Postado em 01/01/2003
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De Guimarães Rosa ao sucesso dos novos magos da auto-ajuda
CECÍLIA PRADA
Teríamos a tentação de tomar o subtítulo acima como suficiente definição do que foi (ou melhor, do que não foi) a literatura brasileira nos últimos 40 anos. Os termos da proposição são válidos e revelam a realidade de uma trajetória decadente, uma onda de imbecilização alimentada por interesses marqueteiros que consegue colocar alguns autores nas listas dos maiores sucessos, impingindo-os ao gosto de multidões nativas ou alienígenas.
Mas a generalização seria leviana, injusta, falsa – implicaria a desconsideração (polarizada, afinal, por alguns prestidigitadores) da grande leva de escritores, poetas e ficcionistas, que nesses decênios continuaram empenhados naquela "luta pela palavra/que luta mais vã!" definida por Carlos Drummond de Andrade. Dos dois vetores componentes da expressão literária, prosa e poesia, foi este último sem dúvida o mais fluente, volumoso e presente nas últimas décadas – por sua própria natureza, a poesia consegue manter mais independência e imunidade em relação às novas tecnologias da comunicação. O movimento poético concretista dos anos 50/60, ligado ao das artes plásticas, opôs-se ao esvaziamento intimista da década de 40, repropôs alguns temas e formas do modernismo de 22 e revitalizou o gênero. Filiando-se a ele ou repudiando-o, as gerações seguintes souberam manter propostas elevadas de expressão poética e superar os inevitáveis modismos programáticos dos anos 60 para chegar ao século 21 com uma plêiade de talentos que na última década têm sido extremamente encorajados, pelo grande número de apresentações públicas, concursos e edições realizadas por editoras de médio porte.
Mas, no campo da prosa, especialmente no do romance, o panorama é bastante diferente. Quarenta anos atrás, encontrava-se a ficção brasileira em uma privilegiada posição – um ápice, jamais atingido desde então, pois os nomes que, entre vários outros, sobressaíam no plano internacional eram os de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O autor de Grande Sertão: Veredas, que somente conseguiu entrar para a Academia alguns dias antes de morrer, em 1967, era forte concorrente ao Prêmio Nobel. O início da década de 60 trazia a marca luminosa daquela época de efervescência cultural que foram os anos do governo de Juscelino Kubitschek. Na literatura, como nas artes plásticas e na arquitetura, na música popular, no cinema e no teatro, a livre circulação de idéias, o alto nível do ensino universitário, a euforia econômica constituíam o pano de fundo indispensável à manifestação da criatividade. A ficção brasileira, que caminhara a passos de gigante desde a ruptura modernista dos anos 20, esgotara as fontes regionalistas e se projetara, nos romances das décadas de 30 e 40 – com José Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo e principalmente Graciliano Ramos –, como fulcro de um pensamento social de caráter nacional. Refletia de maneira consciente o grande debate ideológico que se travava no mundo todo, "descobria" a nação explorada, subdesenvolvida, com suas mazelas e suas potencialidades. Era ponta de lança. E aguda.
A essa vertente literária somava-se outra, que começava a trabalhar o romance urbano diretamente com os aportes psicanalíticos, as rupturas estilísticas e o mixing de gêneros já presente há muito na literatura mundial. Havia convicções: a importância da literatura, a seriedade de propósitos, a grandeza do escritor, a necessidade da cultura, do aperfeiçoamento técnico-estilístico. Havia, 40 anos atrás, a separação nítida entre o que era e o que não era boa literatura. E havia, principalmente, um currículo escolar de orientação humanística que valorizava o escritor. Hoje, após o vendaval destruidor da reforma de base imposta pela ditadura militar, impera na escola a desvalorização do idioma pátrio, o desprestígio da literatura. Vivemos uma crise cultural gravíssima, expressa pelo contista José J. Veiga, em palestra realizada em 1995 para uma platéia de jovens: "Olhem bem para mim, prestem bem atenção em minha fisionomia, em meu tom de voz: eu sou uma espécie em extinção – um escritor".
Mas a crise da literatura não é, no presente, um apanágio brasileiro. Ela é ressentida em plano mundial. É complexa e vem sendo objeto de estudo de especialistas, e passa pelo esgotamento formal do gênero romance, depois das grandes rupturas e realizações do século 20. A crise da literatura é a da leitura. A crise da palavra escrita versus imagem, o predomínio do visual. A perda do leitor, inevitavelmente transformado em espectador deslumbrado, passivo e atônito do espetáculo da comunicação eletrônica – com toda a sua mortal potencialidade de assassinar o diálogo, a reflexão e a criatividade.
