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O custo da deficiência brasileira

Postado em 01/05/2002

 


Josef Barat / Foto:
Gabriel Cabral

Falhas na infra-estrutura comprometem o crescimento do país

Países que souberam priorizar os investimentos em infra-estrutura atingiram o desenvolvimento de forma consistente e duradoura. Nações como o Brasil, com deficiências históricas na oferta de serviços de transporte, energia e saneamento, enfrentam sérios obstáculos para oferecer um padrão de vida aceitável para sua população.
Esse assunto foi objeto de palestra proferida pelo professor e economista Josef Barat no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, no dia 11 de outubro de 2001.
O autor, especialista em transporte público, é consultor de empresas públicas e privadas e estudioso da infra-estrutura.
A palestra, sob o título "Infra-Estrutura e Desenvolvimento", foi seguida de debate e está reproduzida, de forma condensada, no texto a seguir.

JOSEF BARAT – O tema da relação entre infra-estrutura e crescimento vem sendo objeto de atenção ultimamente. É como se houvesse uma tomada de consciência a respeito da sua importância para o desenvolvimento do país. Há uns cinco anos, o ex-ministro João Camilo Pena coordenou um projeto para a Fundação Dom Cabral, em Belo Horizonte, com o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia, em que reuniu uma equipe de colaboradores para estudar a competitividade no país. Como resultado dessa iniciativa, foi publicado um livro que se chama Em Busca do Futuro – A Competitividade no Brasil, em que me coube a parte relativa a infra-estruturas. Esta palestra se baseia nesse trabalho, ao qual acrescento outras abordagens.

Nos últimos 20 anos, assistimos a um aumento das deficiências na oferta de serviços de energia, transporte, telecomunicações e saneamento. Houve mudança muito significativa nos mecanismos de financiamento, colapso no aporte de recursos públicos, fim das vinculações tributárias e dos fundos setoriais que davam sustentação aos investimentos e, com isso, o encerramento de um ciclo de expansão contínua das infra-estruturas no Brasil. Podemos acrescentar o desmonte das empresas estatais, e a única alternativa apontada pelos governos, principalmente a partir de Fernando Collor, foram as privatizações. Cabe ressaltar, ainda, a hiperinflação, que impedia programações de longo prazo, além da crise do Estado brasileiro e da Constituição de 88, que afetaram todo o processo de investimento da União.

No primeiro ciclo continuado de crescimento do país, baseado nas vendas de produtos primários para mercados externos, entre 1880 e 1930, a implantação e a exploração das infra-estruturas atendiam às necessidades de uma economia de exportação. Europa ocidental e Estados Unidos eram os principais consumidores desses produtos.

No processo decisório predominava o setor privado, orientado pela lógica das vendas externas. Construir uma ferrovia era uma decisão que obviamente dependia de uma concessão governamental, mas era voltada para atender ao transporte de um produto exportável. Os critérios de retorno do investimento eram fundamentados em estratégias definidas por interesses dos capitais estrangeiros. Toda a malha ferroviária, os portos, os transportes urbanos, os sistemas de saneamento, as usinas de geração de energia elétrica, enfim toda essa infra-estrutura foi construída e explorada por capitais externos, primeiramente ingleses e depois norte-americanos.

O interesse desses investidores era não só localizar novas praças que pudessem absorver a produção de bens de capital desses países, como também mobilizar os mercados financeiros em busca de maior rentabilidade nas aplicações do capital.

O Brasil era basicamente um produtor de alimentos e matérias-primas industriais. A exploração era feita por empresas concessionárias privadas, em geral estrangeiras, controladas por órgãos governamentais da administração direta. A estrutura era muito simples, com departamentos que faziam o que modernamente se chama de regulação dessas concessões.

Em resumo, aporte de recursos privados, concessões, pouca intervenção do Estado, o que levou a um crescimento médio anual do PIB durante esses 50 anos em torno de 4,5%, uma taxa histórica bastante significativa.

Entre 1930 e 1980, o Brasil entrou em novo ciclo. A grande crise gerada pela depressão de 1929 afetou o país, mas curiosamente a reação brasileira não foi de estagnação. Ocorreu uma transformação profunda na estrutura econômica e nas instituições públicas. O Estado começou a intervir pesadamente na economia, passando a ser indutor do desenvolvimento.

