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Em pauta
De igual pra igual

Postado em 01/10/2002

Em artigos exclusivos, professores, pedagogos e especilalistas apontam caminhos que levem a uma igualdadade racial/étnica no ambiente escolar


Fúlvia Rosemberg
é professora de Psicologia Social na PUC-SP e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas

Os estudos brasileiros sobre a educação de crianças pequenas, de até seis anos de idade, levando em conta a origem étnico/racial, são pouco numerosos e datam apenas dos últimos anos. A grande maioria das pesquisas que se detêm na análise das oportunidades educacionais dos quatro diferentes segmentos étnico-raciais no Brasil (negros, entendidos como o subconjunto de pessoas classificadas como pretas e pardas; indígenas; amarelos e brancos) tende a considerar o sistema educacional apenas a partir do ensino fundamental, deixando na penumbra a educação infantil (EI).

Além disso, enfrentamos no Brasil outro problema de difícil resolução para a pesquisa: pouco se conhece, poderia mesmo dizer nada se conhece, sobre o processo de classificação étnico-racial entre crianças pequenas. Perguntas aparentemente simples - a criança e o adulto identificam os grupos étnico-raciais da mesma maneira? - ainda permanecem sem resposta.
Muito lentamente, a literatura acadêmica e ativista vem se interessando pelos pequenos, procurando apreender desigualdade étnico-racial nas oportunidades da EI e propondo ações para corrigi-las. Antes de mencioná-las, é importante destacar que são as crianças de zero a seis anos o segmento da população brasileira mais pobre e o que enfrenta as piores condições de vida (Pesquisa sobre Padrões de Vida - PPV, IBGE, 2000), pois residem em domicílios cuja renda média é a mais baixa do Brasil e apresentam as piores condições de saneamento básico e coleta de lixo. O custo médio anual para manter uma criança na EI é mais baixo que o de qualquer outro nível educacional brasileiro (OCDE, 2000). Além disso, as professoras de EI recebem os piores salários do sistema educacional e as escolas de EI são as mais pobres quanto à qualidade do prédio e do material pedagógico. A EI brasileira é a nova rainha da sucata: no Brasil, as crianças pequenas encontram mais sucata nas creches e pré-escolas que brinquedos ou livros de literatura infantil.

Portanto, crianças pequenas negras, indígenas e brancas pobres que freqüentam escolas de EI públicas ou conveniadas recebem um atendimento de baixa qualidade. Aqui, a expressão atendimento pobre para pobres, negros e indígenas não é demagógica. A ação afirmativa significa, antes de tudo, melhorar a qualidade da oferta da EI. Repito: a ação urgente na EI para reduzir a desigualdade étnico-racial e econômica é melhorar a qualidade da oferta.
Quando se analisam as condições de acesso dos diferentes segmentos raciais à EI, nota-se um fenômeno perverso: a taxa de escolaridade na EI das crianças de zero a seis anos é maior entre as crianças brancas do que entre as negras; porém, poucas pessoas sabem que, no Brasil, as crianças também podem repetir de ano na pré-escola, isto é, repete-se de ano antes de se entrar no ensino fundamental. Por isso, há um número não-desprezível (que, felizmente, vem caindo) de crianças com sete anos ou mais na EI. Pois bem: a taxa de escolaridade na EI de crianças com sete anos ou mais é maior entre as negras do que entre as brancas. Portanto, como diz o ditado, é de pequenino que se torce o pepino: educação para a subalternidade de crianças brancas pobres, negras e indígenas se inicia desde a creche.
Procedemos, no Brasil, o inverso da utopia de Owen (século XIX), que preconizava educação do berço ao túmulo. Para crianças negras, indígenas e brancas pobres nosso lema é desigualdade do berço ao túmulo.


