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A vez do subúrbio

Postado em 01/05/2002

 


Estação da Luz / Foto: Célia Thomé

Rede de trens da Grande São Paulo esconde jóias arquitetônicas

ALBERTO MAWAKDIYE

Boa notícia para quem gosta de estações ferroviárias antigas – e bem preservadas. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) pode começar ainda este ano a pesquisar as seis linhas de trem de subúrbio que cortam a região metropolitana da capital paulista para impedir que estações históricas sejam demolidas ou descaracterizadas. Técnicos do órgão farão levantamento do que ainda há de arquitetonicamente valioso na rede hoje administrada pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), do governo do estado, com vistas a futuros tombamentos. Trata-se de um trabalho inédito, já que não se conhece nenhum estudo oficial sobre a história e a arquitetura dessas ferrovias. Só se sabe que dezenas de estações e prédios de valor histórico foram para o chão nas últimas décadas, num processo que se acelerou a partir dos anos 50.

A pesquisa, na verdade, será o prolongamento de trabalho similar que o Condephaat executa desde janeiro de 2000 no interior de São Paulo, nas antigas ferrovias de longo percurso do estado – até agora, 180 estações já foram inventariadas. É uma empreitada que exige fôlego, pois a rede metropolitana de trens possui nada menos que 70 quilômetros de extensão, com 92 paradas, cortando 22 municípios, e estações aparentemente representativas estão espalhadas por quase todas as linhas. Além disso, há dezenas de armazéns, oficinas, residências de ferroviários e pontilhões distribuídos pelos trechos, cujo valor arquitetônico e histórico também precisa ser comprovado. E, para complicar, boa parte dos registros se perdeu.

Embora o Condephaat já conheça por alto o cenário que vai encontrar, o presidente do órgão, o advogado José Roberto Melhem, prefere não adiantar quais trechos ou estações deverão receber a proteção do Patrimônio Histórico, até para evitar especulações. "A princípio, tudo é digno de tombamento", afirma Melhem, que nem mesmo deixa entrever os imóveis que merecerão mais atenção do Condephaat. "Há coisas extremamente valiosas e pouco conhecidas na ferrovia metropolitana, e não vamos deixar de fora nada que valha a pena do ponto de vista arquitetônico", diz ele. Melhem avisa, entretanto, que o critério do órgão não será meramente o das belas-artes. Caso alguma edificação tenha valor histórico comprovado, e sirva ainda, do jeito que está, como referência cultural para a comunidade, será tombada. Mesmo que se trate de uma estação ou edifício relativamente novos. "Não vamos nos limitar apenas a prédios velhos", ele garante.

A iniciativa do Condephaat é oportuna. Poucos elementos da história paulistana foram tão relegados a segundo plano quanto as linhas de trens de subúrbio. Das 92 estações hoje operadas pela CPTM, cerca de 20, no máximo, têm valor histórico ou arquitetônico evidente – as outras com o mesmo perfil foram derrubadas e substituídas, ou tão modernizadas que o desenho original se perdeu. E, dessas 20, não mais do que meia dúzia foram efetivamente tombadas ou se encontram em processo de tombamento no Condephaat ou no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), órgão da prefeitura da capital paulista. E entre as já tombadas figuram as centrais e arquiconhecidas Luz, Brás e Júlio Prestes, uma ou outra estação deixada pelos ingleses e a Vila de Paranapiacaba, em Santo André, na região do ABC.

Primas pobres

A razão desse descaso histórico não é difícil de explicar. As linhas de subúrbio sempre foram as primas pobres das ferrovias paulistas de longo percurso, como Sorocabana, Mogiana, Araraquarense, Paulista e Santos–Jundiaí, que marcaram a paisagem do estado a partir do final do século 19 e cujas estações – boa parte de reconhecido valor artístico e arquitetônico, com seus estilos britânico, art déco e art nouveau – sempre receberam mais atenção de historiadores e arquitetos. Construídas principalmente para o transporte de café, essas ferrovias só tempos depois começaram a atender passageiros. A rede metropolitana de trens é, na maior parte, uma espécie de subproduto das linhas de grande e médio percurso que vinham do interior para o litoral, passando pela capital. As estações foram sendo implantadas aos poucos, pelas várias companhias que administraram as linhas ao longo do século, à medida que aumentava a densidade populacional e novos bairros iam surgindo.

A modernização das edificações acompanhou o mesmo processo, o que, com o tempo, acabaria por reduzir ao mínimo a fascinante diversidade arquitetônica dos primeiros tempos da ferrovia, quando cada companhia construía no seu estilo preferido. E a lamentável urbanização das "fronteiras" entre os prédios ferroviários e as cidades é outro problema que o Condephaat também deve atacar.

