Postado em 30/11/2021
Historiadora, professora titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora, Luzia Margareth Rago tece, em livros, os fios soltos da história não oficial e da memória de mulheres que mudaram o rumo da sociedade brasileira. Autora influenciada pelas obras dos filósofos franceses Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-1995), Jean-François Lyotard (1924-1998) e Jacques Derrida (1930-2004), Margareth reapresenta em suas escritas protagonistas de movimentos anarquistas e feministas, a exemplo de A Aventura de Contar-se: Feminismos, Escrita de Si e Invenções da Subjetividade (Unicamp, 2013). Enredos que nos auxiliam a compreender nossa história. Nesta Entrevista, Margareth Rago fala sobre seu processo de pesquisa e sobre mulheres que atravessaram os limites traçados por homens dos séculos 19 e 20. A historiadora também compartilha reflexões sobre “o narcisismo nas redes sociais” e o desmoronamento de um imaginário criado sobre o Brasil, tema aprofundado no seminário Ascensão e Queda do Brasil Tropical, realizado pela Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em parceria com o Sesc São Paulo, em 2020. Como resultado do seminário, recentemente foi publicado um livro homônimo pela Editora Intermeios, organizado pela historiadora e por Luana S. Tvardovskas e Maurício Pelegrini.
De onde nasceu a ideia para escrever A Aventura de Contar-se: Feminismos, Escrita de Si e Invenções da Subjetividade?
Este livro foi publicado em 2013 e, anos antes, eu tinha descoberto um grupo impressionante de mulheres anarquistas da Revolução Espanhola, chamado Mujeres Libres, que existiu entre 1936 e 1939. Foram quase 30 mil afiliadas a esse grupo. Ao começar essa pesquisa, viajei para Espanha e Paris (França). Eu terminava um trabalho sobre a anarquista italiana Luce Fabbri (essa pesquisa foi publicada como livro intitulado Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo, Editora da Unesp, 2001), que morava no Uruguai e que pouco antes de morrer me deu um vídeo para entregar a uma das mulheres do Mujeres Libres. Então, comecei a pesquisar a respeito. Eram mulheres que tinham 90 e poucos anos e que me receberam muito bem, principalmente Antonia Fontanillas, que estava morando do lado de Paris por causa do exílio de espanhóis na Revolução Espanhola. Fiquei uma semana na casa dela com minha filha e foi maravilhoso. Desse estudo sobre as Mujeres Libres, fiz um livro de documentos porque todo mundo queria saber mais sobre elas e não tinha como fazer fotocópias daqueles jornais imensos da pesquisa. Foi aí que pensei: para estudar ainda mais sobre esse grupo eu teria que ficar na Espanha, entender um pouco da cultura local, da história da Revolução Espanhola. Mas com filha, trabalho na Unicamp, problema de coluna, pensei: Por que não estudar as mujeres libres do Brasil?
E como foi a escolha dessas mulheres brasileiras que estão no livro?
Primeiro, pensei: quem são essas mulheres que eu gostaria de conhecer e que acho interessantes? Lembrei que já conhecia Amelinha Teles (Maria Amélia de Almeida Teles) e Criméia (Criméia Alice Schmidt de Almeida), mas não muito, e gostaria muito de saber mais sobre elas. Mulheres que são ex-presas políticas e que estão ótimas. Como uma pessoa que foi presa política está ótima? Será que elas fizeram terapia, foram ao psiquiatra? Nisso eu encontrei a Maria Lygia Quartim de Moraes, que foi uma exilada política e que é minha colega da Unicamp, num seminário no México. Contei para ela sobre o livro e ela aceitou participar da pesquisa. Eu também tinha feito amizade com a líder das prostitutas Gabriela Leite (1951-2013), porque havia feito um doutorado sobre a história da prostituição. Gabriela foi uma mulher de muita coragem e ousadia. Nisso, saiu uma reportagem sobre Ivone Gebara, uma filósofa e teóloga que estava na Colômbia. Fui atrás dela e ela também aceitou falar comigo. Fiquei impressionada porque, no caso dela, não era só uma feminista brigando com os homens, mas brigando com Deus. Eu já conhecia a Norma Telles porque ela trabalha com literatura feminina e feminismo. Tem também a historiadora Tânia Navarro Swain, ficamos amigas por ela também estar muito ligada ao trabalho do Foucault. Ela, inclusive, criou uma revista linda, Labrys – Estudos Feministas, que ainda existe e com 31 números.