Ana Maria Cabral Esteves
é Diretora Executiva da AMCE Negócios Sustentáveis

A iniciativa do prêmio Educar para a Igualdade Racial representa uma enorme contribuição para a sociedade ao trazer a público a atuação de profissionais da educação que estão atentos, sentindo, pensando e agindo em seu cotidiano sobre a questão da igualdade racial, sobretudo na relação entre brancos e negros. Essa questão afeta a todos nós, a toda uma sociedade interessada em construir relações de eqüidade. Porém, é necessário ainda construir mecanismos que promovam condições para a igualdade de oportunidades. Há, portanto, muito a caminhar. E, nesse sentido, a educação constitui a alternativa de maior potencial para referenciar outra condição do negro no imaginário de adultos e crianças.
E para que a gente não viva só de esperança, cabe aos diferentes atores sociais o papel ativo de abrir os espaços possíveis e necessários para criarmos condições que permitam um maior acesso da população negra à educação formal e à aprendizagem de vida que pertence ao mundo do trabalho. Mas é importante frisar: esta não pode ser uma causa só dos negros. Ela é de todos, porque nos faz melhores. Pertence a todos, porque impacta no vir a ser social da família brasileira. Em termos populacionais, somos a segunda maior nação negra do mundo e as pesquisas realizadas por organizações governamentais e não-governamentais têm tido o papel fundamental de nos revelar as enormes desigualdades com que convivemos cotidianamente e que, em geral, passam despercebidas.
Essa realidade permeia todas as nossas relações e a inserção de abordagens étnica/racial na formação de jovens contribui para minimizar os impactos e distorções nas relações adultas e, portanto, no mundo do trabalho. Isso representa uma enorme oportunidade de abrir espaço para outras discussões, como a questão da mulher, do índio, de pessoas portadoras de deficiência e de pessoas com diferentes orientações sexuais.
Vimos assistindo o movimento das empresas pela Sustentabilidade e Responsabilidade Social Corporativa, que tem ajudado a montar um novo cenário e contribuído cada vez mais com o tema da valorização, da promoção e da gestão da diversidade. À medida que esse movimento avança, outros atores sociais serão, gradualmente, incorporados a um diálogo social capaz de reverter o estado de coisas a que chegamos. Com isso, cria-se um excelente espaço para refletir sobre os limites e pensar a necessidade de ampliar perspectivas quanto ao desafio de aprender a viver tendo o outro como uma unidade diferente de nós e que nos torna maiores do que realmente somos.


Bel Santos
é pedagoga social e coordenadora do programa de educação do Ceert (Centro de Estudos das Relações do Trabalho)

Dia 11 de setembro de 2002. Enquanto os olhos e a atenção da imprensa brasileira estavam voltados para a reprise das cenas de horror vividas por dezenas de pessoas diretamente envolvidas no ataque às Torres Gêmeas nos EUA, no ano passado, e análises pessimistas comparavam com cinzas a esperança em um mundo que respeite as diferenças, um mundo em que as identidades e as diversidades não sejam causas de dominação, exclusão e guerra, o Ceert (Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades), uma organização não-governamental, realizava no Sesc Vila Mariana o evento de premiação "Educar para a Igualdade Racial. Experiências de promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar".
Acreditando que a igualdade racial/étnica se constrói com leis e ações que garantam direitos e também com um processo educativo que teça cuidadosamente relações de igualdade entre os diferentes, instituiu-se o citado prêmio, voltado para professores de educação infantil e ensino fundamental de todo o país. O principal objetivo foi a inclusão do tema relações raciais/étnicas nos projetos pedagógicos e nas práticas escolares como forma de valorização da diversidade humana e da pluralidade cultural que caracterizam nossa sociedade, possibilitando o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, negros, brancos, indígenas e de outros grupos, para a garantia do direito de acesso e permanência na escola.
Foram inscritas 210 experiências, que representavam as cinco regiões do país, de capitais a pequenas cidades do interior, de áreas rurais, urbanas e de reserva indígena, demonstrando o compromisso de educadores em romper o silêncio e a invisibilidade a que são relegados negros e índios, contribuindo, assim, para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos e para a redução dos índices de fracasso escolar.
Se a história tem o poder de fazer sonhar, de construir uma memória coletiva, de gerar recordações e sentimentos de grandeza, ter a própria história negada ou representada como a história de dominados, passivos ou fracassados, provoca efeitos negativos na construção da identidade de um grupo, ao mesmo tempo em que provoca sentimentos de superioridade naqueles que se vêem como descendentes dos dominadores, dos vencedores. Todas as histórias, todos os "saberes" e não apenas aqueles dominantes precisam ser contados para educar para a igualdade racial/étnica.
Foram valorizadas as experiências que consideraram os diferentes "saberes" em suas mais variadas dimensões, como por exemplo o "sentir" as músicas, as danças e os ritmos presentes em um dos trabalhos premiados: "Cantando a História do Samba", de Belo Horizonte, em que o samba foi o ponto de partida para o estudo da diversidade e da identidade racial, da discriminação, da literatura e da arte negras.
Nos dias 10, 11 e 12 de setembro no Sesc Vila Mariana, na contramão da intolerância, construiu-se uma "incubadora" de experiências de promoção da igualdade, da inclusão e de encontros entre as culturas, buscando disponibilizar para todos os educadores o acúmulo das organizações negras que há muito vêm lutando para a construção de um país onde ninguém vale mais em razão de sua cor ou raça.
Foram expostas trinta experiências finalistas, desenvolvidos minicursos, workshops e palestras sobre auto-estima, estética, literatura afro-brasileira e indígena, direito e relações raciais, experiências institucionais na área educacional e formação de educadores. Houve aulas-espetáculo e shows, incluindo o "sentir" e o lúdico aos novos olhares.
Para a realização do evento, o Ceert contou com o apoio de setores governamentais, empresariais e não-governamentais, dando o exemplo de que a eliminação de todas as formas de discriminação e a construção da igualdade não são problemas dos discriminados, mas responsabilidade de toda a sociedade.


