Postado em 01/01/2003
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Do autoritarismo à redemocratização, a estréia da esquerda
CECÍLIA ZIONI
O Brasil tem novo presidente, Luís Inácio Lula da Silva, o 35º da vida republicana nacional e o 19º eleito por voto direto. Em março começa mais uma legislatura e, nos estados, há pouco assumiram os governadores e formam-se as novas assembléias. Executivo empossado, o Legislativo se organiza para, ao lado do Judiciário, armar o tripé em que se apóia a democracia do país, em seu 181º ano de vida independente – um ano em tudo ou quase tudo muito diferente dos anteriores.
Em 2002, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito, em segundo turno, por cerca de 53 milhões de votos, ou 61% dos válidos, de um colégio de 115 milhões de eleitores, quase dez vezes maior que o da última eleição direta antes do regime militar – em 1960, Jânio Quadros teve 48% dos votos válidos de um colégio de 11,7 milhões. Lula é apenas o terceiro brasileiro eleito em pleito direto para a presidência desde 1960 – o extenso período de exceção e o perfil do novo presidente mostram a larga trajetória da vida política do país nesses anos.
Oliveiros S. Ferreira, jornalista, doutor em ciências sociais e professor da Universidade de São Paulo (USP), lembra que, ao longo desse tempo, o Brasil viveu crises periódicas do poder, cuja origem, segundo ele, está numa curiosa característica nacional, surgida ao final da ditadura Getúlio Vargas. Executivo fraco e Legislativo forte, diz ele, estiveram no cerne de sucessivos períodos críticos, pois desde a Constituição de 1946 têm faltado à presidência da República os poderes necessários para governar em situações emergenciais. E as circunstâncias se agravaram nas diversas ocasiões de instabilidade política em que o Congresso mostrou pouco respeito à Constituição em vigor, fosse ela qual fosse. Esse foi o pano de fundo de golpes dentro de golpes e de alguns episódios de "assembleísmo" que marcaram os últimos 40 ou mais anos da história nacional.
À renúncia de Jânio, sucederam-se o vice João Goulart e o regime militar, dando início em 1964 à mais longa era de autoritarismo na história do país, encerrada oficialmente, depois de um curto intervalo de transição democrática, com as eleições diretas de 1989. Nesse ano, 35 milhões de pessoas elegeram Fernando Collor – cara nova, ainda que oriundo de uma das facetas mais antigas da política brasileira, as oligarquias. A redemocratização não teve bom início, e a vitória de Lula, em 2002, depois de duplo mandato de Fernando Henrique Cardoso, é tida como um novo marco histórico, o do fortalecimento das instituições democráticas. Já não se menciona, em nenhuma circunstância, a eventualidade de um retorno dos militares ao poder. Duas das principais características da atualidade são um nítido afastamento das forças armadas em relação ao poder e um preocupante distanciamento do Estado em relação à sociedade. A esse respeito, Oliveiros S. Ferreira diz que o risco agora é "a hemorragia interna que afeta a sociedade brasileira".
Collor foi um aventureiro, segundo Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora do Departamento de Ciência Política da USP, "sem partido, com um discurso populista de direita e decisiva ajuda de setores da mídia". Em dois anos, Collor caiu: 441 deputados federais aprovaram o pedido de impeachment contra ele, que renunciou para não ser expulso do cargo, mas o Senado o tornou inelegível por oito anos, por crime de responsabilidade.
A renúncia de Collor ocorreu 31 anos depois da de Jânio. Foram momentos políticos muito diferentes. No primeiro episódio, a democracia enfrentara sua pior crise e sucumbiu ante a ditadura. No segundo, a redemocratização correu risco, mas manteve-se de pé e, dez anos depois, mostra-se revigorada.
Uma das semelhanças mais significativas entre Collor e Jânio é que nem um nem outro tiveram maioria no Congresso nem souberam montar uma base de apoio parlamentar, e foram vítimas disso. Segundo o jornalista Almyr Gajardoni, o presidencialismo brasileiro tem uma característica muito peculiar: longe de ser parlamentarista, exige, entretanto, forte respaldo parlamentar, sob risco de cair na ingovernabilidade.