Teve início o ciclo de industrialização acelerada, que se baseou na substituição de importações. É claro que isso não aconteceu de uma hora para outra. O Brasil já vinha tentando industrializar-se desde pelo menos o princípio do século 20. A partir de 1930, todavia, a implantação e exploração das infra-estruturas passaram a ter outro enfoque. O processo decisório também se alterou, com a predominância do setor público, orientado pela lógica político-desenvolvimentista.

O Estado, ao assumir a liderança do processo de investimentos, toma como critérios não mais os ganhos de mercado, mas os dividendos políticos (no sentido mais amplo) e o que essas infra-estruturas representarão para o desenvolvimento nacional. A exploração dos serviços passa a ser feita por empresas estatais, as infra-estruturas vão sendo gradualmente estatizadas e raríssimos foram os segmentos que permaneceram sob operação ou exploração privada. Energia elétrica, transporte ferroviário, portos, telecomunicações, saneamento, todos ficam sob controle do Estado num período que vai de meados dos anos 40 até o final dos 50. Além disso surgiram novas infra-estruturas para dar sustentação ao desenvolvimento e também empresas produtoras de bens, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce.

Dupla função

A exploração dos serviços públicos por empresas estatais gerou no final desse ciclo uma superposição entre funções de concessionárias, poder concedente e mesmo a administração direta. A divisão entre esses papéis, que era clara no ciclo anterior, nesse se tornou menos definida. Assim a Eletrobrás, que seria uma concessionária estatal de serviços de energia elétrica, ficou também responsável pelo planejamento do setor, uma atividade da administração direta. As empresas estatais transformaram-se em juízes e jogadores nessa partida, o que provocou uma complicação institucional.

O crescimento médio anual do PIB entre 1930 e 1980 foi próximo de 7%. Poucos países do mundo tiveram esse desempenho. O Brasil se transformou, se urbanizou, se industrializou e chegou aos anos 80 com uma estrutura econômica bastante diversificada, com presença forte do setor industrial e confiança em que o progresso continuaria. A partir de 1982, porém, isso parou de acontecer, e ficamos diante de uma nova visão do país. Até 1980 os filhos tinham certeza de que alcançariam situação melhor do que os pais e os avós. A partir de 1980, principalmente nos anos 90, os filhos sabem que vão estar em condições piores, uma mudança radical de perspectiva.

Há 20 anos estamos tentando ingressar num ciclo de desenvolvimento sustentado, e a taxa média anual de evolução do PIB, que não chega a 2%, mal compensa o crescimento populacional, mesmo que este tenha diminuído drasticamente. Forçosamente, o Brasil, como um país industrializado ou já com uma importante atividade produtiva, terá de buscar competitividade, não só no mercado interno como também nas exportações.

Um dado novo é a relação entre o papel do setor público e o do privado. As coisas já não ficaram tão claras. O Estado desenvolvimentista quebrou, não tem capacidade de investir. E o setor privado, que tem essa possibilidade, durante muito tempo passou por uma série de incertezas e mostra-se inseguro para fazer os investimentos de longo prazo que caracterizam a infra-estrutura. Assim, não temos ainda formas consolidadas de atrair o capital privado, a não ser em processos de concessão, que são, em alguns casos, relativamente restritos. E hoje os critérios de retorno do dinheiro investido também já são diferentes, ditados por estratégias definidas por interesses da economia globalizada.

Sem planejamento

Mas ao longo destes últimos dez anos aconteceram algumas novidades importantes. Primeiro, a exploração dos serviços públicos deixou de ser exclusividade estatal e passou a ser feita também por concessionários privados. Foram criadas as agências reguladoras e, embora não tenhamos promovido uma reforma profunda do Estado, apareceram como que de improviso novos entes públicos que no final desse processo acabam por modificar também a estrutura do próprio Estado. É um erro achar que as agências reguladoras tomam o lugar da administração direta na formulação de políticas públicas, no planejamento e na definição de estratégias e prioridades de governo. Elas são meramente reguladoras de contratos de concessão e não substituem os núcleos de inteligência do Estado. Mas, como esses núcleos foram sistematicamente desmontados ao longo dos anos 90, o Estado não tem capacidade de formular políticas, estratégias e planos. A palavra "planejamento" foi banida do vocabulário dos economistas.

