Postado em 01/01/2003
![]() |
Obstáculos não faltam na batalha permanente para superar o atraso
OSWALDO RIBAS
Neste momento crucial de transição política e de afirmação da vocação democrática do povo brasileiro, a intelligentsia do país, passadas as ondas do nacional-desenvolvimentismo e do neoliberalismo dos anos 90, depara-se com novos projetos que, embora partam de pressupostos comuns, ou seja, a manutenção de uma economia de mercado, capitalista, integrada ao irreversível processo de globalização, descortinam caminhos diferenciados para uma trajetória de superação do atraso.
Uma visão pessimista, abraçada por parte do pensamento acadêmico nacional e internacional, considera que ao Brasil estaria sempre reservada uma participação apenas regional e subalterna. Nessa ótica, o país jamais alcançaria o estágio em que se encontram as nações mais avançadas da América do Norte, Europa ocidental ou do leste asiático. Ou seja, ao governo central e às forças ativas da sociedade caberia a tarefa de, no máximo, administrar a concentração de renda e eliminar a miséria absoluta a que está submetida parcela significativa da população do país. À economia brasileira restaria seguir sua vocação histórica de abastecer parte do mundo com uma agropecuária de aplicação de mão-de-obra intensiva e baixo nível tecnológico.
O Brasil do futuro, portanto, na visão pessimista, apenas potencializaria o modelo atual, reforçando a superestratificação social, com dois segmentos: a elite, detentora de 50% da riqueza nacional, e o resto, ou seja, a grande massa de indivíduos totalmente excluídos do sistema ou com acesso limitado a bens materiais e intelectuais. Essa dicotomia básica, bastante nítida atualmente, tenderia a acentuar, de forma crônica no futuro, a escalada dos conflitos e do uso da violência para manutenção de uma ordem sem progresso e disseminadora da degradação social e ambiental. A ambição do país de ver triunfar uma indústria tecnológica de ponta em território nacional teria poucas chances de êxito.
Como representante dessa vertente pessimista do pensamento econômico-social em relação ao Brasil, um dos destaques é o economista norte-americano Lester C. Thurow. Sem meias palavras, ele acredita que o país, para chegar a proporcionar um padrão de vida à sua população nos níveis da classe média canadense, por exemplo, teria de crescer ininterruptamente por cem anos a um ritmo de 7% ao ano. "A Coréia do Sul", afirma ele, com lápis e papel na mão, "cresceu 7,5% em média nos últimos 40 anos, e o máximo que conseguiu foi atingir uma renda per capita de US$ 12 mil, que é a metade da dos países ricos." Autor de best-sellers, como O Futuro do Capitalismo, Thurow, que já acumula várias passagens pelo Brasil, admite que a tarefa para os brasileiros saírem do seu atraso crônico será monumental, especialmente quando se observa que o século 21 vem demonstrando, antes de tudo, estar destinado a turbulências e conflitos culturais e étnicos de grandes proporções, um cenário pouco apropriado à estabilidade macroeconômica que o país necessitaria para se desenvolver.
"
O Brasil é grande e pode fazer muitas coisas, mas se quiser ter êxito é melhor optar por se orientar para o grupo de indústrias de rápido crescimento", diz Thurow, professor do renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Ele enumera sete setores industriais e de serviços que poderiam auxiliar o país a acelerar seu passo na corrida global pelos recursos financeiros cada vez mais escassos: microeletrônica, telecomunicações, indústria aeroespacial, biotecnologia, computação, bens de capital e novos materiais. "Tudo vai depender", declara ele, "da capacidade de o Brasil negociar, estrategicamente, com as empresas multinacionais e exigir, em cada operação, transferência de tecnologia para dentro do território nacional." Ele cita o comportamento do governo no caso da licitação da Força Aérea Brasileira (FAB) para renovação da frota de caças supersônicos e no das grandes plataformas flutuantes da Petrobras para exploração petrolífera em águas superprofundas, nos quais a transferência tecnológica é prioritária, como uma referência geral a ser seguida em todos os contratos do poder público com o capital internacional. "A estratégia brasileira de dar incentivos para grupos multinacionais, sem exigir nada em troca, é tola e em nada contribui para a superação do atraso."Cético em relação às chances nacionais de entrar para o clube dos sete países mais ricos, o G-7, o grupo de nações que efetivamente dá as cartas no trilionário mercado de bens e serviços em âmbito global, Thurow, no entanto, transmite um conselho ao novo governo brasileiro: "O Brasil está despreparado e desaparelhado educacionalmente. Se levarmos em conta que os países ricos procuram estimular a indústria movida a energia cerebral (brain power industry), a educação, em todos os níveis, mas especialmente a voltada à formação de técnicos qualificados, é a maneira mais adequada de dar um salto de qualidade". Para esse professor norte-americano de 64 anos, o maior problema do Brasil é ter uma população com baixo grau de escolaridade e, portanto, "despreparada para enfrentar a onda tecnológica que está definindo a economia mundial".
