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Eterno renascimento

Postado em 01/01/2003


Cena do filme "Boleiros", de Ugo Giorgetti / Reprodução

Produção tenta abandonar ideologia e reconquistar o público

JOSÉ GERALDO COUTO

Quarenta anos depois de ganhar seu maior prêmio internacional – a Palma de Ouro em Cannes para O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte –, o cinema brasileiro ainda se vê às voltas com os mesmos dilemas, embora num contexto bastante diferente.

As grandes perguntas continuam sendo: como conquistar espaço no mercado interno, dominado quase totalmente pela produção norte-americana? Qual o papel do Estado no fomento da cinematografia nacional? Vale mais apostar em produções industriais ou nas artesanais, privilegiando, neste caso, o chamado "cinema de autor"? Como abrir espaço no mercado internacional sem apelar para o exótico e o pitoresco? Como abordar os temas sociais urgentes sem cair no sensacionalismo, na leviandade ou no panfletarismo?

Nas últimas quatro décadas, o cinema brasileiro passou pelas fases mais contrastantes, no que se refere à aceitação do público e à apreciação da crítica. Durante os anos 60, os filmes – notadamente os do Cinema Novo, movimento liderado por Glauber Rocha – granjearam prestígio internacional, ao propor uma linguagem cinematográfica inédita para expressar nossos problemas políticos e sociais. Já na década de 70, apesar da censura do regime militar, o cinema conquistou sua maior aproximação com o público, produzindo em média cem filmes por ano e chegando a ocupar cerca de 40% do mercado nacional, um índice muito distante dos atuais 9,3%.

Naquele período, além de o Estado investir na produção e na distribuição, por meio da Embrafilme, a lei de obrigatoriedade – que forçava os cinemas a exibirem títulos brasileiros durante um terço do ano – garantia o bom desempenho do setor. Fosse como fosse, o fato é que os filmes nacionais atingiam na época uma ampla platéia popular, que lotava as salas para assistir tanto as chamadas pornochanchadas como as comédias de Mazzaropi e dos Trapalhões, além de adaptações literárias de apelo erótico, como Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto – até hoje o campeão de bilheteria do país, com 12 milhões de espectadores –, e A Dama do Lotação, de Neville D’Almeida.

Mas, no final dos anos 80, por uma série de fatores, o modelo de intervenção direta do Estado começou a dar sinais de esgotamento, assim como as fórmulas de sucesso que haviam vigorado desde 1970. Com a chegada de Fernando Collor à presidência, desmontou-se de um golpe toda a estrutura de ajuda estatal ao cinema, que foi deixado ao deus-dará do mercado. De lá para cá, desde o governo Itamar Franco, o poder público, em negociações mais ou menos abertas com a classe cinematográfica, tem tentado reestruturar o setor.

O modelo que vingou nos últimos anos, seja no âmbito federal, seja no estadual, é o da renúncia fiscal, isto é, os investimentos em cinema podem ser abatidos dos impostos de empresas e de pessoas físicas, por meio da Lei do Audiovisual, da Lei Rouanet ou de outros mecanismos semelhantes adotados por estados e municípios. Vários defeitos e limitações têm sido apontados nesse modelo. O principal deles é o fato de conferir, na prática, aos departamentos de marketing das empresas o poder de decidir quais os filmes que devem ser feitos. De todo modo, foi graças a esse sistema emergencial e imperfeito que a produção cinematográfica brasileira conseguiu renascer, depois de uma paralisia quase completa no início dos anos 90.

Hoje o cinema ainda está longe dos números atingidos 20 ou 30 anos atrás – para se ter uma idéia, o público total dos filmes nacionais exibidos entre novembro de 2000 e outubro de 2001 não passou de 6 milhões de espectadores –, mas tem mostrado uma vitalidade considerável, em termos de diversidade e, principalmente, de participação na vida cultural e social do país.

Filmes recentes, como Cidade de Deus, O Invasor, Cronicamente Inviável, Santo Forte e Uma Onda no Ar, têm suscitado discussões acaloradas sobre as grandes questões sociais brasileiras. Depois de muitos anos em que ficou praticamente circunscrito ao gueto dos cineclubes e salas especiais, o cinema nacional retoma seu diálogo com uma platéia mais ampla. Mas a impressão que se tem, hoje, é a de que esse público ainda é muito pequeno, tendo em vista a importância dos filmes e o próprio barulho que têm causado na mídia.