"A CPTM se preocupa mais do que as antigas companhias com o patrimônio histórico e tenta conservar o que resta da diversidade de estilos das estações", garante o engenheiro Fernando Gusmão, coordenador executivo de engenharia e infra-estrutura da CPTM, citando como exemplo a reforma e a restauração da Estação da Luz, hoje em andamento, e de várias outras antigas, feitas recentemente. "A substituição de estações foi uma conseqüência da própria história da ferrovia metropolitana. Por ser este um segmento deficitário e quase sempre subdimensionado, as companhias sempre o trataram de maneira extremamente pragmática", diz ele.

A conseqüência dessa postura é hoje fácil de ser constatada. Não fossem as construções históricas remanescentes, a rede de subúrbio só teria prédios de concreto pré-moldado, quadradões e sem nenhum atrativo, e as estações construídas em parceria com a Companhia do Metrô, que seguem o padrão empregado pelo metropolitano. Hoje, esses estilos construtivos – mais baratos e fáceis de executar – constituem a esmagadora maioria das edificações da rede.

Inglesinhas charmosas

O trecho que possui ainda o maior número de estações e prédios arquitetonicamente relevantes é o formado pela antiga Estrada de Ferro Santos–Jundiaí, que hoje se desdobra nas linhas A e D da CPTM, que cobrem o percurso entre Rio Grande da Serra e Francisco Morato, no sentido sudeste-noroeste da Grande São Paulo. Essa ferrovia entrou em operação em 1867, pelas mãos da britânica São Paulo Railway (SPR), que a implantou a partir da iniciativa (frustrada) do barão de Mauá. Certamente por ficarem nas "pontas de linha", quase uma dezena de pequenas estações construídas pelos ingleses, todas entre 1867 e 1891, sobreviveram até os dias de hoje, além da famosa Estação da Luz, que era o ponto central da ferrovia, e a Vila de Paranapiacaba. Dezenas de velhos armazéns também continuam de pé às margens da via férrea.

Essas pequenas construções – que estão praticamente intocadas, tendo sofrido apenas algumas alterações construtivas e funcionais ao longo do tempo – formam a imagem quase infantil de uma estação de trem. O formato é de uma casa térrea com cobertura de telhas francesas em duas águas. Todas têm em comum os tijolos aparentes vermelhos, o uso abundante de ferro fundido lavrado – por exemplo, nas vigas, colunas, platibandas e gradis – e as esquadrias decoradas. Algumas possuem passarelas também de ferro trabalhado. A agência (sala operacional) fica praticamente dentro da plataforma. Entre as estações da antiga ferrovia Santos–Jundiaí, destacam-se: Jaraguá, Perus, Caieiras, Franco da Rocha, Campo Limpo Paulista e Jundiaí, a noroeste; e Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e Campo Grande, a sudeste – estas últimas todas no ABC paulista.

Pastilhas

Mas a velha Santos–Jundiaí guarda outras preciosidades, desta vez, por ironia, frutos da destruição. Depois da 2ª Guerra Mundial, quando a SPR passou para o governo federal e mudou de nome, a empresa sentiu-se obrigada a reconstruir diversas estações do trecho, de modo a satisfazer a demanda crescente. Várias edificações de estilo inglês foram derrubadas nos anos 50, mas a companhia teve a preocupação de substituí-las por prédios arquitetonicamente relevantes. Optou por um estilo construtivo filiado à arquitetura brasileira moderna, tanto no tipo de estrutura, à base de concreto, como no formato da edificação, em linhas retas, com um certo monumentalismo e ausência quase total de ornamentações. Apesar das reformas e dos eventuais acréscimos, a maior parte dessas construções continua mais ou menos como era há meio século.

Localizadas nos bairros mais populosos atendidos pelas linhas A e D, essas estações são também quase inteiramente revestidas de vidrotil, pastilhas feitas de pasta de vidro, na cor azul. O telhado é de laje, e a cobertura da plataforma fica apoiada em colunas esbeltas, bem distribuídas pela construção. Têm janelas amplas e bem recortadas, e a agência fica anexa à plataforma. O acesso é sempre feito por passarelas. Na linha A, exemplos desse tipo de arquitetura são as estações Lapa, Piqueri e Pirituba. Na linha D, as estações Mooca, Ipiranga, Tamanduateí, Utinga, Prefeito Saladino e Capuava. O valor histórico e arquitetônico dessas construções pode ser comprovado pelo processo de tombamento da Estação Ipiranga, uma das mais representativas do período, que já se encontra em fase adiantada no Condephaat. "A documentação já foi reunida", revela a historiadora Celina Kuniyoshi, responsável pelo trabalho de campo do órgão e que também coordena ações similares em estações do interior.

