Postado em 28/03/2022
O Carnaval mal havia terminado quando, em 25 de fevereiro de 1945, um domingo, o escritor Mário de Andrade foi enterrado no Cemitério da Consolação, na região central da capital paulista. A cidade, que amou profundamente em 51 anos de vida e foi um dos seus objetos de interesse intelectual mais sérios, guardou silêncio em homenagem ao célebre morador da Barra Funda – adorador da folia de Momo, boêmio, carismático e, ao mesmo tempo, tímido e religioso. O crítico literário Antonio Candido (1918-2017) relembraria a cerimônia, em 1992, em depoimento que integra o acervo do Centro Cultural São Paulo (CCSP). “Durante o velório de Mário de Andrade, o biógrafo Edgard Cavalheiro (1911-1958) me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: ‘Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?’. Respondi: ‘Até a morte de Machado de Assis’. ‘Pois é exatamente o que estou pensando’, disse (Edgard). ‘Machado de Assis em 1908 e Mário de Andrade agora’”.
Além da São Paulo, que abandonava os ares provincianos para se tornar uma metrópole industrial, outras paisagens do Brasil e, sobretudo, a sua gente, também seriam desbravadas na vasta obra deixada pelo criador de Pauliceia Desvairada (1922) e Macunaíma (1928). Coube a Mário de Andrade compreender e registrar, como poucos, o que constituía aquele país tão contraditório, complexo e multifacetado – e que, no começo do século 20, pouco conhecia a si próprio. Não por acaso, o poeta, romancista, musicólogo, ensaísta, crítico e historiador de arte, folclorista, fotógrafo e gestor público esteve no centro do período de efervescência cultural cujo marco divisor foi a Semana de Arte Moderna de 1922. E segue, um século depois do histórico evento, gerando reflexões sobre as raízes brasileiras nas quais mergulhou com devoção.
O movimento modernista tinha à frente o chamado Grupo dos Cinco, formado por Mário em conjunto com as pintoras Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973) e os escritores Oswald de Andrade (1890-1954) e Menotti del Picchia (1892-1988). Em uma época marcada pela busca da renovação artística, a relação e interação estabelecida pelo Grupo dos Cinco – especialmente por meio do intercâmbio de cartas – pode ser divisada por alguns ângulos de análise, conforme elucida o sociólogo Mauricio Trindade da Silva, autor do recém-lançado Mário de Andrade, epicentro, pelas Edições Sesc São Paulo.
“Primeiro, a aproximação por parte da amizade entre eles – antes mesmo da Semana de Arte Moderna – permite uma leitura que recupera os princípios que os uniram: desejo do novo na produção artística; combate ao ‘passadismo’ (em contraposição ao que seria moderno e, depois, caracterizado como modernista); a necessidade de identificar (e às vezes defender) os artistas que já estavam imbuídos de princípios vanguardistas, mesmo que ainda em fase inicial em termos de desenvolvimento da linguagem incorporada, entre outros aspectos”, detalha o pesquisador.
Mário Raul de Moraes Andrade, o rapaz negro nascido em 1893, cinco anos após a assinatura da Lei Áurea, tinha origem modesta – o pai era contador e a mãe, filha do advogado e político Joaquim de Almeida Leite Moraes (1835-1895). Estudou piano e, jovem adulto, foi professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Segundo Mauricio Trindade da Silva, de 1917 (ano da estreia literária do modernista, com a publicação de Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, assim como da realização da polêmica exposição de Anita Malfatti e momento em que o poeta trava contato com Oswald) até pelo menos 1921, o escritor realizou uma busca autodidata incessante. Seu objetivo era preencher a lacuna de formação que o distanciava, por exemplo, de alguém viajado ou já versado nos acontecimentos culturais europeus, a exemplo de Oswald de Andrade. Tal procura refletiu em suas atuações na área cultural e criação literária até se tornar, ao longo dos anos, um projeto de vida.
“Mário leu muito, estudou, aprendeu novos idiomas (alemão sendo um deles) e assinou revistas estrangeiras. Deixou registrado que o contato com a arte moderna ocorreu não por um processo intelectual, mas sim sentimental, visual – ao observar os quadros expressionistas de Anita Malfatti”, comenta. “Em 1922, com o Grupo dos Cinco já constituído (o que ocorreu após a chegada de Tarsila do Amaral, em junho, vinda de período de estudos na França), os relatos deles próprios mostram, numa linha talvez mais idealizada, como se reuniam para debater o que sabiam acerca da arte moderna e, também, apresentar e discutir as obras em realização”, aponta Silva.