Um exemplo: um longa-metragem como Central do Brasil, premiado com o prestigioso Urso de Ouro do Festival de Berlim e indicado para o Oscar de filme estrangeiro, não chegou à marca de 2 milhões de espectadores no Brasil. É muito pouco, se pensarmos na importância social e estética da obra e, principalmente, se tivermos em mente as bilheterias dos anos 70 ou 80.

É preciso reconhecer que, por um lado, ocorreu um encolhimento, em números absolutos, do público do cinema brasileiro e, por outro, uma mudança de perfil desse mesmo público. Houve, em termos gerais, diminuição e elitização do mercado.

Vários foram os fatores que levaram a isso: aumento do preço médio dos ingressos (de US$ 0,50 para US$ 2); fechamento de cinemas populares (no centro das metrópoles, nos bairros, nas cidades do interior), substituídos pelas salas nos shoppings e multiplex; problemas crescentes de locomoção e de segurança nos centros urbanos; consolidação da TV como o grande veículo de entretenimento popular, etc.

Em conseqüência, os espectadores que freqüentam hoje os cinemas – em geral, a classe média que circula pelos shopping centers – tendem a manifestar uma resistência maior ao filme brasileiro, seja por estarem excessivamente habituados ao modelo hollywoodiano de dramaturgia e cinematografia, seja por evitarem ver na tela imagens mais incômodas do país do que as apresentadas pela televisão.

O poder público e a chamada classe cinematográfica parecem estar finalmente se dando conta desse problema e percebendo que não basta conseguir as fontes de recursos para a produção dos filmes. É essencial, também, fazer com que eles cheguem a um número maior de espectadores. A recente criação do Conselho Superior de Cinema e da Agência Nacional de Cinema aponta para a formulação e execução de uma política mais abrangente para o setor, que inclua a produção, a distribuição e a exibição dos filmes.

De todo modo, a reconquista do público perdido nas últimas décadas parece ainda um horizonte muito distante. Para que o cinema brasileiro volte a dialogar com as multidões de espectadores, é necessário um esforço contínuo em várias frentes, que vão de uma melhor distribuição de renda a uma recuperação do espaço público nos centros urbanos, da diminuição do preço do ingresso à elevação da qualidade média dos filmes, passando ainda por projetos de formação de público jovem e por campanhas maciças de divulgação e informação.

Por fim, para voltar a ser um entretenimento verdadeiramente de massa, o cinema brasileiro – ou pelo menos sua parcela mais visível – precisa mostrar-se capaz de produzir imagens do país que nenhum outro meio fornece, credenciando-se, assim, como um instrumento privilegiado e insubstituível de conhecimento da realidade. E é isso o que vem sendo feito, por meio de filmes como os já citados e outros que poderíamos acrescentar, como Um Céu de Estrelas, Os Matadores, Baile Perfumado, Boleiros, Madame Satã e Seja o Que Deus Quiser.

Um dos aspectos positivos da chamada "retomada" do cinema nacional pós-Collor foi o surgimento de novos realizadores, muitos deles arejando a produção cinematográfica com práticas e idéias absorvidas na publicidade, na TV e no videoclipe. Outro fator de revitalização foi a descentralização geográfica de parte da produção. Hoje são feitos filmes vigorosos e de boa qualidade no Ceará, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e em diversos outros pontos fora do eixo Rio-São Paulo.

No amadurecimento adquirido nessa penosa ressurreição, o cinema brasileiro parece estar abandonando tanto os dogmas ideológicos que aprisionaram o Cinema Novo como as duvidosas fórmulas de sucesso que contribuíram para a desconfiança por parte de uma platéia mais exigente. Só assim nosso cinema poderá responder com mais inteligência e eficácia aos crônicos dilemas citados no início deste artigo. Seu único caminho é não ter um caminho único, e sim aprender a ser plural, como é plural a sociedade brasileira que ele almeja refletir e com a qual pretende dialogar.

 

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