Por outro lado, surgiram também novos atores, como as entidades de defesa do consumidor. Quando havia o predomínio das companhias estatais na prestação de serviços, a atitude geral era de desalento. Não adiantava brigar contra uma Telesp, uma Sabesp, uma empresa pública. Com a privatização o consumidor adquire consciência de seus direitos e passa a exercê-los.

Apareceram igualmente as organizações não-governamentais e as agências de promoção de desenvolvimento, ou seja, a idéia de que o crescimento daqui para a frente não será alavancado apenas pelo Estado, mas pela sociedade.

Hoje há uma consciência, talvez ainda difusa, mas que se fortalece, de que os estrangulamentos físicos, operacionais e gerenciais das infra-estruturas afetam diretamente a competitividade das exportações e o abastecimento interno, e impedem o alargamento do mercado nacional.

Associados à deficiência das infra-estruturas, existem os desperdícios físicos, que se traduzem na perda de bens e serviços já produzidos, sem atender as necessidades de consumidores e empresas. Por exemplo, todo o ciclo de manejo, embalagem, transporte, armazenagem e distribuição de bens oriundos da agricultura representa uma perda importante na economia, pela deficiência dos serviços de infra-estrutura. As estimativas são muito variadas, mas chega-se a admitir que em determinados produtos agrícolas o índice do que se perde é de quase 50%.

Outro ciclo também de perdas significativas relaciona-se à energia elétrica. Além dos problemas de geração, que nos afligem hoje, temos tradicionalmente um desperdício elevado na cadeia de transmissão, distribuição e consumo. No fornecimento de água, principalmente nas regiões urbanas, o esbanjamento também é muito grande.

Outro fator: se a estatização dos serviços públicos foi importante num determinado momento da vida do país, a apropriação dessas empresas por interesses políticos, partidários e, freqüentemente, privados reduziu drasticamente sua eficiência. Não há empreendimento que agüente uma coisa dessas. Furnas, por exemplo, era uma companhia que no final dos anos 70 tinha 1,5 mil empregados e em 1990 contava com mais de 8 mil.

Ao terminar esse ciclo do Estado desenvolvimentista, não foi só a capacidade de investimento que se reduziu drasticamente, como também os núcleos de inteligência e de capacitação profissional. O grande celeiro de formação profissional ou de pesquisa tecnológica no Brasil foi sempre o das empresas estatais.

Revolução digital

Vamos fazer uma rápida passagem por algumas tendências mundiais e pelo que aconteceu no Brasil. Nas telecomunicações, houve uma digitalização progressiva das funções de comutação e transmissão e a expansão das malhas de fibra óptica. Isso alterou completamente o quadro. Essas mudanças tecnológicas, pela rapidez e pela dinâmica da pesquisa, da incorporação da tecnologia à produção desses serviços, provocaram alterações também de natureza organizacional e institucional.

No Brasil, implantamos serviços interligados e começamos a viver a revolução dos meios digitais, da transmissão por dados e imagens, da telefonia móvel, etc. E inevitavelmente a busca de modelos alternativos, a quebra de monopólios estatais, a abertura ao setor privado, formas mais adequadas de regulação dos mercados e descentralização.

Em relação à energia, no mundo há disponibilidade de petróleo, certa estabilidade de preço, sem maiores sobressaltos, afora a possibilidade de ocorrência de um conflito no Oriente Médio. Houve aumento das reservas mundiais de gás natural, que passou a ter maior participação nas matrizes de transporte.

No setor elétrico aconteceram mudanças jurídicas e institucionais muito sérias, uma reestruturação com vistas a regular o monopólio das concessionárias de distribuição. Isso começou na Inglaterra, depois se estendeu pela Europa e pelos Estados Unidos, num quadro de maior competição tanto na distribuição como posteriormente na própria geração, com a possibilidade de entrada no mercado de produtores independentes ou co-geradores. Um aspecto importante na questão da energia elétrica, principalmente para países como o Brasil, são os condicionamentos ambientais que gradualmente foram impostos por entidades internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, para concessão de financiamentos a hidrelétricas.