“Havia, ainda, o lado da tensão, de uma certa rivalidade entre eles, porque a crítica feita no grupo – segundo dizeres do próprio Mário de Andrade – ocorria de maneira sincera e aberta, numa clara sinalização também de competição, que pode ser lida como uma relação de ‘interdependência’ tensa e conflitiva. Por isso que em 1929, Mário e Oswald rompem definitivamente”, acrescenta. [Leia mais no boxe Tantas vozes].
Um pouco antes da ruptura do grupo, Mário de Andrade adentrara na fase do nacionalismo estético em sua produção. Em 1927 realizou a primeira das duas viagens etnográficas que marcariam sua vida e obra para sempre. Como destino, o Amazonas e o Peru. Já na segunda incursão viajante (1928-1929), ele percorreu os estados do Nordeste. As ocasiões estimularam o alto ímpeto colecionista do escritor – seus objetos, obras de arte, biblioteca e arquivo pessoal foram declarados patrimônio nacional em 1995. O próprio Mário de Andrade foi um dos autores do anteprojeto da criação do órgão federal hoje denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) [Leia mais no boxe Relicários de Mário].
Quando esteve à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, implantou o ousado projeto Missão de Pesquisas Folclóricas. Nele, colaboradores de peso eram enviados para o Norte e Nordeste do Brasil para registrar manifestações da cultura popular. Entre os participantes das expedições estão os compositores Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Camargo Guarnieri (1907-1993).
Sua atuação no Departamento assim como seu anteprojeto de 1936, que serviu como um das bases para a inovadora legislação que nasceria um ano depois e que regulamenta até hoje o tombamento de bens culturais (decreto-lei 25), bem como suas excursões às diversas regiões do Brasil mostram o comprometimento de um intelectual com as referências múltiplas dos brasis que estão mergulhados nesse país-continente”, explica o historiador Yussef Daibert Salomão de Campos, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). “Mário, que chegou a trocar uma ida a Paris para pesquisar o folclore brasileiro, é um dos exemplos de mentes que, com o cuidado para não cairmos no anacronismo, pendia para a promoção das matrizes culturais locais sem, contudo, afiançar as estrangeiras”, complementa.
Para o historiador, dentre as muitas facetas de Mário de Andrade, a que melhor dialoga com o Brasil de hoje é a sua condição de polímata, ou seja, de indivíduo que estuda, ou que conhece, muitas ciências. “A cultura, com suas dinâmicas e múltiplos caracteres, não pode ser entendida como algo estanque e engessado. E Mário já nos mostrava isso há um século. Ele ombreou a dita ‘cultura erudita’ com a ‘popular’, Aquilo que chamamos de imaterial na gestão do patrimônio desde a Constituição de 1988, devemos parcialmente ao trabalho e à pesquisa do modernista paulista”, pontua.
Segundo o docente, “os modos de expressão, ofícios, saberes e celebrações tidas como bens culturais e objetos de políticas públicas de patrimônio desde 2000 são categorias que já estavam, ainda que por uma perspectiva semelhante, no horizonte do periscópio de Mário de Andrade”. Creio que tal legado na gestão da cultura, desde que inclusiva e democrática, como a tentada por ele na segunda metade da década de 1930 em São Paulo, ampliada e popularizada, inclusiva e emancipatória, pode ser uma das chaves para a retomada de um Brasil republicano e democratizante”, vislumbra.
A presença de Mário de Andrade permanece viva na cidade que tanto o inspirou. No comando do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, o poeta desenvolveu o projeto para a Biblioteca Municipal, que hoje leva seu nome. Partiu dele, também, a implementação da Discoteca Oneyda Alvarenga, sediada no Centro Cultural São Paulo (CCSP), que reúne discos e partituras de músicas brasileiras eruditas e folclóricas (comprados e doados) e cuja organização esteve a cargo da jornalista e folclorista Oneyda Alvarenga (1911-1984).
A Casa Mário de Andrade, por sua vez, funciona na residência onde o escritor viveu de 1921 até sua morte. O sobrado sedia uma ampla programação voltada à literatura, além de abrigar um museu onde está exposta a memorabilia do autor de Clã do Jabuti (1927). A maior parte do espólio, no entanto, está presente no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) desde 1968. Correspondências, partituras, manuscritos de obras, programas musicais, fotografias, pinturas, gravuras, desenhos, objetos de arte religiosa, popular e indígena fazem parte de um conjunto de mais de 30 mil documentos. Somam-se ainda cardápios, outro curioso objeto de coleção do escritor que era um apreciador da gastronomia.