Oportunidade
No outro lado do debate sobre o futuro nacional estão os economistas e pensadores que acreditam ser difícil, mas não impossível, que o Brasil supere nas próximas décadas os obstáculos que o têm impedido de vivenciar um período de estabilidade monetária com crescimento econômico, condição básica para o conjunto da sociedade poder pleitear a promoção ao status de Primeiro Mundo. Bem menos pessimista que Thurow, o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Júlio Almeida, reduz em muito a tese dos cem anos defendida pelo especialista norte-americano. "Acho que com três décadas de crescimento contínuo, à taxa de 5% ao ano, o Brasil conseguiria deixar, definitivamente, de ser pobre", arrisca. Autor de vários projetos de estratégias de desenvolvimento, Almeida acha que esse crescimento, além de precisar ser absolutamente vigoroso, terá de possuir qualidade, ou seja, engendrar mecanismos que reduzam o fosso entre os mais ricos e os mais pobres da sociedade (como acontece nas nações consideradas desenvolvidas). "Teria de privilegiar programas institucionais de investimento maciço em educação e tecnologia", acrescenta o economista, entusiasmado com o momento atual, que ele considera uma ótima oportunidade de o Brasil finalmente, após tantos tropeços políticos e econômicos, estar no limiar de uma nova reorganização de suas atividades produtivas, de maneira bem mais sustentável do ponto de vista ambiental e social.
O desenvolvimento econômico, no caso, é entendido como resultado da consolidação da industrialização do país, apoiada em uma indústria de base, com o aumento da produtividade e pleno emprego das forças de trabalho disponíveis, além da integração ao sistema das áreas de economia não-monetária, com a eliminação dos pontos de desequilíbrio no processo. Para alcançar esses objetivos, será necessário um planejamento racional de investimentos, que estimulem as atividades progressistas, uma política cambial de proteção à indústria nacional, limitação da remessa de lucros ao exterior, assim como à sua predominância em setores de base (eletricidade, combustíveis, mineração). No campo, a reforma agrária deve fundamentar-se no princípio da otimização do aproveitamento das terras e dos recursos humanos e materiais existentes, com uma distribuição racional e amparo efetivo ao agricultor.
Na percepção dessa escola mais otimista com os destinos nacionais, da qual também faz parte o professor Luiz Carlos Bresser Pereira, o ponto crucial que tem prejudicado a atuação das forças ativas da nação reduz-se ao nó representado pelas taxas de juros, consideradas abusivas, praticadas pelo Banco Central, com reflexos negativos em todo o sistema produtivo. "No plano macroeconômico, após termos alcançado a estabilidade dos preços numa primeira etapa e uma taxa de câmbio mais realista, flutuante, para controlarmos nossas contas externas, falta agora enfrentar o desafio de baixar a taxa de juros para podermos, afinal, superar a quase estagnação dos últimos 20 anos e retomar o desenvolvimento num ritmo constante", afirma Bresser Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas, com passagem por dois ministérios do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Revoltado com o estado geral da economia após oito anos de governo tucano, ele, no entanto, mostra-se entusiasmado com as chances de êxito de um projeto de retomada do crescimento no Brasil: "Esse novo desenvolvimento terá de envolver toda a sociedade", diz ele. "Além de reduzir substancialmente a pobreza absoluta, serão necessárias medidas para interromper o processo de concentração de renda que vem se acentuando nas últimas décadas." De modo geral, em sua opinião, para que surja uma sociedade mais justa, será preciso aplicar políticas de apoio à educação fundamental, programas de saúde pública, a reforma agrária, planos de estímulo à pequena produção, tanto agrícola como industrial, e buscar garantir renda mínima a todos os brasileiros. "A nova política de desenvolvimento deverá continuar a aumentar a eficiência do gasto social e ter como princípio a criação de empregos e incorporação dos excluídos ao processo produtivo", acrescenta.