No país, o setor mais afetado pela reforma e pela privatização foi o elétrico. Trata-se de um insumo presente em quase todas as atividades produtivas. Sua reestruturação obedeceu a uma lógica que foi a da desverticalização da cadeia produtiva como condição para a concorrência. Regras coerentes permitiriam às forças de mercado operar fontes energéticas distintas de forma mais eficiente, procurando substituições. Essas grandes mudanças e uma regulação, que não foi tão bem estruturada como na área de telecomunicações, geraram incertezas, dificultaram decisões de concessionárias e retardaram muito o investimento em produção.

O setor elétrico passou a viver, principalmente do ponto de vista de geração, o pior dos mundos, sem recursos públicos nem privados, portanto sem investimentos na conclusão das hidrelétricas inacabadas e com uma margem de risco muito elevada nas operações dos reservatórios. Na geração e transmissão, os investimentos têm prazo de maturação e retorno muito longos. São incompatíveis com padrões financeiros do capital privado no Brasil, a não ser que existam sistemas de financiamento para investimentos de longo prazo. E o único mecanismo que temos é o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Movimentação inadequada

No caso de transportes, embora a situação não seja tão séria quanto a de energia elétrica, ela é grave também, na medida em que o sistema não se mostra adequado para baratear o custo do abastecimento interno e das exportações. No mundo, foram criadas concepções do transporte como um elo de cadeias logísticas muito complexas. O processo produtivo todo se alterou. Conseqüentemente, o transporte teve de atender a novas formas de produção e de localização dos produtos, das trocas entre empresas ou entre produtores e consumidores. Houve um desenvolvimento de técnicas muito avançadas de estocagem, acondicionamento, manuseio e movimentação de cargas. E redução de custos operacionais e tempos de movimentação. Um contêiner com mercadorias industriais sai de uma fábrica no Japão, é colocado num caminhão ou diretamente num trem, vai para o porto de Yokohama e dali é transferido para um navio que atravessa o Pacífico, chegando ao porto de Los Angeles ou San Francisco. Lá é levado para um trem especial, em geral um double-decker (dois andares) de contêineres, que vai direto para a costa leste. No porto de Baltimore, passa para outro navio e chega, digamos, a Roterdã, na Holanda, onde embarca num trem ou caminhão rumo ao destino final. Essa operação é integrada e está sob a responsabilidade de um único operador, em todas as etapas.

No Brasil temos um projeto de lei para a criação do Operador do Transporte Multimodal, aprovado no início de 2001, mas que ainda não foi regulamentado pelo Executivo.

O que está acontecendo no país? No caso das rodovias, as concessões foram apontadas como solução. Não havia mais recursos públicos, a Constituição de 88 vetou as vinculações de tributos, foi extinto o Fundo Rodoviário Nacional, a tributação sobre combustível e lubrificantes foi transferida para os estados sem que a União se desfizesse da parte da malha rodoviária sob sua responsabilidade. Pesquisas recentes mostram que 69% das estradas federais estão em situação que poderia ser classificada como péssima, ruim ou sofrível. Num primeiro estágio foram privatizados, por meio de concessões, 1.680 quilômetros de rodovias federais e concedidos por meio de delegação da União a estados mais 3 mil, perfazendo cerca de 9% da malha federal pavimentada. Em processo de licitação encontram-se mais 2,7 mil quilômetros (5,4%), o que leva a um total de 7,3 mil quilômetros. Numa malha federal pavimentada de cerca de 52 mil quilômetros, o que fazer com os 45 mil restantes?

No setor ferroviário, toda a rede foi privatizada. O modelo adotado foi o de arrendamento das linhas, instalações e equipamentos. Mas faltou um planejamento que definisse o papel das ferrovias no crescimento do país. Os concessionários são os grandes usuários do próprio serviço. Transportam minério de ferro, cimento, produtos siderúrgicos e grãos. Não buscam novos negócios.

