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Fenômeno futebol

Postado em 01/05/2002

É GOL!

"O futebol é desses raros exemplos de arte corporal e mental que promovem a felicidade unânime, embora dividindo a massa de consumidores em grupos antagônicos. Antagonismo formal, pois a fusão íntima se opera em torno da beleza do gesto, venha de que corpo vier"
Carlos Drummond de Andrade, "Pelé: 1000"
Por Soninha

Quando uma mulher tem alguma ligação forte com futebol, é comum que alguém lhe pergunte: "Mas como começou o seu interesse?". (Atentem para o "mas" no começo da frase, indicando estranhamento ou incongruência.)
A quase ninguém ocorreria, no entanto, perguntar a um homem como e por que ele gosta de futebol. Estranho mesmo é ouvir de um rapaz que o futebol nunca fez parte da sua vida. Aí é caso de perguntar: "Como? Por quê?". No Brasil, gostar de futebol é o certo, o natural (pelo menos para os "meninos"). Mas... Por que será?
O técnico Carlos Alberto Parreira reconhece: "É sempre difícil explicar por que se gosta de alguma coisa ou de alguém. Muitas vezes a gente mesmo não sabe". Vamos, então, tentar entender por que o futebol é uma paixão compartilhada por tantos no Brasil e no mundo. Bilhões de pessoas amam o futebol, e especialmente o futebol brasileiro - são muitas as histórias de turistas brasileiros que foram salvos de contratempos em todas as longitudes graças às palavras mágicas "Pelé", "Romário", "Ronaldo". Um fenômeno na diplomacia contemporânea!
Curioso é lembrar que o futebol chegou ao país como um esporte da elite, como lembra José Trajano, diretor de programação da ESPN-Brasil: "Preto não tinha vez. Um jogador negro do América foi jogar no Fluminense e passava pó-de-arroz para ficar mais clarinho... Futebol era pra ser um críquete, com os uniformes de manga comprida copiando aquelas coisas inglesas".
O críquete era mesmo um esporte na moda entre a alta sociedade no final do século 19. Mas foi justamente o filho de um inglês - e uma brasileira - que em 1894 voltou dos estudos na terra do pai com duas bolas, uma bomba de ar, uniformes e um livro de regras. Com esse material, Charles Miller conseguiu reunir duas equipes formadas por ingleses para disputar a primeira partida de futebol nos arredores da rua do Gasômetro, no Brás, em São Paulo.
Aos poucos, o "povão" começou a se interessar pelo espetáculo. Em 1899, uma partida entre descendentes de alemães e ingleses atraiu um público de sessenta pessoas! A curiosidade da platéia pode ter sido despertada pelo fato de ver os mais ricos, normalmente engomados e empertigados, se engajando em atividade física tão animada. Logo aqueles sapateiros, pedreiros, pintores e outros operários ficaram instigados a fazer parte daquela festa.
Ou seja, parte do fascínio do futebol talvez tenha surgido justamente por se tratar de algo tão exclusivo, inacessível. Olhando bem, não havia motivo para exclusão: o jogo era fácil, dispensava estudo, bastava ("bastava"?) o talento. E, como diz o jornalista Juca Kfouri, 47 anos de amor por futebol ("minha primeira memória da vida é do Corinthians x Palmeiras que decidiu o Campeonato Paulista de 54"): "A nossa paixão se exacerbou a partir do momento em que a gente descobriu que era tão bom ou melhor que os outros nesse negócio".
De onde viria esse talento? Alberto Helena Jr., colunista do Diário de S. Paulo, arrisca: "Tanto pela vertente do índio, do negro ou até do branco ibérico, o brasileiro tem uma relação muito profunda com a dança. Por isso um jogo que se concentra nos pés parece fácil, natural. E o futebol não exige força; sobretudo naquele período, era muito mais habilidade. Assim, mesmo o brasileiro franzino, mal alimentado, podia se expressar e virar um grande executor desse esporte". Sócrates vê outra explicação plausível: "Nós somos uma sociedade ainda muito desorganizada, extremamente desigual. Então dependemos muito de criatividade pra poder gerar resultados que esperamos, e essa criatividade nos dá uma liberdade, uma independência, uma potencialidade individual muito grande. E é isso que conseguimos expressar nas áreas artísticas como futebol, dança, música". (Sim, futebol para ele é expressão artística, o que explica muita coisa.)