Para Bresser Pereira, o maior equívoco do governo que terminou foi o de ter jogado todas as suas fichas na poupança externa como estratégia de financiamento do desenvolvimento nacional, seguindo o receituário neoliberal pregado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (Bird). Em sua avaliação, a elite brasileira vem há duas décadas cometendo erros seqüenciais apoiados nessa política. "No caso do Brasil, por se tratar de um país com alto endividamento, e como nos anos 90 não havia grandes projetos de investimento, ficar na dependência de recursos externos foi um grave erro", afirma o economista, que, embora engajado no projeto político tucano, não poupa críticas à equipe econômica do governo anterior.
Para ele, se é fácil entender que a entrada de capitais externos cria possibilidade de investimentos e, conseqüentemente, de crescimento econômico, também é igualmente fácil compreender que a saída desses capitais limita essa capacidade. Como o Brasil não produz divisas fortes como o dólar, no médio prazo a entrada de capitais corresponde a um déficit na balança de bens e serviços. Tanto investimentos diretos como aplicações financeiras pressupõem remessas externas, sob a forma de dividendos ou de juros, e em ambos os casos isso acaba significando um fluxo negativo de capital, com prejuízo para todo e qualquer projeto desenvolvimentista.
O atrelamento da política econômica à poupança externa, quer em investimentos diretos, quer em aplicações financeiras, acaba pressupondo juros cada vez mais altos. O Brasil já é conhecido como o país de taxas de juros reais mais altas do mundo e, em parte, essa situação é responsável pelo fato de o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ter reduzido a projeção de crescimento do produto interno bruto (PIB) para 2003. Bem longe dos 7% aconselhados por Thurow, ou dos 5% recomendados por Almeida, o Brasil tem, para 2003, previsão de crescimento de 1,8%. Se isso acontecer, há chances de as estimativas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) para o valor do PIB se materializarem e o país fechar o ano com um total de cerca de US$ 710 bilhões. Embora ainda esteja abaixo do pico de US$ 801 bilhões alcançado em 1997, ano do primeiro choque global, representado pela crise nos mercados emergentes, que fez a economia brasileira recuar da meta de chegar ao primeiro trilhão de dólares antes da virada do século, esse montante aponta para uma nova tendência de crescimento.
Foco histórico
De posse dos dados da FGV é possível, no entanto, perceber com clareza o caminho percorrido pelo Brasil nestes últimos 40 anos e a real dimensão do crescimento da economia nacional. Em 1963, quando o presidente João Goulart anunciava medidas polêmicas para nacionalizar setores de infra-estrutura em mãos do capital estrangeiro, como o petroquímico, e desencadeava a onda nacional-populista cujos desdobramentos iriam um ano depois desembocar no movimento militar que o derrubaria do governo e iniciaria um longo período de autoritarismo, o PIB do país batia em US$ 25 bilhões, ou seja, era mais de 20 vezes menor que o atual. A população brasileira, naquela época, chegava a 70 milhões, menos da metade do que é hoje. O PIB per capita em 1963, ainda segundo os dados da FGV, era de meros US$ 316 – valor que corresponde hoje ao dos países do chamado Quarto Mundo, como Etiópia ou Moçambique. Em 2003, a expectativa é de o PIB per capita chegar a US$ 4,2 mil. Isso significa que, desde o não tão longínquo ano de 1963, a renda média dos brasileiros aumentou 13 vezes. Um excelente resultado, se for levado em consideração que a população, no período, mais que dobrou, chegando a 170 milhões de habitantes, de acordo com os dados do último recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Assim, apesar de todos os percalços na trajetória econômica do país nestes 40 anos, é inegável que o Brasil se tornou mais afluente e sua população mais rica, e o brasileiro viu sua renda média anual subir vertiginosamente.
