Postado em 01/01/2003
Crianças em atividade escolar: longo caminho a percorrer / Arquivo PB
Iniciativa oficial ainda é insuficiente para recuperar ensino
IMMACULADA LOPEZ
Os números da educação no Brasil melhoraram – e muito – nas últimas quatro décadas. Caiu o analfabetismo, aumentou o total de escolas e de crianças estudando, assim como o tempo de escolaridade, e diminuíram a evasão e a repetência. Entretanto, essas conquistas não escondem quanto deixou de ser feito e o que ainda precisa ser enfrentado. Tomando como exemplo a taxa de analfabetos entre a população com mais de 10 anos de idade, o país pode comemorar a queda de 40% para 13%, de 1960 a 2000. Mas, ao mesmo tempo, isso significa que chegamos ao século 21 com mais de 20 milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever.
"É evidente que tivemos progressos, mas o avanço ficou aquém do necessário e do que era possível fazer com o desenvolvimento econômico conquistado no período", avalia o educador Ruy Pavan, representante do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil. Além de mais amplos, os índices poderiam ser recheados de uma qualidade que foi perdida no caminho.
Escola para todos
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Até os anos 60 e 70, havia o sonho da universalização igualitária, que pareceu funcionar nos países desenvolvidos, com uma efetiva expansão dos serviços de educação e saúde. Mas o mesmo não aconteceu no Brasil", explica Maria do Carmo Brant de Carvalho, coordenadora-geral da organização não-governamental Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).A partir do final da década de 80, inicia-se no mundo um grande movimento pela valorização do ensino, que vai pressionar as autoridades brasileiras. A Constituição Federal de 1988 reflete essa preocupação e institui que o ensino fundamental (da primeira à oitava série) é obrigatório e gratuito. Em 1990, acontece a I Conferência Mundial de Educação para Todos, na Tailândia, na qual o Brasil se compromete a promover a universalização da educação básica e a erradicação do analfabetismo. Ganham espaço campanhas que afirmam que "lugar de criança é na escola" – uma idéia não muito óbvia até então. Nesse ritmo de expansão, o país chega a 2001 com 97% de suas crianças entre 7 e 14 anos na escola.
Segundo Maria do Carmo, durante toda a década de 90, o Estado cumpre "desesperadamente" as receitas neoliberais nas áreas política e econômica, as quais impedem maior avanço dos indicadores sociais. Mas, por outro lado, mesmo assistindo à tendência de outros governos de se retirarem da área social, o Brasil não pôde recuar. "Em plena guinada democrática, o país teve de assumir a expansão de políticas públicas sociais", avalia a pesquisadora. Vale destacar o grande empurrão dado por projetos como o de renda mínima e o combate ao trabalho infantil, que garantiram maior presença das crianças na sala de aula.
Bolsa-escola
O impacto dessas iniciativas, na avaliação de Maria do Carmo, revela a íntima relação entre educação e pobreza, que não pode ser esquecida. De um lado, sem escolaridade, o pobre raramente deixa de ser pobre. De outro, sendo pobre, muitas vezes não consegue chegar à escola ou ficar nela. Esse círculo vicioso se rompe, por exemplo, com a chamada bolsa-escola, uma experiência inovadora implantada inicialmente em Campinas (SP) e no Distrito Federal. As famílias sem renda mínima, com filhos em idade escolar, recebem uma complementação financeira do governo desde que comprovem a matrícula e a freqüência das crianças na escola.
"Várias pessoas diziam que devíamos lutar por bons empregos para os pais em vez de criar uma complementação de renda. Mas precisamos admitir que esses empregos simplesmente não existem e não podemos esperar pelo crescimento econômico para combater a pobreza. Ao contrário, temos de ir direto à raiz do problema", escreve o ex-governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, no livro Educação Básica no Brasil nos Anos 90, elaborado pelo Cenpec.
Em resposta à reivindicação de diversos setores sociais, o governo federal também cria em 1997 um programa de garantia de renda mínima para famílias com rendimento inferior a meio salário mínimo por pessoa, com filhos entre 7 e 14 anos. Implantado dois anos depois, até hoje sofre repetidos atrasos e cortes de verba. Diante disso, os especialistas não só defendem que ele seja realmente efetivado, mas ampliado para famílias com filhos de 6 a 16 anos de todo o país.
