Postado em 01/01/2003
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Houve melhora, mas serviço médico-hospitalar ainda é deficiente
IMMACULADA LOPEZ
Apenas em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, a saúde foi reconhecida no Brasil como um direito de todos. Projetado para poucos nos anos 20, o sistema de atendimento foi ampliado nas décadas seguintes segundo a lógica da seguridade social. O serviço era restrito à população urbana, com registro em carteira e contribuinte da previdência. Quem não preenchesse esses requisitos tinha de recorrer aos precários hospitais estaduais ou à boa vontade de instituições beneficentes.
"Só a partir da Constituição de 88 começamos a trabalhar com a utopia da universalização de um atendimento público de qualidade para toda a população", diz o pesquisador Paulo Elias, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Segundo o estudioso, "é um erro negar que o Brasil está melhorando, mas podemos – e devemos – intensificar o ritmo das mudanças, pois temos problemas ainda muito graves".
Indicadores
Como acontece no mundo inteiro, hoje os brasileiros vivem mais do que há quatro décadas. Em 1960, a expectativa de vida era de 48 anos. Em 2000, alcançou a média de 68,5 anos. Com a expansão dos serviços de saneamento básico e o acesso a vacinas e a novas tecnologias médicas, melhoraram a prevenção e o controle de várias doenças. Ao final dos anos 90, o Brasil apresentava admiráveis taxas de imunização infantil: 94% contra coqueluche, difteria e tétano e 98% contra sarampo e poliomielite. Mas, ao mesmo tempo, surgiram outros desafios em conseqüência do processo de envelhecimento da população e de sua nova situação de vida. As causas da mortalidade mudaram radicalmente (ver texto abaixo).
Indicador supremo da saúde de uma população, a taxa de mortalidade infantil ainda surpreende, embora os índices registrem melhora ao longo do tempo. Em 1950, a cada mil crianças nascidas vivas, 135 morriam antes de completar um ano. Em 1990, a média era de 48. Em 2000, caiu para 30. Mas a situação ainda é alarmante se levarmos em conta que apenas as regiões sul e sudeste apresentam indicadores próximos ao nível tido como aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de até 20 mortes para cada mil crianças. No nordeste, ainda são 44.
Também é preocupante o índice de mortalidade materna, que aponta o óbito de mulheres relacionado à gestação e ao parto. Ele é considerado revelador, pois na grande maioria dos casos essas mães morrem de causas que poderiam ser facilmente detectadas e prevenidas, como pressão alta e infecções. Segundo dados oficiais, em 1980 eram cerca de 70 mortes maternas por 100 mil crianças nascidas vivas. Durante vários anos, a taxa manteve-se estagnada ao redor de 50. De 1995 a 2001, foi reduzida de 37 para 29. Mas, como muitas dessas mortes não são notificadas como tal, estima-se que o índice real seja o dobro do oficial.
Desafio da universalização
Segundo os especialistas, a superação desses e tantos outros obstáculos depende de importantes decisões políticas. A primeira delas é a total consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), que, criado pela Constituição de 1988, tem como princípio garantir o acesso igualitário e universal da população a um atendimento integral de saúde. O sistema reordena a rede, prevendo a participação da comunidade e sua descentralização político-administrativa. Os governos federal, estadual e municipal passam a dividir a responsabilidade pela gestão e pelo financiamento do sistema, de forma articulada e solidária, com participação complementar do setor privado. Antes, a estrutura era centralizada na União, através do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps).
Com o SUS, o atendimento básico passa a ser assumido pelos municípios, que recebem do Ministério da Saúde recursos para custear suas ações. Os estados, por sua vez, devem dar apoio técnico e financeiro. É a chamada "municipalização" da saúde. "Esse novo desenho faz mais sentido, pois o poder local é o que mais conhece as condições de vida e de saúde de sua população e, por outro lado, pode ser mais facilmente controlado e cobrado", explica o médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e do Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, uma organização não-governamental sediada na capital paulista.