O Brasil pós-Collor parecia correr o mesmo risco pós-Jânio, mas a saída foi bem diferente. Na década de 60, instalou-se o regime militar, que suspendeu a maior parte das garantias democráticas no país. Nos anos 90, a sociedade e as instituições brasileiras haviam amadurecido o suficiente para sair da crise ainda mais fortes. O quadro político de 2003 confirma a trajetória vivida nestes 40 anos.
As eleições de 2002 são um marco histórico, "indicativo da nossa capacidade de criar instituições que cada vez mais enriquecem o processo democrático", diz Bolívar Lamounier, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que cita como exemplo do avanço o processo de transição de governo criado por Fernando Henrique Cardoso. "O hábito da democracia, o convívio com valores democráticos, a arte de negociar melhoraram extraordinariamente em relação aos chamados anos de chumbo."
Para o economista Paul Singer, professor da USP e ex-membro de administração petista, o cenário agora é de "uma mudança política propiciadora de amplas transformações econômicas e sociais por processo pacífico". O aumento das bancadas de partidos de oposição, para ele, é sinal de "construção de um bloco histórico, que pela primeira vez inclui a massa de desprivilegiados".
É um cenário totalmente diferente do de 40 anos antes, quando um político oriundo de base trabalhista, João Goulart, também chegava ao poder. Almyr Gajardoni descreve em seu livro Idiotas & Demagogos o começo da década de 60. Goulart, vice de Jânio, "militante do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas), fora ministro do Trabalho, tinha ligações com sindicatos. Havia os estudantes universitários, congregados na União Nacional dos Estudantes" – a UNE, onde se iniciaram na atividade política, entre outros, José Serra (agora PSDB), José Dirceu (agora PT), Sepúlveda Pertence (ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral). "Havia os sem-terra, que começavam a se unir nas Ligas Camponesas. Todos clamavam por reformas de base, um indefinido conjunto de medidas que deveriam ser aprovadas pelo Congresso." Contra a onda reformista – bandeira de Goulart –, "uniram-se no Congresso as bancadas do PSD, do populista Partido Social Progressista (PSP, de Ademar de Barros) e da conservadora e elitista União Democrática Nacional, a UDN, adversários históricos, embora representantes das mesmas forças sociais, que se juntaram para conter o adversário comum". Enquanto corriam as difíceis negociações parlamentares, a opinião pública se dividia. O Congresso imaginava que cenários adviriam das eleições presidenciais marcadas para 1965 e das parlamentares para 1966 quando estourou o movimento de 31 de março de 1964 e "a democracia foi posta em recesso", escreve Gajardoni.
Indagado agora sobre o ponto mais positivo e o mais negativo no universo político nestes 40 anos, o jornalista responde que "nem é preciso pensar muito: o fato negativo foi o golpe de Estado de 1964. Conseqüentemente, o positivo foi o fim desse período, marcado por dois episódios emocionantes e singulares: primeiro, a eleição parlamentar de novembro de 1974, quando a maioria dos brasileiros, em quase todos os estados, votou nos candidatos a senador da oposição ao regime, sinalizando claramente seu descontentamento com a ditadura; dez anos depois, a campanha das Diretas Já, quando outra vez a maioria dos brasileiros saiu às ruas para exigir o direito de votar para presidente da República. A volta ao regime democrático foi uma conquista popular e desde então crescem o interesse das pessoas comuns pelos assuntos políticos e administrativos e a disposição para participar de atividades antes consideradas de exclusiva competência dos governantes", diz Gajardoni.