Quanto aos portos, apresentam custo muito elevado, são ineficientes e pouco competitivos. O porto é uma babel de burocracia, que afeta principalmente o pequeno e médio usuário, aquele que não tem acesso aos terminais especializados. São características incompatíveis com modernos conceitos comerciais.

 

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – A infra-estrutura do período citado, de 1880 a 1930, voltada para a exportação, impediu a interligação do sistema ferroviário brasileiro. As linhas levavam a produção aos portos. Quanto à substituição de importações, nós a começamos primeiro aumentando a capacidade ociosa da indústria e em segundo lugar comprando fábricas fechadas, principalmente dos Estados Unidos. Tivemos etapas dirigistas nesse processo, muito fortes. O Estado Novo foi uma delas. Houve o reaparelhamento do exército, porque na realidade não tínhamos uma indústria bélica. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro foi um grande centro industrial de construção naval. Getúlio Vargas implantou ali uma fábrica de artilharia e produzimos destróieres e navios de guerra. Na aeronáutica o Brasil fez um acordo com a Folker e instalou uma indústria de aviões no Rio de Janeiro, que seria o germe da Embraer. Esse foi um processo dirigista, que se repetiu durante a guerra, quando foi implantada a Companhia Siderúrgica Nacional e também a Fábrica Nacional de Motores. Pergunto se você acha que houve alguma influência dos Estados Unidos na época de Getúlio.

BARAT – José Augusto Ribeiro lançou uma trilogia sobre Vargas. Jô Soares o entrevistou e fez essa pergunta a ele, porque corre sempre essa história de que Getúlio ficou em cima do muro. Ribeiro disse que a identificação era com Franklin D. Roosevelt, a quem ele admirava. Provavelmente a política intervencionista de Vargas não era muito diferente da de Roosevelt nos Estados Unidos. Foi um ciclo de visão do Estado como produtor e gerador de bens, serviços e riqueza.

MALCOLM FOREST – Você falou em desperdício, mas creio que o enfoque é mais amplo. Não há prejuízo apenas em logística, mas também em queima de biomassa, em destruição de uma cobertura florestal que poderia gerar uma riqueza econômica fantástica para o Brasil. Perdemos igualmente em oportunidades, em potencialidades. Vejam o exemplo do turismo no país.

BARAT – Toda atividade turística precisa de infra-estrutura, obviamente, mas se sustenta sobretudo na capacidade de preservar o que é de interesse do próprio turista. Infelizmente temos uma cultura destrutiva, que acaba matando a galinha dos ovos de ouro.

EDUARDO SILVA – O capitalismo do Estado que o Brasil viveu foi uma fase de aparente crescimento, mas deixou de apoiar o outro personagem da economia, a iniciativa privada. O resultado é que vivemos não propriamente uma crise de infra-estrutura, mas sua decadência. Hoje, se não temos estatais fazendo os serviços públicos, o que já é uma grande coisa, precisamos de um Estado que defenda o patrimônio público.

IRANY NOVAH MORAES – Tenho muitas dúvidas sobre esse custo Brasil. Queria saber, em números grosseiros, em quanto a ladroeira oficial encarece esse custo.

BARAT – Esse é um estudo que deveria ser feito. Primeiro, levantar os volumes de recursos da corrupção é uma pesquisa interessante.

OLIVEIROS S. FERREIRA – O que me parece fundamental é que tudo o que foi exposto é fruto de uma visão que persiste e que foi lentamente ganhando terreno: a mentalidade antiplanejamento estratégico e, no caso da energia, até certo ponto com algum laivo antiestrangeiro. De um lado temos o Estado que desaparece e de outro as agências pequenas com a mentalidade estatal de que o privado não presta.

