessivas teses de mestrado e doutorado obedecem a regras rígidas de forma e exposição, limitando a ousadia e o risco. Artigos na mídia sobre assuntos do momento e em livros de arte e outros ainda são poucos e limitados. Resta a curadoria de mostras temáticas e individuais e, também nesse caso, dadas as peculiaridades nacionais, é bastante restrita ao patrocínio e à neutralidade não polêmica, seguidamente laudatória, das instituições. Também os cursos especiais ministrados por altas personalidades, a convite de universidades, bem pagos e com tempo de preparação, são inexistentes no país.
A ausência de crítica verdadeira impede a interlocução entre artistas e sociedade e dificulta a criação de uma grande arte. O que observamos na mídia de massa é a repetição mecânica de idéias e princípios, e a louvação não especializada, ignorante, temerosa e bajuladora das formas que aparentemente são da vanguarda ou da criação.
A ausência de pensamento crítico impede que se estude a forma no seu contexto estético e social. Ela passa a ser "natural", eterna, imobilizando a sociedade em seu processo permanente de transformação. Morre a metamorfose. Saúda-se a imobilidade.
Paradoxo
O circuito de arte mudou vertiginosamente no país. De poucas instituições, nos tornamos ricos em número e em atividades. O Brasil passou a fazer parte, em certa medida, do circuito internacional e recebe muitas mostras itinerantes. Hoje, temos dezenas de museus, institutos e centros culturais, departamentos de cultura. Nesse sentido, nos tornamos ricos e dotados de uma extensa e qualificada rede de locais adequados. Aqui, enfrentamos um paradoxo.
As instituições, em sua maioria, estão sendo dirigidas por grandes empresários, banqueiros, homens de negócios. Isso é bom. O que não é tão bom é que esses empresários, em boa medida, tenham se tornado verdadeiros curadores culturais das instituições. Não só são administradores e captadores de recursos, o que seria natural, mas orientam a linha cultural, o sentido das exposições, às vezes a própria montagem da mostra, fato que explica a perda acentuada de qualidade, substituída pelo simples espetáculo, tão a gosto das almas e mentes simples e kitsch.
Dessa maneira, esse avanço institucional enfraqueceu a gestão profissional e os conselhos de arte e cultura. Na verdade, essa "ocupação" se deve à extrema pobreza econômica brasileira nessa área. As instituições morrem por falta de dinheiro. E se tornam presa fácil dos que desejam lustrar o ego, construir uma imagem pública, satisfazer a vaidade. Ou os que, simplesmente, ignoram a complexidade de nossas questões culturais.
A esperança é que esses empresários, que ocupam e desempenham todos os papéis, sejam um fenômeno passageiro nesta transição para a maturidade e que, um dia, possamos administrar a cultura com o mesmo padrão e métodos semelhantes aos que vêm sendo utilizados nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão e outras dezenas de países desenvolvidos.
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