Ícone da modernidade brasileira, o sistema bancário nacional espelha a evolução da qualidade de vida no Brasil. Segundo Roberto Luís Troster, economista-chefe da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), "a parcela da sociedade que dispõe de contas e serviços bancários vem crescendo em percentual superior ao da população economicamente ativa e de aposentados pelo terceiro ano consecutivo". A rede bancária registrou, nos últimos três anos, aumento de 41,3% no número de contas correntes, que evoluíram de 44,7 milhões, em 1998, para 49,9 milhões, em 1999, 55,8 milhões, em 2000, e 63,2 milhões, em 2001. Já o número de contas de poupança cresceu 28,3% no mesmo período, passando de 39,9 milhões, em 1998, para 51,2 milhões, em 2001. "Ou seja", diz Troster, "num cenário completamente diferente daquele observado há quatro décadas, o que se vê hoje no Brasil é um acelerado processo de inclusão de camadas sociais antes alijadas do Sistema Financeiro Nacional." Em sua opinião, isso foi possível graças ao avanço de programas dos chamados correspondentes bancários, que utilizam a capilaridade das agências dos Correios (o Banco Postal) e das casas lotéricas.
Outro indicador de afluência reconhecido mundialmente ilustra o enriquecimento da sociedade brasileira. No final de 1960, o Brasil já havia produzido 321 mil veículos desde o início da implantação do parque industrial automotivo nacional, em meados da década anterior. A relação, nessa época, era de um veículo por grupo de 72 pessoas. Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), referentes ao ano 2000, indicam a presença de uma frota de 32 milhões de veículos no país, o que dá, aproximadamente, cinco habitantes por veículo. Se fosse possível transportar a produção atual para o início dos anos 60, o Brasil poderia ostentar índices californianos de riqueza, como o de um veículo para cada dois habitantes, considerado um "ponto de equilíbrio" para a indústria automotiva.
País de vocação agrícola, graças às dimensões continentais, também tem demonstrado que, com um rápido processo de mecanização e novas tecnologias de plantio e colheita, está conseguindo diversificar sua produção verde e dependendo cada vez menos do café como fonte de recursos. Sucessos como os obtidos com a soja, por exemplo, só foram possíveis porque se formou uma forte estrutura de pesquisa e assistência técnica, que adaptou tecnologia originária do exterior às condições ambientais brasileiras. Resultado disso é o fato de a safra de grãos de 2002/2003 poder atingir o volume recorde de 110,6 milhões de toneladas, o que representa crescimento de 13,5% em relação à de 2001/2002, segundo projeção do Ministério da Agricultura. A área plantada deverá ter ampliação de até 4,9% em 2002/2003 – um adicional de 1,98 milhão de hectares em relação à anterior. De acordo com estimativas do ministério, o item que terá o aumento mais expressivo é a soja, cuja safra poderá chegar a 48,2 milhões de toneladas. Esse bom resultado deverá ser alcançado pela melhoria dos preços no mercado internacional e pelo crescimento das exportações do produto, devido à desvalorização cambial. Em seis ou sete anos, o Brasil poderá ser o líder na produção mundial de soja, na avaliação do ministério.
Resultados bem-sucedidos da chamada "revolução verde" no campo brasileiro, iniciada exatamente há 40 anos, e da indústria automobilística nacional mostram, de acordo com os parâmetros utilizados pelo Bird, que o Brasil, dentro do contexto global, não é um país pobre. Está entre aqueles considerados de renda média.
No ranking do Bird, contudo, só como referência para se calcular a distância que ainda separa o Brasil das nações mais ricas, países como Canadá e Japão desfrutam indicadores de renda per capita de US$ 25 mil, ou seja, o sêxtuplo do brasileiro. Essa informação, que dá consistência à tese pessimista de Thurow, é importante principalmente se for observado que, durante o período no qual a renda brasileira ficou 13 vezes maior, a dos norte-americanos também disparou.
No início dos anos 60, o PIB dos EUA girava em torno de US$ 400 bilhões. Hoje, aproxima-se dos US$ 10 trilhões, 25 vezes mais que há quatro décadas. Assim, na comparação com os EUA, que servem de referência para todo o mundo ocidental, os brasileiros, em vez de evoluir financeiramente, ficaram mais pobres. Só se verifica evolução quando os números da riqueza nacional não são relacionados com os de países ricos, mas com os de nível médio ou inferior.