Em paralelo, ganham importância os projetos de erradicação do trabalho infantil. O raciocínio é simples: a criança que trabalha não pode estar na escola ou, no mínimo, não consegue se dedicar da forma necessária e logo desiste. Por lei, é proibido qualquer tipo de trabalho para menores de 16 anos. Mas a realidade é bem diferente: segundo dados de 1998 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no Brasil cerca de 4,5 milhões de meninos e meninas entre 5 e 15 anos trabalhando. Eles atuam principalmente na agricultura, muitas vezes sem receber. Nos centros urbanos, são explorados no setor informal, incluindo o trabalho doméstico, os lixões e a prostituição. A ação integrada entre governo, ONGs, empresas e organismos internacionais promete reverter esse quadro e garantir, por fim, a total universalização do ensino fundamental.
No ensino profissionalizante, destaque-se o papel exercido por entidades como Senai e Senac, que há mais de cinco décadas oferecem uma diversificada linha de cursos. Criadas para atender às necessidades de mão-de-obra das empresas, elas cumprem a missão com sucesso, graças a uma política de ensino voltada para a modernização tecnológica e amplo leque de ofertas educacionais.
Outras fraquezas
De qualquer forma, ainda há um longo caminho a percorrer. Os especialistas apontam a urgência de ampliar o acesso à escola para grupos de outras faixas etárias, sem esquecer a inclusão dos alunos com necessidades especiais e os projetos de educação indígena e rural.
Começando pelos pequenos, apenas 30% das crianças até 6 anos são atendidas pela educação infantil, segundo dados do IBGE. Em outras palavras, há um déficit de quase 15 milhões de vagas. Reconhecida como dever obrigatório do Estado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação infantil revela-se um ponto de partida essencial para o desenvolvimento escolar, social e cultural dos meninos e meninas. As creches, portanto, não podem ser meros "depósitos" de crianças. "Temos de preparar professores para trabalhar com essa faixa etária", reforça o psicólogo e pedagogo Samuel Pfromm Netto, que é professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas e atua na área desde os anos 50.
Por sua vez, o ensino médio também deixa a desejar. Apesar de não ser obrigatório como o fundamental, a Constituição Federal prevê sua progressiva extensão e gratuidade. De acordo com o IBGE, apenas 66% dos adolescentes entre 15 e 19 anos estão matriculados na rede pública e privada. Os números do nível superior também são desanimadores: "No Brasil, temos 13% da população matriculada em universidades, um percentual que não se compara aos de outros países, como os 40% da Argentina", diz Pfromm Netto. Na Bolívia, chega a 23%, e no Chile, a 27%. Vale ressaltar que quase metade dos universitários brasileiros está acima dos 24 anos e se diplomará com atraso. Além da defasagem etária, é preciso resolver problemas como a baixa qualidade de vários cursos, o despreparo de professores e as altas mensalidades das escolas da rede particular.
Outro ponto falho é a chamada educação de jovens e adultos – destinada àqueles que não tiveram acesso à escola na idade regular. O analfabetismo concentra-se hoje na população com mais de 30 anos, na zona rural e nas periferias das grandes cidades, exigindo políticas diferenciadas. Entretanto, esse atendimento continua longe de ser prioridade.
Contrastes gritantes
Ao mesmo tempo, falta ao país enfrentar outras fraquezas, como as desigualdades regionais. Segundo análise do Cenpec, apesar de os indicadores educacionais terem melhorado em todo o país na última década, os contrastes regionais se acentuaram. Um exemplo é a taxa de abandono do ensino fundamental. De 1988 a 1996, ela caiu, na região sudeste, de 18% para 7%. No nordeste, passou apenas de 23% para 20%. Segundo dados do Cenpec, o descompasso entre o bloco sul-sudeste e o norte-nordeste é de quase uma década.
Por outro lado, despontam as desigualdades raciais. No decorrer das gerações, a educação tem refletido e reforçado o preconceito e a discriminação contra os negros. Eles constituem a maior parte dos adultos analfabetos no país e das crianças e adolescentes que passam pela experiência do fracasso escolar. A taxa de escolaridade da população economicamente ativa confirma a diferença de oportunidades: a média de escolaridade da população negra é de dois anos a menos que a da branca, segundo dados de 1999 do IBGE.