Ele informa que grande parte dos municípios já está assumindo essa tarefa. Um forte impulso foi dado em 2000 com a aprovação da Emenda Constitucional 29, a qual determinou que, até 2004, todos os municípios invistam 15% de sua receita na área da saúde. E Kayano adverte que a intenção é fazer que essa verba seja somada aos recursos da União e não que os substitua.
Além de propor a descentralização, a Constituição de 88 abriu caminhos para um maior planejamento, controle social e transparência do uso dos recursos públicos. Tanto na esfera federal como na estadual e na municipal, ela estimula a criação de conselhos de saúde, com representantes da população, governo, empresários e trabalhadores atuantes na área, para interferir nas políticas públicas e fiscalizá-las.
Os especialistas reconhecem que o país já deu passos importantes desde a implantação do SUS. "Do ponto de vista da quantidade, tivemos um grande avanço na expansão dos serviços – da assistência básica ao atendimento de alta complexidade", afirma o professor Paulo Elias, da USP. Mas o SUS não atende a todos: 25% da população recorre atualmente aos planos e seguros de saúde privados. De qualquer maneira, o pesquisador Jorge Kayano observa que os limites entre investimento público e privado não são tão claros como se imagina. "No momento das demandas mais complexas, é o SUS que atende o segurado privado, sem conseguir receber por isso." Por outro lado, parte do gasto das empresas seria, na realidade, uma renúncia fiscal do Estado, o que poderia ser considerado dinheiro público.
Além do alcance do atendimento, a qualidade também melhorou. "Os profissionais são mais qualificados, a tecnologia se desenvolveu, os equipamentos são melhores e mais numerosos", descreve Elias, que faz questão de ressaltar que há uma grande confusão quanto à avaliação dos serviços de saúde. "Geralmente, as pessoas interpretam a fila nos hospitais públicos como sinal de má qualidade, quando, na verdade, é apenas um indicativo de desequilíbrio entre oferta e demanda." Ele observa que o serviço público tem o compromisso de atender todo mundo, sem poder fechar as portas, ao contrário do que acontece no setor privado. Elias também destaca uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, segundo a qual 80% das pessoas atendidas pelo SUS declararam-se satisfeitas com o tratamento. São aquelas que nunca usam o sistema que o avaliam negativamente, com base no que "ouvem dizer".
Outro ponto positivo é a modernização do gerenciamento da rede, ocorrida especialmente nos anos 90. "Aumentou o controle dos recursos e a agilidade das decisões e serviços", afirma o pesquisador. Resta, entretanto, desatar um grande nó: os recursos humanos. Por um lado, falta uma política de formação contínua e de remuneração adequada. Por outro, segundo ele, é necessário recuperar a noção de servidor público: "O emprego deve ser compreendido como um meio de realizar um serviço social", explica Elias.
Futuro
Diante da urgência de expansão e melhoria dos serviços, resta entender por que o país não avançou mais. "Podemos falar em vontade política, mas são mais decisivas as razões estruturais", opina Paulo Elias. Entre elas, desponta a falta de recursos. "Hoje o país gasta pouco e mal em saúde", sentencia o pesquisador. Somando o gasto público e o privado, chega-se a pouco mais de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). É um percentual pequeno em relação ao de outros países, e já não cresce há alguns anos. Calcula-se que o Brasil precisaria de pelo menos 6% do PIB para atender aos direitos garantidos na Constituição.
Na avaliação de Elias, o Estado brasileiro arrecadou muito nos anos 90, mas as políticas sociais foram continuamente sacrificadas em nome do ajuste fiscal. "O Brasil precisa desarmar essa arapuca", afirma ele, na expectativa de que as preocupações econômicas e sociais sejam colocadas pelo menos no mesmo patamar.