Mesmo assim, o avanço econômico-social observado no Brasil nas últimas décadas é inegável. Segundo os indicadores sociais do IBGE, atualmente 96% dos domicílios brasileiros são servidos por rede elétrica; há 40 anos, esse índice caía para a metade; 76% das residências têm água encanada, quando no início dos anos 60 esse percentual não chegava a 40%; o lixo coletado abrange hoje 80% das casas, contra 45% quatro décadas atrás. Esgoto e fossa séptica, embora sejam serviços de saneamento básico, que obtiveram melhora substancial nos últimos anos, mantêm-se como talvez o principal calcanhar-de-aquiles do Brasil. Em pleno século 21, 50% das famílias brasileiras ainda não contam com uma rede confiável de esgoto, o que deprecia consideravelmente a qualidade de vida da população, de acordo com os parâmetros internacionais. Assim, é fácil compreender por que, para a análise do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que além dos aspectos econômicos cruza também indicadores sociais para diagnosticar a qualidade de vida da população, o Brasil tem uma péssima reputação e fica lado a lado com nações depauperadas da África, América Latina e Ásia no ranking da instituição.
Dívida social
Apesar da forte economia – entre as dez maiores do mundo –, o Brasil é considerado um dos países onde a desigualdade é bastante acentuada e que ainda apresentam elevado número de pobres, com índices de violência urbana só comparáveis aos de nações em guerra civil. A taxa média brasileira de desenvolvimento humano, no critério do PNUD, é de 0,757, e no último ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado mundialmente pela ONU, o Brasil está na bem pouco cômoda 73ª posição.
Estudos recentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), também da ONU, apontam a existência de 55 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza, isto é, com renda per capita mensal inferior a R$ 140. Destes, 21 milhões são considerados indigentes, pois apresentam renda per capita mensal inferior a R$ 70. Ou seja, não podemos esquecer que, embora a renda per capita tenha crescido nos últimos 40 anos, aumentou igualmente a concentração de renda, o que acaba provocando essas distorções intoleráveis em qualquer sociedade que se pretenda civilizada.
De qualquer maneira, a renda acumulada pelo 1% mais rico da população é maior do que a auferida pelos 50% mais pobres, um resultado que é considerado típico de um país do Terceiro Mundo. A renda média dos 10% mais ricos é 30 vezes maior do que a dos 40% mais pobres. Os 10% mais ricos recebem mais do que US$ 14 mil por ano, enquanto os 20% mais pobres ganham menos do que US$ 1,2 mil por ano, de acordo com dados do Bird. Pior: essa desigualdade, que dificulta ainda mais os esforços para tornar o Brasil um país de Primeiro Mundo, vem se intensificando. Em 1960, os 20% mais ricos possuíam 54% dos recursos nacionais, e os 50% mais pobres, 18%. Agora, as respectivas cifras evoluíram para 64% e 11%.
Ainda de acordo com levantamentos do Bird, as políticas públicas brasileiras são alocadas em proporção inversa ao volume de renda do segmento da população. Esse mesmo estudo mostra que os gastos com a área social estão distorcidos, com os 20% mais ricos da população recebendo 24% dos recursos, enquanto aos 20% mais pobres cabem apenas 13%. Quer dizer, quem mais se beneficia das políticas sociais é quem menos precisa delas. De fato, há apropriação privada dos recursos públicos, desperdício e corrupção.
O Estado brasileiro desempenha, portanto, um papel-chave no destino dos pobres e marginalizados, principalmente porque o setor público ainda responde por 20% do PIB. "Melhorar a eficiência estatal na distribuição dos recursos para a área social obviamente ajudaria a transformar essa situação. Se, por exemplo, os 20% mais ricos da população abrissem mão de apenas 3% de sua renda para os 40% mais pobres, isso duplicaria a renda dos excluídos", conclui o estudo do Bird, que, diga-se, tem trânsito pelos mais importantes bancos de investimentos, agências de rating e companhias seguradoras internacionais, as fontes de consulta para se chegar à cada vez mais observada taxa de "risco Brasil", que determina a disposição dos investidores estrangeiros de trazer recursos ao país e o prêmio que bancos e empresas nacionais têm de pagar quando precisam realizar captações no mercado global de capitais.
É importante notar ainda que as áreas de alta concentração de pobreza no Brasil também incluem os denominados "bolsões metropolitanos de pobreza", em particular as cidades grandes da região sudeste. Uma análise que se limitasse às disparidades regionais e rurais se arriscaria a ignorar uma variável determinante das desigualdades sociais e econômicas no país: a chamada "urbanização da pobreza", que vem se acelerando nos últimos anos.