Além da reversão dos números, persiste a busca por qualidade – inclusive em relação ao ensino fundamental. "Será que se promoveu um real domínio de conhecimentos e habilidades ou apenas um grande faz-de-conta de aprendizado?", questiona o professor Samuel Pfromm Netto. A resposta é inquietante: "Antes tínhamos uma escola pública de bom nível, mas elitizada. Hoje ela é quase universal, mas de má qualidade", afirma Ruy Pavan, do Unicef. Não é à toa que os pais de classe média passaram a matricular seus filhos na rede particular, com a queixa de que "a escola pública não é mais a mesma da minha época". Pavan não acredita que fosse necessário escolher entre qualidade e quantidade – nem mesmo esperar por uma expansão do ensino para então melhorar o nível. A conclusão é clara: "Houve a opção política de conseguir um resultado mais rápido e visível".
Segundo o estudioso, os processos educacionais pararam no tempo. "As escolas não incorporaram novas tecnologias e metodologias. Até hoje, a sala de aula é a mesma: cadeiras enfileiradas, com uma professora em frente ao quadro-negro." Na sua avaliação, só haverá um salto de qualidade com uma mudança da gestão escolar – caminho já aberto pela LDB em 1996. Considerada um marco na área, essa lei rompeu com a burocracia da gestão educacional e descentralizou o sistema, fortalecendo os estados, os municípios e as próprias escolas.
"A centralização fazia parte da lógica da gestão pública – e até mesmo privada – no Brasil e no mundo até os anos 80", afirma Maria do Carmo, do Cenpec. O governo federal determinava metas, ações e modelos para todo o país. Como o Brasil vivia uma ditadura, a centralização era ainda mais acentuada. "Todas as escolas tinham o mesmo calendário, currículo e método. Era tudo padronizado", explica a pesquisadora. Essa estrutura torna-se cada vez mais onerosa e ineficiente, tanto que o desperdício de dinheiro com a burocracia é repetidamente denunciado. Com a democratização, começam a ser desenhadas políticas públicas compartilhadas com os vários níveis de governo e abertas à participação da comunidade. "Reconhecer o poder local como gestor da escola está permitindo maior cobrança por qualidade, bem como o controle da aplicação dos recursos", avalia Ruy Pavan.
O dilema das verbas
Outro marco da LDB é a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). "É uma verdadeira revolução", resume Maria do Carmo. Constituído por 15% das receitas estaduais e municipais, esse fundo é gerido pela União, que redistribui os recursos proporcionalmente às matrículas registradas no ensino fundamental. A lei determina que o governo federal complemente a verba dos municípios e estados que não alcancem o valor mínimo por aluno por ano. Pelo menos 60% dos recursos devem ser aplicados na remuneração e formação dos professores. Nas palavras de Maria do Carmo: "Criou-se uma arquitetura de repasse de recursos mais ágil, que força o município a matricular todas as suas crianças na escola e a investir no professor".
Mas, apesar de iniciativas como o Fundef, o dinheiro ainda não é suficiente. Segundo Moacyr Vaz Guimarães, que foi membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo entre 1969 e 1989, o ensino nunca foi prioridade real no país. "Parece que as verbas da educação continuam sendo vistas como gasto e não como investimento", diz o especialista.
Maria do Carmo acredita que o país precisa de uma estratégia de aplicação de recursos mais eficaz. "Ainda destinamos um total seis vezes maior ao ensino superior do que ao fundamental", exemplifica. Por outro lado, precisam ser superados grandes obstáculos no orçamento público como um todo. "Em 73% dos municípios há menos de 10 mil habitantes. No total, gastamos mais com as câmaras municipais do que com educação e saúde básica." De qualquer forma, a coordenadora do Cenpec faz questão de afirmar seu otimismo: "Costumamos falar muito mal do Estado brasileiro, mas, sem ele, não teríamos nem democracia, nem cidadania". Nem educação para todos. E, afinal, estamos melhorando.
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