INTERESSANTE COMO A PALAVRA FILOGINIA NÃO FOI INCORPORADA
AO NOSSO VOCABULÁRIO, ENQUANTO MUITOS SABEM O QUE É MISOGINIA
O que tornava interessante a história dessas mulheres?
Eu queria saber o que essas mulheres pensavam. Depois fui me dando conta de que elas eram apenas um pouco mais velhas que eu. Ou seja, eu também estava falando de mim e da minha geração. Queria saber como elas sobreviveram, como enfrentaram a ditadura militar, tanta repressão, tanta violência, uma cultura tão machista, e como elas chutaram o balde, revolucionaram e se revolucionaram. Queria contar essa história também pensando no seguinte fato: quando a gente estuda ditadura militar, a gente fala dos homens e eu queria mostrar que existiu um movimento de mulheres na década de 1970 que não era um movimento feminista, era um movimento de mulheres bastante liderado pela teologia da libertação, na periferia, na Zona Leste de São Paulo. Mulheres que brigaram pelas condições de vida dos seus familiares, mas não eram feministas.
E quais seriam esses feminismos que você coloca no plural?
Por exemplo, a Tânia N. Swain está ligada a um feminismo radical que, em geral, não vê com bons olhos as prostitutas, por exemplo. E a Gabriela Leite se dizia “prostituta feminista”, entendeu? São diferentes concepções do feminismo. Na época, eu também tinha pensado em trazer a Sueli Carneiro para falar sobre o feminismo negro, mas ela teve um problema de saúde naquele momento e não deu certo. Minha ideia era trazer um feminismo de pensadoras ligadas ao Foucault, ligadas ao marxismo, ligadas a diferentes leituras da luta das mulheres. A Norma Telles, por exemplo, que é muito ligada ao Bachelard [filósofo, químico e poeta francês, 1884-1962], não foi presa política. Outra foi exilada, outra foi para a Califórnia, outra foi para o meio da Igreja, caso da Ivone Gebara. Então, não há um feminismo, mas vários, e a gente tem falado cada vez mais dele no plural. Feminismo branco, feminismo negro, feminismo indígena, feminismo trans, feminismo decolonial, entre outros.
Esses feminismos dialogam entre si?
Sim, porque estamos falando das mulheres. E falar de mulheres traz temas comuns como o tema da sexualidade. Nosso mundo está mudando muito, mas, até algumas décadas atrás, “mulher pública” era sinônimo de prostituta. Então, falar de mulher traz à tona o tema da sexualidade e a principal arma de luta para conter as mulheres foi acenar para o perigo da prostituição. Quer dizer, a prostituição não apenas é uma experiência de mulheres, mas ela foi muito usada por médicos, juristas, higienistas para dizer: “Mulher que é mulher não ri alto”; “Mulher que é mulher se casa e tem filhos”. Autores que estudaram a história da prostituição, e eu também estudei, mas autores da França e da Inglaterra, todos concordam, de certa maneira, que o tema da prostituição é discutido em momentos de urbanização, quando surgem as grandes cidades, a modernização e as mulheres começam a ser consumidoras. Elas vão ao teatro e ao cinema, trabalham em fábricas, são professoras. A entrada das mulheres assusta e aí a prostituição é vista como uma arma para contê-las. Então, uma mulher como a Gabriela Leite é incrível porque ela criou um movimento das trabalhadoras do sexo. Ela mesma não gostava desse nome e preferia o termo prostituta. Quando eu lancei o livro Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-1930), ela me chamou para ir aonde estavam as prostitutas no Rio de Janeiro para lançar o livro. Elas me abraçaram e me agradeceram dizendo: “Todo mundo tem história: estudante tem história, camponês tem história, operário tem história, mas prostituta não tinha história e sem história não existe cidadania. Muito obrigada, você nos pôs na história”. Eu fiquei emocionada. Esse livro, fruto de uma pesquisa de arquivo, me conectou com um movimento que eu nem sabia que existia e que estava nascendo enquanto eu fazia o doutorado. A gente não sabia um do outro e quando publiquei o livro o movimento me puxou.
O movimento de mulheres anarquistas também é outro pouco conhecido e sobre o qual você fala em Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar e a Resistência Anarquista (Paz e Terra, 2018). Poderia contar um pouco sobre a história dessas mulheres?