Casarões

As construções mais curiosas herdadas pela CPTM estão, porém, na região leste da Grande São Paulo, mais exatamente nos extremos das atuais linhas E e F, que ligam o bairro central do Brás às regiões de Mogi das Cruzes e Poá, respectivamente. Foram erguidas nas décadas de 10 e 20 do século passado pela companhia Central do Brasil para atender à ligação entre Rio de Janeiro e São Paulo pelo Vale do Paraíba, muito usada para o transporte de café e dos primeiros migrantes nordestinos, que chegavam de navio à capital carioca. São todas estações pequenas, com um desenho que lembra os velhos casarões coloniais. Construídas com tijolões, com cores em tom pastel (o amarelo e o ocre predominam), têm pé-direito alto, telhado com duas águas e grandes janelas.

Restam, no entanto, pouquíssimos exemplares dessas construções, que surgiram antes da urbanização dos bairros e das cidades da periferia leste de São Paulo – a linha é de 1875. Brás Cubas, Jundiapeba e Ferraz de Vasconcelos, na linha E, e Calmon Viana – a mais bonita de todas, pintada em inacreditável amarelo-canário –, Aracaré e Ermelino Matarazzo na linha F são as estações remanescentes desse período. As demais foram dando lugar, para atender ao crescimento da demanda, a edificações geralmente erguidas em concreto pré-moldado, práticas, mas sem nenhum apelo artístico.

O Condephaat não pretende, no entanto, limitar-se a essas construções. Outras também devem ser objeto de interesse dos técnicos do órgão. É certo que a moderna Estação Santo Amaro, da linha C, que era da antiga Sorocabana e liga a cidade de Osasco à zona sul paulistana, será estudada com atenção, embora tenha sido inaugurada em 1986. Ela é um marco inegável da ferrovia metropolitana. Projetada pelo arquiteto Walter Toscano, foi feita inteiramente com estruturas metálicas e, repleta de curvas e pórticos, conseguiu fama mundial. Outros exemplares da linha C também devem ser pesquisados, como Jurubatuba, nos extremos de Santo Amaro.

Infelizmente, o Condephaat não poderá mais estudar as pequenas estações urbanas da Sorocabana na linha B, que vai do extremo oeste da Grande São Paulo até o centro da capital. Todas elas foram substituídas entre 1979 e 1986 por encorpadas construções de concreto pré-moldado.

Apelo turístico

Uma das razões para que as estações de subúrbio da Grande São Paulo vegetem numa verdadeira "zona de sombra" provavelmente é a pequena exploração turística e cultural dessas construções históricas. São poucas as agências de turismo que colocam as estações da Luz e Júlio Prestes em seus roteiros. Como não há programas oficiais e raramente a CPTM organiza excursões para a Vila de Paranapiacaba, esse potencial acaba desperdiçado.

Mas a situação começa a dar sinais de melhora. A Estação da Luz, réplica da de Sydney, na Austrália, já está sendo restaurada. "Ela vai ficar como era em 1900", afirma a arquiteta Meire Selli, assessora da Diretoria de Engenharia e Obras da CPTM. No caso da Júlio Prestes – projetada por Cristiano Stockler –, o edifício foi reformado para abrigar a Sala São Paulo, espaço para concertos de música erudita. Com a reurbanização que a prefeitura paulistana pretende fazer em torno de ambas, elas devem se transformar em atração turística da cidade.

O destino da Vila de Paranapiacaba deve ser ainda melhor. Em janeiro deste ano, a área foi comprada por R$ 2,1 bilhões pela prefeitura de Santo André (o parque ferroviário continua com a Rede Ferroviária Federal), que tem planos de restaurá-la para que se torne o principal pólo turístico do município. Apelos para isso não faltam. Incrustada no alto da serra do Mar, Paranapiacaba tem um casario inteiramente erguido em estilo britânico, além de equipamentos ferroviários implantados pela SPR – era ali que os trens faziam a transposição para a Baixada Santista. Além disso, o local tem grande potencial para ecoturismo. "Já desenvolvemos alguns projetos para viabilizar essa estratégia", revela o subprefeito da Vila, João Ricardo Caetano.