O relatório do PNUD revelou ainda que, desde 1981, a participação dos pobres urbanos na população total depauperada cresceu de 26% para 29%. Com base nos dados do mesmo documento, a pobreza urbana em 2000 correspondia a 59%. Se tomamos o exemplo de São Paulo, o estado mais rico do Brasil, encontramos a mais expressiva concentração de pobres do país: 5,1 milhões, 3,3 milhões dos quais na Grande São Paulo, embora os maiores bolsões de pobreza do país fiquem no nordeste, principalmente nas áreas rurais, e nas demais metrópoles da região sudeste. É importante também enfatizar a necessidade de entender o problema dessas duas regiões não como questões separadas, mas como um único processo de empobrecimento, que através da migração apenas se desloca geograficamente e toma formas diferenciadas.
O fato de, em 40 anos, a população brasileira ter conseguido se tornar predominantemente urbana demonstra um dado de modernidade, mas também revela aspectos perversos de deslocação de contingentes populacionais inteiros, que, empobrecidos, abandonam suas áreas naturais para engrossar as favelas nas grandes cidades. Segundo o IBGE, em 1960, 57% da população brasileira, ou 39 milhões de pessoas, vivia em áreas rurais. No ano 2000, essa população rural desabou para 22% do total. Dados do IBGE mostram ainda que a tendência de urbanização brasileira mantém um ritmo que a coloca entre as mais velozes do mundo e, devido à falta de planejamento oficial, está provocando graves distorções na estrutura social do país.
Dentre os excluídos, os sem-terra, os pequenos agricultores e os pobres urbanos, os grupos afro-brasileiros, as mulheres com mais de 40 anos de idade, as crianças de 0 a 5 anos e os indígenas são os grupos particularmente mais atingidos no processo de pobreza e exclusão. O mito da democracia racial no Brasil, um dos grandes trunfos do discurso oficial, acabou sendo desmascarado aos olhos do mundo quando a ONU tomou conhecimento dos dados socioeconômicos que separam negros e brancos no país. Números recentes revelam que o salário médio mensal de um homem branco é de aproximadamente US$ 800, mais do que o dobro do valor do salário do homem negro (US$ 370). A mulher negra ganha menos da metade do que a branca, US$ 212 e US$ 523, respectivamente.
Menos Estado
Com uma população em processo de envelhecimento – na próxima década o Brasil será o sexto país com mais idosos no mundo – e, portanto, com a bomba-relógio da previdência social nas mãos, o governo começou a repensar sua atuação a partir dos anos 80 e a repassar para a iniciativa privada setores inteiros de atividade produtiva. Durante décadas o Estado promoveu ações e programas voltados para o desenvolvimento econômico e industrial do país, participando, direta e indiretamente, da consolidação de diversos setores produtivos, tais como o siderúrgico e o energético, nos anos 30, a mineração, na década de 40, transporte rodoviário, nos anos 50, petróleo e petroquímica, especialmente nas décadas de 60 e 70.
Diante dos desafios impostos pela economia mundial, somados à necessidade de reduzir as dificuldades fiscais do governo e reestruturar e tornar eficientes os serviços públicos prestados à sociedade, foi criado, em 1990, o Programa Nacional de Desestatização (PND). Essa iniciativa tem como objetivo o reordenamento da participação estatal na economia; a redução da dívida pública; a eliminação dos gargalos, principalmente em infra-estrutura, que impedem o crescimento econômico brasileiro; e o aumento de produtividade e competitividade do parque industrial nacional. Foi o primeiro programa na história econômica brasileira dedicado integralmente à privatização de empresas estatais, venda de participações minoritárias e concessão à iniciativa privada de serviços públicos, com destaque para telecomunicações, eletricidade, transportes e saneamento. Os resultados gerais, até o início de 2002, segundo um levantamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), são a privatização de 72 empresas federais e de 40 estaduais, a concessão de 78 serviços públicos e a venda de participação em 15 empresas estaduais. Com isso foram arrecadados US$ 85,3 bilhões e transferidos para a iniciativa privada US$ 18 bilhões em dívidas.