A web é o instrumento de um novo tipo de saber e uma verdadeira revolução tecnológica que pede a reformulação de conceitos e processos. É a democratização do saber. Mas os videotas e os webiotas crescem em proporção ameaçadora.
No caso do Brasil e de outros países em desenvolvimento, o paradoxo tecnológico é mais agudo. Recentemente a imprensa noticiou que o presidente Fernando Henrique Cardoso presenteara com um computador um garoto ganhador de um concurso – só que o menino não pôde usá-lo, pois morava em uma localidade que não tinha rede elétrica. Como lembra o escritor Deonísio da Silva, "temos 60 milhões de analfabetos – formamos a maior república de analfabetos do mundo. Não chegamos ainda à galáxia de Gutenberg e já estamos todos delirando diante das infovias tecnológicas. Corremos o risco de nos transformarmos em zulus eletrônicos. Ou em ágrafos manejando computadores".
Mas um outro fator veio influir na produção literária brasileira, a partir do final dos anos 60 – o político. Lembramos o que dizia Stendhal: "A política é, na literatura, o mesmo que um tiro de pistola no meio de um concerto". A questão do engajamento tornou-se imperiosa, pela própria força da repressão instaurada a partir do ato institucional nº 5. Na literatura como no teatro, todos tiveram de ir à luta. Edições foram censuradas e apreendidas, escritores e jornalistas presos. Diante do estilhaçamento de todas as liberdades, nada seria mais importante do que fazer frente à arbitrariedade e à injustiça. O chamado boom literário do início dos anos 70 era uma mobilização. Forçava o elemento subversivo, pretendia apressar a revolução, mas na realidade pouco representou, em termos literários. Escrevia-se como protesto, lia-se por desafio. Foi um belo momento, sem dúvida, mas fugaz – passado o qual, esvaíram-se o prestígio dos escritores do boom e o interesse do público. Simultaneamente, correntes autoritárias de esquerda aprisionavam o pensamento e instalavam uma cerca de arame farpado no domínio da literatura, da imprensa, da universidade, estabelecendo o "patrulhamento" feroz de todos os que, independentes, se recusavam a vestir a camisa-de-força da ideologia partidária.
Como diz o crítico, professor e poeta Affonso Romano de Sant’Anna: "Foi este o século em que se viveu ideologicamente no sentido mais partidário do termo. Tivemos um conceito de história que afetou nossos gestos mais cotidianos e nossa produção intelectual. A ideologia marcou a atitude fascista presente nos dois lados, tanto esquerda como direita, pois o stalinismo foi apenas uma outra face do fascismo-nazismo".
A execração de que foram objeto alguns dos grandes escritores latino-americanos, sob a pecha de "esteticistas", foi denunciada pela escritora boliviana Elizabeth Monasterios, no I Encontro de Escritores do Mercosul, realizado em São Paulo em 1995: "Por acaso Maria Luisa Bombal, Jorge Luis Borges, Felisberto Hernández, Jaime Sáenz não sofreram essa espécie de excomunhão literária? O fato de se ter diluído, parodiado e até mesmo silenciado essas vozes teve conseqüências que hoje podemos considerar ingratas para a cultura, já que foram canceladas as possibilidades mais concretas que esses países tiveram de articular a eventual existência de uma filosofia latino-americana".
Enquanto no terreno da inteligência se digladiavam as diversas seitas, os "bárbaros" apoderavam-se do poder. Leia-se "indústria da cultura". Dá-se ao público o que, supostamente, "ele quer": sentimentalismo balofo, magias sublunares, pornografia, violência – com a fabricação consciente, encomendada e dolarizada de sub-best-sellers facilmente transformáveis em roteiros cinematográficos ready-made ou polpudas novelas televisivas. O escritor e crítico Silviano Santiago sintetiza o problema: "A falta de critérios estáveis de avaliação da obra toma conta da cena, deixando que produtores medíocres façam circular com exclusividade suas obras, em total desconsideração com produtos que buscam, pela palavra literária, o conhecimento que proporciona o debate de idéias".
A contaminação entre literatura e produto rentável tornou-se inevitável para toda uma geração de jovens escritores precocemente auto-intitulados de "bem-sucedidos" – no mesmo país em que, para dar apenas um exemplo, nossas mais prestigiosas editoras levaram o espaço de toda uma vida (70 anos) para descobrir, somente há dois anos, uma escritora de arte maior, poeta, prosadora, dramaturga, como é Hilda Hilst.
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