O jornalista Villas-Bôas Corrêa enumera em sua obra Conversa com a Memória os pontos básicos do período militar: o ato institucional número 5 (AI-5), de 1968; o golpe dentro do golpe, que desestabilizou o governo Costa e Silva e terminou aos poucos na administração de Ernesto Geisel, com o fim da censura à imprensa, em 1975; o desmonte da tortura nos aparelhos especializados do DOI-Codi, que precede e antecipa o fim da censura. Diz o jornalista: "A Redentora – apelido tirado dos pronunciamentos militares – morreu devagar, em lenta agonia, acompanhada pela expectativa da sociedade e por recaídas no arbítrio". Para Villas-Bôas, o movimento de 31 de março "começou a saltar dos trilhos dos compromissos ainda no governo inaugural do presidente Humberto Castelo Branco": o AI-2, de outubro de 1965, extinguiu o pluripartidarismo, criado pela Constituição de 1946, e os 13 partidos políticos então existentes foram substituídos pela Aliança Renovadora Nacional (a Arena, da situação) e pelo Movimento Democrático Brasileiro (o MDB, da oposição). Foi "um brutal recuo, o passo atrás do endurecimento", por devolver ao presidente "o poder de cassar mandatos e direitos políticos, decretar estado de sítio e estabelecer eleições indiretas para presidente e vice-presidente da República". O AI-2 arrombou a "portinhola bamba das promessas de redemocratização" e veio o que o jornalista chama de "tranco do endurecimento" – a série de atos institucionais que trouxeram, por exemplo, as eleições indiretas para governador, prefeitos e senadores biônicos.
O AI-5 fechou o Congresso, cassou mandatos e ampliou poderes do presidente. Terminara o período chamado por Gajardoni de "ditadura mansa, civilizada, que cassava mandados e suspendia direitos políticos, mas ainda não institucionalizara a violência física como método de atuação, malgrado os muitos brasileiros obrigados ao exílio e alguns excessos cometidos aqui e ali por autoridades de baixo escalão".
Vitimado por trombose cerebral em 1969, o segundo presidente militar, marechal Artur da Costa e Silva, foi afastado do poder que assumira em 1967. Com a decisão de não se dar posse ao vice, Pedro Aleixo, assumiu a Junta Militar, formada pelos ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que passou o poder ao general Emílio Garrastazu Médici, ainda em 1969.
No governo Médici cresceram tanto o movimento de oposição e de guerrilhas quanto a ação repressora e o endurecimento do regime. Ernesto Geisel assumiu em 1974, eleito por um Congresso sujeito à fidelidade partidária e com maioria da Arena, derrotando Ulysses Guimarães, do MDB. Geisel tocou a famosa "abertura política, lenta, gradual e segura", e a eleição de 16 senadores do MDB para as 22 vagas renovadas no final daquele ano mostrou ser esse o caminho adequado. Embora mantivesse a mão firme, fechando e reabrindo o Congresso para fazer valer suas decisões, Geisel também demitiu militares importantes que se opuseram à abertura.
Assim, quando outro general, João Batista Figueiredo, assumiu em 1979, o AI-5 já tinha sido revogado. Com a Lei da Anistia, retornam asilados, exilados e auto-exilados, como Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Gabeira, José Dirceu, José Genoíno e outros, alguns rapidamente reintegrados à vida política. Aprovada a emenda para eleições diretas de governadores, a partir de 1982, voltou o pluripartidarismo. O Partido Democrático Social (PDS) substituiu a Arena, o MDB transformou-se em PMDB, retornaram antigas legendas e surgiram novas.
O Congresso aprovou, em 1984, a emenda das Diretas Já por maioria simples, insuficiente para fazer valer imediatamente o voto direto, mas o colégio eleitoral elegeu em 1985 um civil da oposição, Tancredo Neves, para suceder Figueiredo.
Tancredo morreu e seu vice, José Sarney, assumiu. Em 1986, o PMDB governava em 22 estados, os analfabetos ganhavam direito ao voto, elegia-se a Assembléia Constituinte, instalada em 1987, sob a presidência de Ulysses Guimarães. Um ano depois, promulgada a Constituição, a economia fazia água. Inflação, desemprego, insegurança nas cidades, violência no campo marcaram o governo Sarney.
Em 1989, o país volta a eleger o presidente pelo voto direto: vitória de Collor e primeira derrota de Lula. "A crise do governo Collor foi um teste duro para as instituições, mas também uma demonstração de que eram capazes de reagir a um desafio que se temia ter vindo cedo demais. A saída de Collor resultou da operação simultânea de instrumentos de controle da sociedade, especialmente da imprensa, de parcela da opinião pública – os jovens caras-pintadas – e da instituição parlamentar", diz Maria Hermínia Tavares de Almeida, da USP.