O maior de todos os processos de modernização empreendidos abrangeu o setor de telecomunicações, e começou em 1997. Partindo de um sistema essencialmente estatal, que, durante anos, sofreu com a ausência de investimento, o governo optou por um modelo que levava à concorrência, mas assegurava aos novos concessionários um período de proteção inicial para garantir rápido retorno aos investimentos exigidos.
O governo obteve um resultado de US$ 30,9 bilhões com essas concessões e com a transferência de dívidas. Mas os maiores ganhos foram da sociedade, que, devido ao regime competitivo e à exigência, por parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), do cumprimento de metas, está se beneficiando com a ampliação do acesso e da qualidade dos serviços telefônicos. A disponibilidade de terminais de telefonia fixa em todo o país aumentou de 19 milhões, em 1996, para 27,8 milhões no final de 1999 – 110,8% da meta. Em 2001, atingiu a marca de 48 milhões de terminais, superando a meta em mais de 20%. O mesmo ocorreu com a telefonia celular, que elevou sua participação de 3,2 milhões para 15 milhões de acessos entre 1996 e 1999 – 101,6% da meta –, chegando aos 29 milhões em 2001, e com telefones públicos, que em 1997 totalizavam 740 mil, passando em 2001 para 1,4 milhão, número cerca de 40% superior à meta estabelecida.
Nos transportes, antes de serem privatizados, em 1996 e 1997, os 28,7 mil quilômetros de vias férreas federais e estaduais apresentavam quedas vertiginosas na qualidade dos serviços, no volume de frete e nos investimentos. Para ser privatizada, o governo dividiu a malha ferroviária em sete blocos regionais e estruturou um modelo de venda por concessão de longo prazo que priorizava o investimento e a melhoria dos serviços, principalmente para carga. Segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a operação atingiu US$ 1,7 bilhão, pagáveis em 30 anos, e os contratos de concessão estabeleceram a necessidade de investimentos adicionais de vários bilhões, além de metas de qualidade. Depois da privatização, o volume de carga cresceu 37%, e o faturamento aumentou 75%. "O volume de negócios em 2002 deve ficar em torno de US$ 4 bilhões", informa um porta-voz ministerial.
Atualmente, o Brasil possui 164 mil quilômetros de rodovias federais, estaduais e municipais pavimentadas. No caso das federais, o governo busca maneiras de incorporar capital privado na construção de novos trechos e na pavimentação e/ou reforma das estradas existentes, bem como passar a manutenção à iniciativa privada. Para tanto, tem estudado e experimentado várias formas de concessão. Das rodovias estaduais, até o início de 2002 havia 8.675 quilômetros sob administração privada.
No total, entre rodovias federais e estaduais, foram transferidos para a iniciativa privada aproximadamente 10 mil quilômetros de estradas. Se todas as metas forem cumpridas até o final dos contratos, essas concessionárias deverão investir um total de US$ 5,3 bilhões na ampliação de trechos, melhoria no atendimento e reforma e manutenção da pavimentação.
A privatização do setor elétrico, iniciada em 1995, visou permitir a entrada do capital privado para elevar as taxas de investimento e assegurar que a capacidade de geração, bem como os sistemas de transmissão e distribuição, continuassem crescendo num ritmo compatível com as necessidades da economia e da sociedade. As principais empresas de geração e transmissão ainda são federais. Algumas empresas estaduais, além de distribuidoras, também possuem parque gerador importante, como é o caso da Copel, no Paraná (4,5 mil MW) e da Cemig, em Minas Gerais (5,5 mil MW). Resta ainda como grande geradora estadual a Cesp Paraná, em São Paulo (8 mil MW). Da capacidade total de geração instalada no país, o equivalente a 67,3 mil MW, até 2002 foram transferidos para a iniciativa privada apenas 9,4 mil MW, dos quais 4,9 mil MW eram da Cesp São Paulo.
O que resta do parque gerador na mão do Estado encontra-se em estudos com vistas à privatização. O grande mercado do setor de distribuição era atendido por empresas estaduais, a maioria já privatizada. Entre geradoras e distribuidoras, 20 delas foram transferidas para a iniciativa privada, em leilões que apresentaram resultados gerais de US$ 25 bilhões. A concessão dos serviços de distribuição de gás natural nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro também já passou para as mãos do setor privado, e rendeu US$ 1,8 bilhão.
![]() | |