Eu também não sabia sobre esse movimento e ele acabou se tornando meu mestrado na Unicamp. Não sabia muito bem sobre o que iria pesquisar e a universidade tinha criado o Arquivo Edgard Leuenroth – isso foi 1974 e cheguei em 1980. Me convidaram para conhecer o arquivo e lá eu li jornais que me impressionaram. Imagine um jornal do movimento operário de 1905 com o destaque “Greve dos sapateiros” e, virando a página, “O prazer sexual das mulheres”. Fiquei surpresa e fui atrás porque pensei que esse tema fosse da minha geração e não de um século antes. Comecei a pesquisar e descobri nesse mesmo arquivo, Maria Lacerda de Moura [leia quadro abaixo], um grande nome do anarquismo brasileiro. Quer dizer, não só brasileiro. Quando pesquisei sobre o Mujeres Libres, o nome dela foi mencionado em jornais anarquistas espanhóis da época. Aqui, no Brasil, ela tem mais de dez livros publicados entre 1920 e 1930 discutindo a sexualidade feminina. Ora, nos anos 1920 e 1930, sexualidade é um tema que os homens discutiam, não as mulheres. Não era considerado “coisa para mulher”, segundo médicos, juristas e higienistas. Maria Lacerda escreveu A Mulher é uma Degenerada em 1924, questionando as teses dos homens da época.
A IMPOSSIBILIDADE DA RELAÇÃO PRESENCIAL TEM DEIXADO
AS PESSOAS FORA DO EIXO PORQUE A SOCIABILIDADE É UM APRENDIZADO
Qual a participação dessas mulheres anarquistas do ponto de vista de organização e de protagonismo no movimento?
Elas participavam muito. Dentro do anarquismo, quando ele nasce no século 19, discute-se muito o amor livre. O anarquismo nasce no momento em que nasce o capitalismo urbano industrial, com seus modelos de feminilidade, de masculinidade e de família. E o anarquismo faz uma crítica ao capitalismo quando ele está nascendo. Então, o anarquismo critica a ideia de que mulher tem que ser “a rainha do lar”, uma vez que ela pode ser o que ela quiser. Pode trabalhar, criar, participar... O anarquismo faz essa crítica aos modelos que a burguesia traz em oposição ao mundo aristocrático. Vamos lembrar que no mundo aristocrático os homens se pintavam e usavam roupas coloridas, por exemplo, até que entra o modelo burguês dizendo que isso é para “afeminados”. O mundo era outro e ainda não existia a cidade com todas as suas complexidades. Esse movimento anarquista tem uma presença feminina muito ativa. Lembrando também que as primeiras fábricas que nascem no capitalismo são de tecido, de fósforo, de vela e empregavam mão de obra feminina. Quando fui fazer essa pesquisa, pensei: “Então, não é ‘o proletariado’ e sim ‘a proletariada’”. Mulheres e crianças trabalhavam nessas fábricas. Jorge Street [empresário brasileiro, 1863-1939], que era um industrial, defendia o trabalho infantil, mandava fazer e comprava máquinas pequeninas para caber as mãos das crianças. Ele contou isso em livros e as pessoas aplaudiam. Mesmo na Inglaterra, quando a gente estudava Revolução Industrial, a gente não lia sobre as mulheres. Os homens só vão entrar na indústria pesada depois.
No livro Parque Industrial, de 1932, a escritora Pagu também fala sobre esse cenário das mulheres nas fábricas.
Inclusive essas eram mulheres muito jovens, entre 13 e 16 anos. Me lembro que eu estava pesquisando “a lista dos indesejáveis”, formada por quem fazia greve, quem quebrava as máquinas das fábricas. Nessa lista estão: Angelina, 15 anos, Ema Sartorelli, 17 anos, Maria, 13 anos… Ou seja, crianças. Já em 1917, numa greve em São Paulo, a quantidade de mulheres era impressionante. Lembrando que naquela época elas se casavam aos 13 anos. Então, a princípio eu ia estudar os anarquistas, mas não pensava nas mulheres até perceber que a importância delas era tamanha e que o silêncio a respeito era maior ainda. E para falar de mulher não tem como não falar de sexualidade. Aí entrou o tema. Quando estava terminando o mestrado, fui pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e puxei o arquivo: Amor Livre. Estava escrito assim: Amor Livre vide Prostituição. Eram inúmeras teses médicas, porque os médicos estavam higienizando as cidades, preocupados com doenças como sífilis e lepra. Esse era um modelo europeu que o Brasil copiou: os médicos eram encarregados pelo Estado de fazer relatórios sobre as condições das prisões, dos hospícios, das fábricas, para saber de onde vinha a epidemia na cidade. Então, eles faziam trabalhos de sociologia. Com essas informações, o Estado definia se a zona ficaria no bairro “x” ou “y” ou onde ficariam as escolas. Ou seja, onde você localizaria determinados espaços para não haver contágio físico e moral.