BARAT – Esse tipo de visão se acentuou justamente no regime militar. No depoimento dado por Ernesto Geisel a duas historiadoras da Fundação Getúlio Vargas, é impressionante ver a coincidência das idéias desenvolvimentistas estatizantes com as teses de esquerda que prevaleciam no país a partir dos anos 30. Há uma confluência de posicionamentos, embora Geisel se declare um ferrenho anticomunista. Na verdade ele aderiu às teses mais de esquerda que valorizavam o intervencionismo, a presença estatal, contra a participação estrangeira nas infra-estruturas.
As estradas de ferro foram todas feitas por empresas privadas. A única exceção foi a Central do Brasil, estatal desde a origem. Entre 1880 e 1930 foram construídos 35 mil quilômetros de malha ferroviária, que ficou estabilizada nesse nível – hoje está em torno de 37 mil. Essas estradas desempenharam um papel, de modo geral para atender ao mercado externo. A partir do momento em que o objetivo do desenvolvimento passou a ser a industrialização, a consolidação do mercado interno, o papel de integração se deslocou para as rodovias.
Até 1960, quando o sistema elétrico era privado e as concessionárias estrangeiras, a capacidade instalada do país chegou a 3,5 mil megawatts. De 1962, com a criação da Eletrobrás, até 1995, o Brasil atingiu 60 mil. Então, as pessoas pensam que a iniciativa privada, principalmente a estrangeira, não atendeu as necessidades do desenvolvimento nacional.
O conceito moderno de planejamento no Brasil surgiu pela primeira vez com o Plano Salte, no governo Eurico Gaspar Dutra. Salte significava saúde, alimentação, transporte e energia. Todos os planos são repetitivos, mostram as mesmas prioridades. E têm essa mesma mentalidade, de que educação e saúde são coisas que virão como conseqüência do desenvolvimento e não como precondição. Daí a situação calamitosa a que chegamos nesses dois setores.

CLÁUDIO CONTADOR – No tocante à corrupção, a revista "The Economist" falou sobre o assunto, e naturalmente o Brasil é citado. Em um artigo ela mencionou que a corrupção absoluta cresceu, porém se tornou menos democrática. Na época dos militares ela existia, mas era mais bem distribuída, como geralmente acontece em regimes totalitários. O ciclo da corrupção democrática se encerrou com José Sarney, que foi o presidente mais democrata no que se refere à corrupção. A partir daí, apesar da democracia política mais ampla que estamos vivendo, a corrupção se concentrou e cresceu.

LENINA POMERANZ – Diante do quadro que você mostrou de degradação da infra-estrutura, falta de desenvolvimento, problemas com a iniciativa privada e do Estado, a pergunta é: o que se pode fazer? Qual é a saída?

CARLOS ALBERTO LONGO – Como você deixou claro, existem ciclos. Dada a conjuntura atual, estamos no da iniciativa privada. Até que ponto então poderíamos criar uma estratégia para eliminar todas essas inquietações?

BARAT – Penso que, com a crise do Estado, o colapso dos mecanismos tradicionais para gerenciar e financiar as infra-estruturas, provavelmente vamos ter uma participação maior do capital privado, por meio de concessões. Mas acredito também que pelas características do país – grande extensão territorial, diferenças regionais muito acentuadas, pobreza endêmica, desequilíbrios na distribuição de renda –, o poder público não poderá isentar-se de uma participação na vida econômica. É ilusão acreditar que o Brasil pode seguir um caminho liberalizante do tipo anglo-saxão, quando mesmo nos Estados Unidos há até hoje resquícios relativamente fortes da era intervencionista de Roosevelt. Um grande número de usinas hidrelétricas norte-americanas, por exemplo, é operado pelo Corpo de Engenheiros do Exército, ou por empresas públicas. O transporte urbano lá é do governo, a autoridade do porto de Nova York, que aliás era a proprietária das torres do World Trade Center, é uma entidade pública que administra todo o sistema viário da cidade.
Não podemos cair na armadilha de que a modernidade está apenas na privatização e no desmonte do Estado. Necessitamos de núcleos de inteligência capazes de formular estratégias de longo prazo, políticas públicas, planejamento, regulação. É uma outra configuração do Estado para esse novo ciclo.
Uma parte das infra-estruturas deverá ser objeto de investimento privado, outra continuará a merecer a atenção de investimentos públicos. Mas para isso precisaríamos remontar os núcleos de inteligência do governo que desapareceram, com exceção do BNDES e da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). O resto – Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Geipot (Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes), uma série deles – foi desmontado, e para recuperar leva tempo.

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