A democracia brasileira, depois de Collor, saiu-se melhor que o esperado, apesar de todas as suas limitações e deficiências, diz a professora. Caminhou-se assim para se chegar, em 2002, a um "pleito livre e organizado por partidos ou coligações de partidos que, bem ou mal, expressam divergências democráticas de opinião, valores e interesses. As oligarquias não desapareceram, mas levaram forte baque, e sua influência em âmbito nacional continua diminuindo a cada eleição", comenta.
Sobre o último pleito, Leôncio Martins Rodrigues, professor da Unicamp, assinala "a maior profundidade dos debates, com discussões mais técnicas, menos agressões pessoais, maior envolvimento do eleitorado, maior liberdade de expressão dos programas, eleitores mais informados, menor proporção de votos nulos e em branco, maior rapidez na apuração, inexistência de fraudes". Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), diz haver agora "uma estrutura política mais clara, com um partido organizando a vida política do país no campo da esquerda, que é o PT. Os grandes partidos de centro-direita, exceto o PSDB, que recusaram a disputa presidencial e apostaram no federalismo partidário, se saíram muito mal".
Foram afastados nesta eleição alguns caciques políticos importantes, como Paulo Maluf e Orestes Quércia (SP), Leonel Brizola (RJ), Newton Cardoso (MG), Fernando Collor (AL), Gilberto Mestrinho (AM), Íris Rezende (GO), Paes de Andrade (CE), Pedro Pedrossian (MS).
"O voto foi uma condenação dos velhos perfis e das tradições corroídas da política praticada em algumas unidades federativas. Feudalismo, caciquismo e familismo não têm mais tanta força para eleger candidatos", diz Gaudêncio Torquato, consultor político e professor da USP.
Fábio Wanderley Reis, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acha positivo o fato de terem passado para o segundo turno em 2002 as duas candidaturas mais consistentes do ponto de vista institucional – Serra e Lula –, em contraste com outras mais personalistas e aventureiras, caso de Ciro Gomes, ou uma mais populista, a de Garotinho.
Também Sérgio Abranches, cientista político, destaca Serra e Lula como um "retrato da trajetória da sociedade brasileira" e "testemunhos da mobilidade social". Um e outro têm origem em famílias pobres, uma imigrante e a outra migrante. Abranches chama a atenção para o fato de essa mobilidade social e política ter-se dado em apenas uma geração, mas ressalta haver ainda "barreiras que nos forçam a uma situação indesejável de desigualdades profundas e duráveis".
As eleições majoritárias de 2002 mostram a conclusão de um ciclo racional de democratização, segundo Torquato. Para ele, um indício seguro são o interesse e o amadurecimento do eleitor, que "não votou em discurso, mas em representações. A rejeição ao continuísmo, a identificação com a mudança equilibrada, o preparo e a experiência, o carisma e a tecnocracia, a jovialidade e o fair play, o destempero verbal e a arrogância foram alguns dos fatores que influenciaram sua decisão. Foi a vitória do voto racional".
Maior presença de mulheres no Congresso é outra marca dos novos tempos. A bancada feminina na Câmara aumentou de 32 para 41 deputadas nesta legislatura. Dobrou no Senado, onde agora há dez senadoras. Mudou o espectro parlamentar, mas é também verdade que o aventureirismo e o populismo – velhas marcas registradas no Brasil – não desapareceram. Retornaram a Brasília políticos controversos. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), por exemplo, voltou ao Senado a que renunciara em 2000 para evitar a cassação, acusado de fraudes no painel de votação. Elegeu-se também a ex-governadora maranhense Roseana Sarney, fortíssima na fase de pré-candidaturas à presidência e que desistiu por conta de denúncias contra seu marido, Jorge Murad.
Uma boa fatia de fisiologismo parece ter sido também banida do Congresso. Por exemplo, a chamada "bancada da bola", que anulou o relatório final das CPIs do futebol: dos seus 14 candidatos, só quatro foram reeleitos, e com menor margem de votos. Na mão inversa, elegeram-se parlamentares do grupo de moralização do futebol, com 50% a 100% mais votos que antes. Também se reduziu a bancada ruralista – caindo de 174 para 103 o número de deputados da Frente Parlamentar da Agricultura.
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