Em relação aos conceitos levantados por médicos da época sobre as mulheres, o que mais destacaria de sua pesquisa?
A história da medicina sobre o corpo das mulheres é muito engraçada. Lá atrás, não sei precisar se foi com Hipócrates e/ou Galeno, achava-se que o útero subia e viajava pelo corpo. Quando o útero subia, as mulheres tinham dor de cabeça, então, elas tinham que sentir um cheiro forte e bem ruim para o útero descer e vice-versa. Não havia dissecação de cadáveres porque era proibido. Existem vários livros a respeito e eu comprei o livro de Yvonne Knibiehler, que se chama La Femme et les Médecins (1983) – esse livro deveria ser traduzido. Ela traça uma história das concepções médicas no Egito e na Grécia antiga que nos parecem absurdas. Outro exemplo é Tertuliano (segundo Foucault, o inventor do pecado original), que disse que quem dá à luz são os homens porque eles fecundam e as mulheres são apenas um receptáculo. Olha o nível da competição para ser quem produz a vida. Também não havia mulheres médicas. Minha irmã, Elizabeth Juliska Rago, escreveu um livro – Outras Falas. Feminismo e Medicina na Bahia. 1836-1931 (Annablume, 2007) – sobre uma das primeiras médicas brasileiras, Francisca Praguer Fróes [leia quadro abaixo] (1872-1931). Essa mulher era filha de um croata que se casou com uma baiana. Francisca se tornou ginecologista, mas em geral as mulheres eram proibidas de fazer medicina porque era dito que elas tinham um cérebro inferior, que eram irracionais e não aguentariam temas como medicina ou engenharia. Quem fazia ginecologia eram os homens, que definiam do jeito deles como eram as mulheres. Era uma elite que ia estudar na França, inicialmente, depois nos Estados Unidos. Algo muito machista e assustador.
QUANDO VOCÊ PENSA NO NARCISISMO, NESSA QUESTÃO
DE AS PESSOAS ESTAREM SE POSTANDO DURANTE AS 24 HORAS
DO DIA, ISSO É ALGO NEOLIBERAL E ASSUSTADOR
Como foi essa primeira onda do feminismo entre 1920 e 1930?
A primeira onda ainda é mais atrás, no século 19. Para se ter uma ideia, a pesquisadora da Unicamp Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel estuda as compositoras da música popular brasileira. Se eu te perguntar o nome de algumas, você me dará cinco nomes. Por exemplo, Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran. Ela descobriu sete mil e 500 compositoras da música popular brasileira no século 19, até mesmo porque, na época, as mulheres estudavam piano. Inclusive essa mesma pesquisadora descobriu que várias músicas que nós sabemos cantar são composições de mulheres. No entanto, as mulheres entraram na história da música como intérpretes. Há, no século 19, muitas mulheres interessantes, como escritoras feministas, que o movimento feminista, a partir da década de 1970, começou a resgatar. Mas eu nunca tinha ouvido falar, por exemplo, de Maria Lacerda de Moura, que fui descobrir na década de 1980 e justamente aí foi lançado um livro escrito por Miriam Moreira Leite, coincidência também. Existe um feminismo desde o início do capitalismo como um movimento. Mary Wollstonecraft (1759-1797), que é a mãe do feminismo, casou-se em 1797 com o avô do anarquismo, o filósofo William Godwin. Essa história é de filme. Mary, no fim do século 18, se apaixona por Godwin, se separa e vai morar com ele, tem uma filha chamada Mary e morre no parto. Essa Mary, quando cresce, se apaixona por um homem chamado Shelley, e passa a se chamar Mary Shelley (a autora de Frankenstein, 1818). Talvez seja este o primeiro grande momento. Depois, na década de 1970 em diante, de lá para cá, o feminismo só cresce.
Então, qual seria a diferença do feminismo dos anos 1970 para o feminismo atual?
Acho que mudou muito. Agora, nós temos as jovens feministas que são filhas e netas. Nós não: nós fomos filhas das “rainhas do lar”. Agora também tem o feminismo negro e muito mais jovens. Acho que pluralizou. Naquela época, o feminismo era algo restrito: foi difícil entrar nas profissões, nas universidades, nos sindicatos. Os homens eram muito mais machistas em tudo. Hoje, as portas estão abertas, mulher pública não é sinônimo de prostituta, aliás, não precisam ser virgens para se casar, se não se casarem não são solteironas e sim mulheres independentes, e se se casarem, não precisam ter filhos. Tem uma feminista austríaca que admiro muito e é pouco conhecida, Rosa Mayreder (1858-1938), que disse assim, nos anos 1920, ao ver a 1ª Guerra Mundial: “O feminismo não veio para destruir os homens. O feminismo veio para socorrer os homens. Os heróis estão cansados”. Ela via os homens chegando da guerra e as mulheres ocupando as atividades que antes somente eles podiam exercer.