Ivair Augusto Alves dos Santos
é assessor especial da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça

A promoção da igualdade na sociedade brasileira é parte da transformação democrática do país. Não poderemos nos auto-afirmar como nação democrática enquanto não estabelecermos o compromisso claro e contínuo pela eliminação das barreiras invisíveis da discriminação racial. Promover a diversidade, reconhe-cer e valorizar as diferenças serão realidade apenas quando as empresas e o serviço público assumirem o compromisso de enfrentar a discriminação.
A pobreza, o subdesenvolvimento, a marginalização, a exclusão social e as disparidades econômicas estão intimamente associadas ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância correlata, e contribuem para a persistência de práticas e atitudes racistas que geram mais pobreza.
Acreditamos firmemente que os obstáculos para superar a discriminação racial e alcançar a igualdade racial residem, principalmente, na ausência de vontade política, na existência de legislação deficiente, na falta de estratégias de implementação e de medidas concretas por parte do Estado, bem como na prevalência de atitudes racistas e estereótipos negativos.
É fundamental termos um olhar e uma atitude po-sitivos em relação às ações afirmativas em favor das vítimas de racismo e discriminação racial, com o in-tuito de promover sua plena integração na socieda-de. As medidas para uma ação efetiva, inclusive as sociais, devem visar corrigir as condições que impedem o gozo dos direitos e a introdução de medidas especiais para incentivar a participação igualitária de todos os grupos raciais em todos os setores da sociedade, colocando todos em igualdade de con-dições. Dentre essas medidas devem figurar ampliarmos a representação adequada nas instituições educacionais, para estimularmos e garantirmos a igualdade de participação e uma sociedade mais justa e democrática.
Destacamos o papel catalisador desempenhado por organizações não-governamentais anti-racistas como o Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) na promoção da educação para os direitos humanos e no aumento da conscientização pública sobre o racismo e a discriminação racial. Instituições como essa têm um papel importante no aumento de sensibilização de tais questões nos órgãos pertinentes das Nações Unidas, baseadas em suas experiências nacionais.
Procurando enfatizar os vínculos entre o direito à educação e a luta contra o racismo e a discriminação racial, gostaria de chamar a atenção para importantes compromissos que o Brasil assumiu na Conferência Mundial contra o Racismo, ocorrida em Durban, na África do Sul:
1 - Incentivar as autoridades educacionais e o setor privado a desenvolverem materiais didáticos, em consulta com autoridades educacionais e o setor público, incluindo livros didáticos e dicionários, com revisão e correção dos livros-textos e dos currículos para a eliminação de quaisquer elementos que ve-nham a promover racismo, discriminação racial e xenofobia.
2 - Introdução de valores de solidariedade, respeito e apreço à diversidade, incluindo o respeito por diferentes grupos. Um esforço especial para informar e sensibilizar os jovens para respeitarem os valores democráticos e os direitos humanos.
3 - Prestar atenção específica ao impacto negativo do racismo e da discriminação racial.
Ainda afirmamos que a educação é um fator determinante na promoção, disseminação e proteção dos valores democráticos da justiça e da igualdade, que são essenciais para prevenir e combater a difusão do racismo e da discriminação racial.