Uma bola ou coisa parecida
Todos concordam que a facilidade para se jogar em qualquer lugar, com pouquíssimo material, ajudou na popularização. Mas que o brasileiro teve muita criatividade para descobrir que havia alternativas às regras, isso teve. A simplicidade original - onze de cada lado, uma bola, duas traves - ganhou mil alternativas. Até da bola se prescinde! "O futebol se joga com bola de meia, com bola de papel... Em um país pobre como o Brasil, sobretudo nas primeiras décadas do século 19, isso fazia muita diferença.", diz Alberto Helena. Marcelo Duarte, criador da série Guia dos Curiosos e um dos responsáveis pela Enciclopédia do Futebol Brasileiro, acrescenta: "Imagina a dificuldade que seria comprar tacos de golfe, por exemplo, e ter gramados ondulados... Com o futebol, rapidamente as pessoas perceberam que podiam imitar os ricos. Em qualquer lugar se joga - no meio de duas avenidas, num campo enlameado, num descampado, num pedacinho de concreto embaixo do prédio, com dois pedaços de pau e uma bola". Parreira, que não gosta de ser chamado de "teórico do futebol" ("Eu nasci e fui criado no subúrbio do Rio de Janeiro. O que eu fiz a vida toda foi jogar futebol!"), lembra que até a aparência dos jogadores pode eliminar qualquer traço de distinção: "Você pode jogar com os pés descalços, sem camisa, não tem de ter aquele aparato".
As primeiras arenas esportivas de milhões de brasileiros, a rua e a escola (hoje em dia, mais a segunda que a primeira), são os primeiros espaços de convivência de uma criança longe da família. Ao mesmo tempo que passa horas de relativa independência em relação aos pais, se submete a outro sistema de autoridade. Nesse contexto, o futebol traz uma combinação interessante de regras a se respeitar versus a liberdade de criar, de convivência com o grupo e possibilidade de expressão individual - e talvez esse seja mais um segredo do seu sucesso. Marcelo Duarte vê um outro motivo: "Por pior que seja o seu time, você tem uma esperança... O fato de o time em que ninguém acreditava poder chegar lá. Você não entender qual é o mistério é o que dá graça". Sócrates explica por que essa história de que "o pior em campo pode ganhar" não é um clichê: "Os outros esportes, em geral, são de regularidade - toda hora você tem o mesmo lance, a mesma jogada, aí é acertar ou errar, acertar ou errar. No futebol não, um acidente pode provocar uma catástrofe. Você está o tempo todo sendo estimulado ao máximo".

A imaginação e o suspense
Parreira tinha 14 anos quando o Brasil foi campeão do mundo pela primeira vez. "Eu fiquei emocionado com aquela comemoração e decidi que seria um profissional de futebol. Nós íamos aos cinemas ver aqueles noticiários do canal 100..." Pois é, o cinema, hoje mais distante do mundo da bola, já alimentou muito o imaginário dos torcedores, com as imagens fantásticas do jogo em close e câmera lenta. Mas a falta de imagens também produz fortes emoções. O jornalista Armando Nogueira conta: "Lá na minha terra, em Xapuri, no Acre, instalou-se o clima de Copa do Mundo em 38. A cidade toda se aglomerava na porta da casa do dr. Mario de Oliveira, que tinha um rádio. Todo mundo ficava fascinado". Era como o totem no centro de uma aldeia, e tinha um efeito especial - "O rádio contribuía muito para a mitificação, porque ele aperfeiçoa os fatos. Você dá uma contribuição muito grande com a sua capacidade de fantasiar. Quando cheguei ao Rio com 17 anos, fui levado por um primo para assistir a um Botafogo x Flamengo com os grandes craques da época, e tive uma profunda decepção. No fim do jogo, quando ele perguntou o que eu tinha achado, disse: 'Qualquer um dos dois apanha do Rio Branco F. C.'... Porque eu nunca vi tanta imperfeição! O cara errar o chute, o passe... No rádio todas as bolas passam raspando a trave".