"Por mais que se construam hospitais, se melhorem os serviços ou se comprem remédios, fica difícil garantir a saúde de uma população que mora em casas sem saneamento básico, que não se alimenta bem nem sabe ler ou escrever", diz Jorge Kayano. Ele acredita que não se pode responsabilizar a área da saúde por problemas estruturais. "Quando ouvimos a notícia de que uma pessoa chegou baleada ao hospital e faleceu, logo pensamos que foi falha da saúde. E na verdade temos de agir para que não haja essa violência", exemplifica. Na sua opinião, apenas quando forem enfrentadas as desigualdades sociais, as demandas serão reduzidas e a qualidade melhorada.
"Daremos um salto quando houver um compromisso de integração das políticas sociais", resume Kayano. Ou seja, a saúde deve agir de mãos dadas – e recursos somados – com os setores de infra-estrutura, educação, assistência social, produção de alimentos, etc. "É a única possibilidade de alcançarmos resultados eficientes", esclarece o pesquisador. Só assim, em vez de investir no tratamento das doenças, haverá uma real promoção da saúde.
As doenças da vez
Até a década de 30, as doenças transmissíveis eram a principal causa de morte nas capitais do país. Matavam um em cada três brasileiros. No decorrer dos anos, as melhorias sanitárias, as campanhas de vacinação e a descoberta de novos antibióticos, além da ampliação do acesso ao sistema de saúde, transformaram esse quadro.
Já na década de 60, as doenças cardiovasculares passaram a ocupar o primeiro lugar da lista. Em 1999, elas responderam por 32% das mortes, seguidas por câncer (14%), acidentes e homicídios (14%), e doenças do aparelho respiratório (11%). Só em quinto lugar aparecem as doenças infecciosas e parasitárias (6%). Esses dados foram divulgados no relatório "Situação da Prevenção e Controle das Doenças Transmissíveis no Brasil – 2002", da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), ligada ao Ministério da Saúde. Mas, apesar de matar menos, as doenças transmissíveis continuam a afetar fortemente a qualidade de vida da população e a desafiar as políticas públicas. Na verdade, diferentemente de outros países, não estaríamos vivendo uma transição, mas sim uma sobreposição de doenças.
Já há vitórias importantes como a erradicação da varíola e da poliomielite, além do alto controle do sarampo, da raiva humana e do tétano neonatal. Estão em declínio também a difteria, a coqueluche, o tétano acidental, o mal de Chagas, a hanseníase, a febre tifóide e a rubéola. Outras doenças, entretanto, permanecem em níveis preocupantes ou apenas recentemente começaram a ceder. Entre elas, a malária, a tuberculose, a meningite, a febre amarela silvestre, a hepatite e a esquistossomose. Elas exigem novas estratégias de prevenção e controle, especialmente ações integradas com outras áreas.
Também merecem atenção as chamadas doenças emergentes e reemergentes. Entre os novos males, destaca-se a Aids, identificada pela primeira vez no Brasil em 1980 e que se espalhou velozmente até 1998. Só nesse ano, foram registrados cerca de 25 mil novos casos. A partir dali, os números começaram a cair, embora ainda sejam muito expressivos. Em 2000, somaram 17,8 mil. Certamente, a maior vitória nos últimos anos foi a política de distribuição gratuita de medicamentos. Essa postura inédita do governo brasileiro permitiu que, de 1995 a 1999, a mortalidade caísse pela metade em relação aos primeiros anos da epidemia, quando era de 100%.
Paralelamente, doenças já conhecidas voltaram com força. A cólera, por exemplo, ressurgiu no início dos anos 90, atingindo um pico endêmico em 1993, com mais de 60 mil casos. Outro grande motivo de apreensão é a dengue. Falhas na vigilância epidemiológica e mudanças ambientais, com a intensa urbanização, fizeram retornar o mosquito transmissor, o Aedes aegypti, que havia sido erradicado nas décadas de 50 e 60. Começamos os anos 80 sem nenhum caso, mas, a partir de 1994, o número voltou a crescer, chegando a 530 mil notificações em 1998. Em 2001, foram 430 mil.
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