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Ventania criativa

Postado em 01/01/2003


Roberto e Erasmo Carlos: os reis da Jovem Guarda / Reprodução

Bossa nova e outros movimentos dos anos 60 foram decisivos
para a MPB

ROBERTO HOMEM DE MELLO

Em qualquer balanço que se preze do que aconteceu na música popular brasileira (MPB) nos últimos 40 anos, não há como evitar que a presença da década de 60 seja desproporcional. Nada mais compreensível: foi uma época fervilhante, em que a MPB esteve como nunca no primeiro plano.

Assim como os gols e dribles de Pelé e Garrincha, ídolos bicampeões mundiais em 1958 e 1962, a batida de violão e a maneira de cantar de João Gilberto conquistavam o mundo, orgulhavam o país e serviam como modelo para a nova geração.

Em pontos distintos do país, ao ouvir João Gilberto cantando Chega de Saudade, canção de Tom Jobim e Vinícius de Morais lançada em 1958, jovens como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Chico Buarque haviam identificado um caminho a seguir. Apenas quatro nomes entre milhares que passaram a se interessar mais pelo violão. Todos queriam aprender os segredos de João Gilberto e participar daquele movimento renovador que ele representava.

Em 1963, a gravação de Garota de Ipanema, com João e Astrud Gilberto, Tom Jobim (ao piano) e o badalado saxofonista norte-americano de jazz Stan Getz, espalhava-se pelo ar como coqueluche. Incurável, talvez, pois até hoje a canção permanece entre as mais gravadas e executadas de todos os tempos no planeta.

O sucesso internacional reforçava a importância da bossa nova como marco na história da música popular brasileira, ponto de referência para tudo o que a sucedeu. A batida de violão limpa e sincopada; a voz sem rebuscamentos, próxima da naturalidade da fala; a sofisticação harmônico-melódica. Quase sempre seria possível identificar algum dos elementos da bem-sucedida receita bossanovística nas canções produzidas naqueles anos, das mais diversas tendências: da música de protesto ao iê-iê-iê, do samba-jazz à tropicália.

No calor do debate político que aflorou intensamente no governo João Goulart – e se aprofundaria, cada vez mais clandestinamente, após o golpe militar de 1964 –, dois dos fundadores da bossa nova, Carlos Lyra e Nara Leão, romperam com o movimento por achar que ele se distanciava da realidade do país.

Dentro do espírito dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, Nara, Lyra e o compositor Sérgio Ricardo, entre outros, passaram a buscar uma música não só mais participativa, mas também "autenticamente brasileira". Isso os aproximou de compositores ligados às raízes musicais nacionais, como o paraibano João do Vale e sambistas cariocas como Zé Kéti e Nélson Cavaquinho.

Esse período foi marcado por espetáculos engajados de grande sucesso, como o Opinião (estrelado inicialmente por Nara Leão, depois substituída pela estreante Maria Bethânia), de 1964. A ocasião contribuía para o sucesso. Segundo o jornalista Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, quando Nara cantava o Carcará, de João do Vale, "a platéia sentia um frisson, como se desabafasse ali toda a sua revolta pela existência do marechal Castelo Branco". No livro Noites Tropicais, o jornalista e compositor Nelson Motta concorda, dizendo que os aplausos vigorosos do público ao final do espetáculo funcionavam como "uma vaia ao governo militar".

Divisão de territórios

A música de protesto teve larga hegemonia nos festivais que começaram a ser promovidos a partir de 1965, e que revelaram compositores como Edu Lobo, Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento, entre outros.

Era a época dos programas musicais na TV, que tinham altíssima audiência, a ponto de chegarem a preencher, em seu auge, o horário nobre em todos os dias da semana. O público dividia-se entre dois pólos antagônicos. De um lado, ficava o "iê-iê-iê" ou "música jovem" do cada vez mais popular "Jovem Guarda", comandado pelos cantores e compositores Roberto e Erasmo Carlos. Do outro, os programas de "música brasileira", como "O Fino da Bossa", apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, cantores de grande sucesso naquele período. O clima era de tomar partido: quem era a favor da MPB devia ser contra a música jovem, "alienante" e "americanizada".