Situação pior no interior

Na comparação com as ferrovias de longo percurso, as linhas de subúrbio da Grande São Paulo estão mais bem conservadas. Desde que passaram a existir de forma efetiva, em meados do século passado, milhões de dólares foram investidos em novas estações, vias férreas e equipamentos de apoio para atender a uma demanda sempre crescente.

Com as linhas de longo percurso, isso não aconteceu. A partir dos anos 50, com a expansão da indústria automobilística, elas foram definhando, e hoje, quase todas privatizadas, atendem apenas o transporte de cargas. Das 650 estações que já estiveram em operação no estado de São Paulo, pelo menos a metade encontra-se em estado precário. Muitas foram demolidas, e nas remanescentes as depredações são freqüentes. Já as vias férreas estão sendo remodeladas pela iniciativa privada.

A decisão do Condephaat de ampliar o número de edificações tombadas no interior é aprovada com ênfase pela Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), a ONG mais ativa nesse segmento. A entidade, entretanto, não apóia da mesma forma iniciativa análoga do órgão na capital. "O interior tem muito mais estações valiosas do que a Grande São Paulo, não há como comparar", diz o historiador Henrique Anunziata, diretor da associação. "O Condephaat devia centrar o foco ali, para evitar que mais estações desapareçam."

A dispersão de esforços é admitida pelo Condephaat, que no entanto considera as estações de subúrbio tão prioritárias quanto as do interior. Com poucos recursos e técnicos, o órgão está tentando conseguir patrocínio para executar os dois trabalhos a contento.

A pressa do Condephaat para atuar no subúrbio é justificável. Os investimentos na rede metropolitana de trens se aceleraram desde a criação da CPTM, em 1994, que reuniu o braço metropolitano da Fepasa (a herdeira das ferrovias estaduais) e a federal Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). E novos investimentos sempre significaram, nas linhas de subúrbio, substituição de estações, seja pela demolição, seja pela modernização sem critérios.

Desde 1995, a CPTM investiu US$ 1,3 bilhão em novos projetos, erguendo cerca de 15 novas estações – sete delas com estrutura metálica, ao longo da Marginal de Pinheiros, bastante arrojadas arquitetonicamente – e modernizando as vias férreas e a logística de transporte. Uma sétima linha vem sendo construída na zona sul da capital. Em compensação, várias antigas estações do trecho leste foram desativadas para a implantação do Expresso Leste, um sistema parecido com o do metrô, e estão entregues à própria sorte.

De qualquer forma, a CPTM melhorou a qualidade do serviço, e com isso a demanda cresceu para quase 1 milhão de passageiros por dia. Mas o quadro está longe do ideal. Ainda há sérios problemas de atrasos e superlotação, e parte da frota é muito antiga.


O alto custo da manutenção

A CPTM vai ter muito trabalho caso o Condephaat tombe um número significativo de estações e equipamentos. Custa caro manter uma edificação tombada. É preciso comprar os materiais certos, zelar para que a arquitetura e a decoração sejam mantidas (o que encarece a mão-de-obra), e qualquer modificação deve ter o aval do Patrimônio Histórico. Para uma companhia que usa todo o dinheiro que tem em operação, manutenção de rotina e novos investimentos, será uma despesa não muito bem-vinda.

"Nas estações tombadas, como Luz ou Brás, trocar uma simples calha é extremamente trabalhoso, além de mais caro. As peças têm de ser iguais às originais, e quase sempre é preciso encomendar réplicas", conta o engenheiro Fernando Gusmão, coordenador executivo de engenharia e infra-estrutura da CPTM. A empresa tem de tirar dinheiro dos próprios cofres para esse trabalho.

Mas muitas vezes o desejo de manter a fidelidade arquitetônica e decorativa é atropelado pelo tradicional pragmatismo. A companhia teve de cobrir com tinta, em 2001, algumas paredes de estações da linha A revestidas de vidrotil, porque não conseguiu encontrar essas pastilhas, nem quem as produzisse por preço razoável. Os ornamentos estavam em péssimo estado. Nem é preciso dizer que as paredes ficaram descaracterizadas.

O arquiteto Samuel Kruchin, que fez e coordenou o projeto de restauração da Estação Perus, parcialmente destruída em um acidente de trens em julho de 2000, conhece bem o problema, de resto comum a todas as edificações tombadas. "Não se fabricam mais tijolos naquelas medidas e cores", lembra Kruchin. "Fomos obrigados a encomendá-los a uma olaria." Com os elementos de ferro da estação, a dificuldade foi ainda maior: esquadrias, vigas e gradis tiveram de ser reconstituídos por artesãos ultra-especializados.

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