Marly Silveira
é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás

O respeito às diferenças e a construção da igualdade social são ideais muito caros às democracias modernas. Entretanto, no Brasil, como em muitas outras regiões do globo, apresenta-se um longo processo de construção como caminho em direção à sociedade igualitária. Considerando que a cultura no mundo capitalista e pós-capitalista é fruto da divisão social do trabalho, então ela faz parte da desigualdade e é veículo dela. Nesse sentido, as "diferenças culturais" produzidas pela fragmentação atual da sociedade estão conectadas à desigualdade, razão pela qual não se pode discuti-las em separado.
Relacionando pluralidade cultural e educação para a igualdade, pode-se pensar a possibilidade de criação de uma cultura da igualdade por meio da atuação da escola. Para isso, entendamos a cultura como a racionalidade presente e possível nas formas desta sociedade. De um lado, a razão que a organiza, isto é, a racionalidade instrumentalizada cuja lógica é a exclusão. E de outro lado, o exercício de construir outra cultura que não admita a exclusão. A cultura instrumentalizada compõe a "cultura escolar" e a escola reproduz essa lógica. Educa as novas gerações transmitindo a cultura vigente, o seu modo de pensar, uma razão que aceita e legitima a existência das desigualdades e da exclusão social como algo inelutável.
Entretanto, mobilizando a capacidade de reflexão, que faz do aluno sujeito pensante, a escola reserva potencial de negação dessa lógica e de afirmação de uma educação que ajude a formar bases para a sociedade justa, aquela que atende as necessidades de todos. Embora paradoxal, é defensável uma socialização por meio de processos educativos que rearticulem a ação dos professores e dos alunos na escola, para torná-la co-formadora de personalidades solidárias e que sejam sujeitos de alteridade e autonomia, a partir do que é possível na sociedade moderna. Na civilização contemporânea, a razão que a organiza, a lógica produzida na racionalidade da cultura na modernidade, não é mais capacidade de julgar, autogoverno. De fato, essa forma civilizatória constitui a "sociedade de massa", dirigida para o consumo e novos valores transmitidos pela mídia, que dispensam o esforço intelectual ou a "cultura do espírito".
A ética na sociedade de mercado não está centrada no humano, mas no espetáculo e no consumo. O ser humano afasta-se do controle de sua vida, desenvolvendo um "desconhecimento de si", pois, ao compor a massa, perde a capacidade de julgar. Essa desumanização é condição sine qua non da intolerância às dife-renças, da violência e especialmente do racismo, que tem suas expressões históricas tanto no Holocausto como na exclusão de povos assujeitados e de populações, em especial os negros e os indígenas, em grande número excluídos da riqueza material e do acesso aos instrumentos culturais da vida moderna.
Nessa perspectiva ética, o homem e a mulher só são humanos na racionalidade, na cultura em sua vertente universal, sintetizada em formas particulares e em singularidades. Para resgatá-los dos efeitos perversos de uma falsa formação sob uma certa "indústria cultural", comprometida apenas com as necessidades do mercado, necessita-se uma educação que estruture um pensamento crítico em relação à própria formação. Uma educação para a igualdade, no registro de outra lógica que se confronte com a manutenção das condições subjetivas de sobrevivência de todas as formas de preconceito, discriminação e exclusão do outro.
No caso da pluralidade cultural brasileira, em sua diversidade racial, a formação da subjetividade não-racista é emblemática das lutas pela promoção da igualdade social. Se apostarmos na força de uma mentalidade esclarecida e capaz de reflexão para desmontar e extinguir as formas condutoras do extermínio do outro, diferente e igual, a escola deve ser, a rigor, o espaço dessa socialização.

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