Inconformados com a estreiteza dessa divisão, os jovens Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram questão de defender suas composições Alegria, Alegria e Domingo no Parque acompanhados por guitarras elétricas no festival da Record de 1967. Ao trazer o iê-iê-iê para dentro do templo da "música brasileira", a idéia era mesmo provocar reações fortes. Era o ensaio de um projeto idealizado sobretudo por Caetano, que planejava causar um grande impacto na MPB, expandir suas fronteiras, como seu ídolo João Gilberto fizera.

O movimento que surgiu desse projeto, batizado de tropicália, utilizava a colagem de elementos das origens mais variadas, da arte de vanguarda – Caetano tinha influências como o cinema de Glauber Rocha, o teatro de José Celso Martinez Corrêa e a literatura de Oswald de Andrade – à lata de lixo da cultura de massa. No palco, as performances dos tropicalistas eram propositalmente chocantes. Um golpe contra o limitadíssimo "bom gosto" vigente.

Ousadia

O gesto libertário da tropicália quebraria aos poucos grande parte dos preconceitos contra as manifestações da cultura de massa, mostrando que utilizar estilos bombardeados pela mídia não significa necessariamente abdicar de uma expressão original e brasileira – como prova, para citar um exemplo atual, o hip hop de Mano Brown.

Esse processo também foi fundamental para a presente interpenetração entre os universos do pop e da MPB, representada por artistas como Marisa Monte, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro e Paulinho Moska.

Ao mesmo tempo, a tropicália foi um passo importante para a valorização da ousadia, uma das marcas mais fortes da MPB a partir de então. Isso vale tanto para o trabalho de Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa e os Mutantes quanto para o de outros compositores surgidos nos anos 60 e 70, como Chico Buarque (o gênio das canções que não cabe em nenhuma corrente ou definição), Jorge Ben Jor, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco, Paulinho da Viola e Alceu Valença, entre outros.

A aceitação pelo mercado, embora limitada, dos "biscoitos finos" produzidos por essa geração foi ainda um estímulo à persistência de outros grupos e compositores nada convencionais, como Walter Franco, Jards Macalé, Jorge Mautner, Novos Baianos, Luiz Melodia, Zé Ramalho, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, José Miguel Wisnik, Grupo Rumo, Chico Science, Karnak e outros que expandiram e expandem ainda mais o espaço da liberdade da MPB.


Travessia

Qual é o lugar da música popular na história e na cultura brasileira? Para responder a essa pergunta, o compositor e professor de literatura da USP José Miguel Wisnik recupera em poucas palavras mais de cem anos de evolução da MPB: "Esse lugar já foi de latência, no fim do século 19 e começo do 20, quando a música popular emergia para a consciência nacional, inclusive como objeto de fascínio, e era denegada como produto híbrido do escravismo, nas polcas amaxixadas, batuques e umbigadas. Já foi o lugar da própria revirada do país mestiço orgulhosamente auto-assumido, e da decantação primeira de uma requintada linguagem cancional urbana, que vai de Sinhô a Caymmi – do gramofone ao rádio. Já foi o lugar do salto poético-musical da bossa nova, do encontro do popular com o erudito numa terceira e outra coisa, e da filtragem minimalista e totalizante de João Gilberto, em LP hi-fi. Já foi o lugar de expressão e explosão das contradições do país moderno e periférico, durante os anos 60, e de metametaconsciência disso, com o tropicalismo, pela televisão e festivais. Já foi a via central do mercado musical em disco e FM, nos anos 70. Já perdeu esse lugar para rock, sertanejo, pagode, axé, rap, hip hop e techno sem deixar de estar em nenhum desses outros gêneros, porque a música popular brasileira está em todos eles e para além deles".

 

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