Jogo suspenso
Hoje a paixão parece ameaçada, e os estádios vazios são um sinal. A molecada já não tem mais tantas chances de jogar na rua, não tem campinho, não faz bola de meia. As crianças passam muito mais tempo diante do computador e da televisão - que, por sua vez, têm limitado o acesso a boa parte dos jogos importantes com os canais fechados.
Sócrates, amargurado, diz que "hoje a qualidade do jogo é muito distante do que é a nossa cultura, porque se tornou extremamente físico e perdeu muito de espetáculo, de beleza". Mas ele ainda se encanta com o jogo bem jogado, a habilidade, o talento.
Parreira acha que a paixão pode diminuir um pouco, mas não acabar. "Mesmo com a televisão ao vivo, com o desconforto que é ir a um estádio ver um jogo às dez da noite, sem condução decente, com dificuldade para comprar um ingresso, com o risco da violência, o torcedor ainda vai... Só a paixão pelo futebol consegue isso."
Juca Kfouri desanima com outros problemas: "Há muito tempo eu achava que nada mais me movia, porque é tanta sujeira...". Mas os títulos do seu Corinthians ainda mexem com ele, como o do Mundial da Fifa: "Eu me surpreendi agora, no ano 2000, no dia 14 de janeiro, quando o Edmundo chutou o pênalti pra fora. Fiquei comovido de ir às lágrimas. Verdade que eu estava ao lado de um filho que também foi às lágrimas, e isso não era muito freqüente, nem nele e nem em mim. Me tocou muito". Essa conexão familiar é o segredo da sobrevivência do amor pelo esporte, como diz Armando Nogueira: "É hereditariedade. É o pai que quer a companhia do filho, que faz a cabeça dele para torcer por um clube. Antes de saber o que é futebol o garoto ganha uma camisa, uma bola".

Soninha é jornalista

Milhões em ação - Números da Copa provam paixão pelo futebol

Alguns fatos e circunstâncias históricas ajudaram o futebol a se instalar nos corações brasileiros. Um deles foi a invenção de um certo Jules Rimet, o francês que presidiu a Fifa entre 1920 e 1954 e propôs, no Congresso de Amsterdã em 1928, a criação do primeiro mundial de futebol. Um evento que acontece de quatro em quatro anos - como os jogos olímpicos, nascidos muitos séculos antes - e tem um público fora do comum. O fato de envolver nações ressuscita o velho instinto guerreiro e o impulso de provar que "o meu grupo é melhor que o seu" (a sociologia explica). Contra adversários estrangeiros, a identificação entre os indivíduos de uma mesma nacionalidade se fortalece. A tendência tribal de representar a própria comunidade, presente no surgimento dos primeiros times, alcança proporções globais. O estádio é o coliseu moderno, onde se dá o choque sem sangue derramado. (Às vezes acontece, mas não é essa a idéia...) A vitória é simbólica, sutil: se a bola ultrapassar a linha, seu país é vencedor. Se ela estufar a rede, é a glória da nação!
Na próxima Copa do Mundo, embora os jogos para o Ocidente sejam exibidos de madrugada, estima-se que o público telespectador será em torno de 41 bilhões de pessoas (audiência acumulada dos 62 jogos). Em 1994, de acordo com levantamentos, a audiência do Mundial dos Estados Unidos foi de 32 bilhões de pessoas. Em 1998 foram 37 bilhões de pessoas. Para os afortunados que podem ver os jogos nos belos estádios da Coréia e do Japão, foram confeccionados cerca de 3 milhões de ingressos. Desses, 1,3 milhão são para os anfitriões. Os demais estão sendo destinados para torcedores dos trinta países classificados (880 mil), patrocinadores, diretores da Fifa e convidados (620 mil!), funcionários que estarão participando do evento e delegações da Fifa (220 mil).

Fonte: Site Oficial da Copa do Mundo 2002

 

 

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