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Música
Independência Musical

Postado em 01/10/2002

Em depoimento exclusivo, Egberto Gismonti fala de sua relação com a música e de seu plano de disponibilizar quase todos os seus discos na Internet

Há alguns anos, me dei ao luxo de fazer um selo na Alemanha, o Carmo. Ele tem escritório e o diabo-a-quatro. De três anos para cá, ele passou a ser representado pela ECM Records em quarenta países. Isso me possibilitou produzir quem eu quisesse e quem aceitasse os meus princípios para gravar.
Como já tinha o selo, decidi comprar os direitos de comercialização dos meus discos gravados pela Odeon (quase vinte). Quando tive essa idéia, procurei os amigos, pontas-de-lança da música brasileira - nenhum deles havia conseguido isso. Mas acreditava que havia um jeito. Procurei dois amigos advogados, Pedrilvio Guimarães e João Carlos Éboli, para que eles me ensinassem um pouco sobre direito relacionado. Passei dois anos e meio tendo aulas quinzenalmente. Quando achei que já sabia o suficiente, marquei um encontro com o big-boss da Odeon na Inglaterra. Ele cedeu.
Ora, se eu negociei e consegui, por que a Carmo não coloca no contrato que, passados cinco anos, forneceria a matriz de graça para seus artistas? Então passei a dar matrizes, fotolitos, etc. Se em cinco anos não consegui realizar nada bacana com o disco, é burrice continuar guardando. Não sou dono de gravadora, não quero esperar 20 anos para obter algum lucro.

"Quero dar tudo de graça"
Nos últimos anos, os relançamentos dos meus discos foram quase todos feitos pela Carmo. Se alguém me pergunta por que os discos não foram relançados no Brasil, respondo que por uma decisão minha. Infelizmente, o resultado final de qualidade de áudio e gráfico ficava sempre aquém do que se fazia na Alemanha. Ainda não posso brigar para que os meus discos saiam no Brasil com essa qualidade, e não é possível importá-los, porque sairia caro demais. Decidi então dar um tempo para encontrar outra solução.
E a solução começou a aparecer. Há cerca de sete ou oito meses que, por meio de outros advogados, estou negociando com a Central de Arrecadação de Direitos Autorais européia uma autorização para que eu, autor e editor das músicas, e dono comercial dos fonogramas, possa disponibilizá-las gratuitamente num site na Internet. Não quero vender nada. Faço uma música que não tem nada a ver com o mercado e muitas pessoas possibilitaram que eu tivesse todo o conforto na vida. Sinto que devo agradecer a elas dando minha discografia até 2000. E não pretendo apenas dar o que as pessoas já conhecem. Haverá mais uns quinze discos: peças de teatro, balé e cinema, que considero ótimas mas nunca foram lançadas. Quero dar isso. Não preciso de mais. Não sou do ramo de música. Não sou músico profissional, não sou produtor; eu toco muito bem a música que faço. Sou profissional em tocar minha própria música.

"Toco orquestra como violão."
Há cerca de sete anos, tive uma certa dificuldade em fazer as orquestras com as quais trabalhava executarem minha música de maneira adequada. Mas isso não acontecia por causa dos músicos, e sim por causa do meu preparo para, usando um instrumento europeu que é a orquestra, falar música brasileira. Pratiquei tanto que aprendi. Agora toco orquestra como toco violão. Se me perguntarem se as orquestras estão tocando muito bem, respondo que não. Mas é devido a um problema cultural. Se me pedirem para tocar jazz norte-americano, não conseguirei; posso fingir que sei, mas não sei de verdade. Se me pedirem para tocar música de cervejaria da Alemanha, posso fingir que sei, mas não sei na realidade. Se eu pedir para uma orquestra tocar xaxado, maxixe, forró, choro, eles conhecerão as notas escritas, mas não o contexto da música.
O problema que os músicos brasileiros, como Villa-Lobos, tiveram não foi ter sua música bem executada, mas sim colocá-la dentro do mundo. E eu insisti nisso. Há alguns dias, estava em Lausanne, na Suíça, tocando com uma orquestra para meu próximo disco, gravado pela Deutsche Gramophone. Claro que é um privilégio para mim, mas não penso dessa forma. O maior privilégio é saber que o compositor brasileiro, terceiro-mundista, que está sendo mordido por um jacaré, entrou na Deutsche Gramophone para fazer um disco de música brasileira, que é popular.

"Sem a música, eu morro."
Não criei nenhuma música diferente, ninguém cria coisa nenhuma. O que aconteceu é que tenho uma história na música que me possibilitou ser amigo de índios, pajés, orquestras sinfônicas e eletrônicas; posso trafegar nessas áreas. Por isso digo que não sou do ramo de música. Ser do ramo é "eu faço determinado tipo de música". Não é o meu caso. Eu mexo com qualquer música. Um dia é Paralamas do Sucesso; outro dia, Bethânia; outro dia, Orquestra Sinfônica não sei de onde; outro dia, Zeneida Lima, que é pajé cabocla; outro dia, o Gil. Eu gosto de música, me interessa.
Para mim só existem dois tipos de música: uma que preciso ouvir senão morro, e a outra, que não é boa nem ruim - mas que não preciso ouvir para não morrer. Se deixar de ouvir um certo tipo de coisa, certamente morro. Meus filhos, que moram comigo, ouviram a vida inteira eu dizer para eles que primeiro é a música, depois eles. "Mas que absurdo!" Absurdo, não: sem a música eu morro, e aí eles não terão pai. Isso é de uma simplicidade atroz, estou apenas respeitando a minha verdade.

Egberto Gismonti apresentou-se em setembro no projeto Identidade Musical, do Sesc Vila Mariana.

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