“O legado de Mário de Andrade difunde-se nos catálogos, nos trabalhos universitários, em exposições, nas edições rigorosas da sua obra; em aulas e eventos de muitos naipes; nas novas dimensões da epistolografia derivadas do estudo da correspondência e da coleção que a divulga, enriquecida de notas. Assim acontece no presente, ultrapassa fronteiras. Consideradas as conquistas técnicas que crescem a cada dia, esse legado continuará a servir nos caminhos futuros garantindo a democratização do saber”, analisa Telê Ancona Lopez, professora emérita da USP, pesquisadora e uma das principais estudiosas da obra do escritor no país.
Em diversos livros que compõem a biblioteca andradina é possível identificar dedicatórias de seus autores. As mais de oito mil correspondências, entre recebidas, enviadas e de terceiros, formam, por sua vez, um universo à parte dentro da coleção. “O acervo de Mário dialoga especialmente com os pesquisadores que pretendem compreender o movimento modernista e levantar novos aspectos. Nessa direção, os documentos, como pensou o escritor, têm a capacidade de ‘fazer a história’, restituindo traços da realidade de uma época no Brasil, ao chancelar datas, acontecimentos na esfera da literatura, das artes e do cinema na sociedade”, destaca a pesquisadora.
SERVIÇO
Casa Mário de Andrade
Local: Rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda - São Paulo
Saiba mais: www.casamariodeandrade.org.br
Discoteca Oneyda Alvarenga
Local: Centro Cultural São Paulo (CCSP),
Rua Vergueiro, 1000, Paraíso, São Paulo - SP
Saiba mais: centrocultural.sp.gov.br/acervo
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP)
Local: Avenida Professor Luciano Gualberto, 78, Cidade Universitária, São Paulo - SP
Saiba mais: www.ieb.usp.br/acervo
Ao aprofundar as pesquisas que resultaram no livro Mário de Andrade, epicentro (Edições Sesc São Paulo) durante a realização do doutorado na Universidade de São Paulo (USP), o sociólogo Mauricio Trindade da Silva adentrou nas cartas trocadas pelos integrantes do Grupo dos Cinco. “O que é surpreendente na correspondência ativa e passiva de Mário de Andrade é a abertura subjetiva que ele criou com seus interlocutores em duas direções: a primeira, pelo lado da confidência, da confissão e da ‘escrita de si’, a permitir uma análise documental criticamente orientada. E uma segunda, relativa ao empenho em discutir a produção cultural engendrada naquele período, com julgamentos e críticas que hoje contribuem para melhor compreender o que estava em jogo no campo de produção artística entre as décadas de 1920 e 1940, envolvendo os embates e processos de construção de uma linguagem estética modernista”, reflete o autor.
Aliás, o interesse pela correspondência de Mário de Andrade surgiu um pouco antes do desenvolvimento do projeto de doutorado. “O modernismo traz essa marca e é representativo de um processo de transformação cultural, de maneira que adentrei a obra de Mário de Andrade mais pelo lado de uma certa identificação com o rigor intelectual que o caracterizou. Reconheço que não me identifiquei, portanto, e de igual modo, com a obra de Oswald de Andrade. Fui tragado – é bem esse o termo – pela correspondência que o poeta acumulou ao longo de sua vida. Uma correspondência volumosa e ‘monumental’”, atesta.
Poesia
Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917)
Pauliceia Desvairada (1922)
Losango Cáqui (1926)
Clã do Jabuti (1927)
Remate de Males (1930)
Poesias (1941)
Romances
Amar, Verbo Intransitivo (1927)
Macunaíma (1928)
Ensaios, críticas e musicologia
A Escrava que não é Isaura (1925)
Ensaio sobre Música Brasileira (1928)
Compêndio de História de Música (1929)
O Aleijadinho de Álvares de Azevedo (1935)
Lasar Segall (1935)
O Movimento Modernista (1942)
O Baile das Quatro Artes (1943)
O Empalhador de Passarinhos (1944)
Obras póstumas
Lira Paulistana (1946)
O Carro da Miséria (1946)
Poesias Completas (1955)
Na internet
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2015 – Conferência de encerramento: Mário de corpo inteiro, por José Miguel Wisnik: https://bit.ly/358ejyc
Raro registro de Mário de Andrade em vídeo: https://bit.ly/3wwyb9n
Álbuns
Macunaíma Ópera Tupi, de Iara Rennó (Selo Sesc): sesc.digital/colecao/macunaima-opera-tupi
Aulas
Perspectivas - Mário de Andrade e Departamento de Cultura - Gestão e Pesquisa: https://bit.ly/3JA97lL
Perspectivas - Mário de Andrade e a Música: https://bit.ly/3NdjduR
Apontamentos histórico-musicais na obra de Mário de Andrade: https://bit.ly/3N8Ac1o
Macunaíma - Atualidade e importância da obra: https://bit.ly/3uquM9H
Seminário Mário de Andrade - Amar e compreender: https://bit.ly/3D4ZpFm