Desde a criação do mito de Adão e Eva, a mulher ocupa o papel de personagem responsável pela traição. De onde se origina essa postura diante da figura feminina?
Acho que essa misoginia começa antes, na Grécia antiga: o amor é amor entre os homens, mas não entre um homem e mulher porque homem e mulher não são iguais. É algo que sempre me pergunto: Por que esse ódio às mulheres? Qual é o problema? Não consigo entender direito, como também não entendo o ódio aos negros, aos indígenas. Há 40 anos, lembro de ter ficado muito feliz porque uma professora greco-francesa que veio dar um curso na Unicamp falou a palavra “filoginia” [apreço pelas mulheres] que seria o oposto de “misoginia”. Achei aquilo tão lindo, quer dizer que a gente não recebe só pedras: há momentos em que você recebe flores, que as pessoas estão te abraçando, estão te aplaudindo. Esses são instantes de filoginia. Mas é interessante como a palavra filoginia não foi incorporada ao nosso vocabulário, enquanto muitos sabem o que é misoginia. Comecei a pensar sobre isso. Sujeição todo mundo sabe, subjetivação, quando o Foucault falou, ninguém entendeu. E ele estava falando de liberdade.
A respeito do que Michel Foucault comenta em relação ao Estado disciplinado visando a um controle da sociedade, se levarmos essa questão para o universo online e virtual, podemos dizer que a voz de quem ocupa as redes sociais caminha por um caminho mais castrador que libertário?
Com certeza. Quando você pensa no narcisismo, nessa questão de as pessoas estarem se postando durante as 24 horas do dia, isso é algo neoliberal e assustador: eu, eu mais eu. Foucault trabalha com a ideia de que o neoliberalismo produz uma subjetividade que é “o empresário de si mesmo”: alguém que se acha; eu mais eu; alguém que acredita que tem que pensar em termos de custo e benefício, em termos de lucro, a fim de aumentar sua renda. Acho que isso tem a ver com a participação nas redes sociais. É algo esquisito e difícil de entender como as pessoas embarcam nessas práticas. Por que as pessoas se postam e postam qualquer coisa? Um tipo de exposição que não tem muito sentido a não ser vender a própria imagem. E isso não é libertário. Não tem nada a ver com “o cuidado de si” dos gregos, de que fala Foucault: de trabalhar-se, de construir-se a partir de uma subjetividade ética. Isso tem mais a ver com uma normatividade.
Foucault também fala sobre esse tipo de sistema disciplinar do poder que também afeta as relações. Poderia falar um pouco sobre esse conceito hoje, quando se fala da “mercantilização das relações”?
O que Foucault me trouxe e que gosto muito é a questão do empobrecimento relacional. Isso se dá quando as pessoas estão muito presas em identidades e as identidades comportam um número “x” de relações. Ou quando Foucault fala, por exemplo, de amizade, e o modelo de amizade é um modelo privado, de poucos amigos. Ele fala junto com Derrida e Deleuze que esse tipo de amizade não serve para construir uma outra esfera pública. Quer dizer, se você está pensando em solidariedade e a esfera pública é o lugar dos inimigos, é só no privado que você tem amigos e que você pode ser transparente. Então, penso que eles trazem essa questão do engessamento dos afetos, do empobrecimento relacional. Gosto desse termo. Agora, com a pandemia, nem se fala… A impossibilidade da relação presencial tem deixado as pessoas fora do eixo porque a sociabilidade é um aprendizado. Com esse isolamento, as pessoas estão perdendo um pouco as balizas, as referências. E isso favorece os afetos negativos: violência, ódio, ressentimento. Por exemplo, quando eu era pequena, minha família morava numa rua no bairro da Liberdade, em São Paulo, e eu brincava na rua com japoneses, portugueses, negros, menino, menina, gordo, magro. Eu ia dormir na casa da minha amiga japonesa e comia a comida japonesa que cozinhavam. Da década de 1970 pra frente é branco com branco, negro com negro, japonês com japonês. Isso produz um desconhecimento muito grande do outro porque você só pode imaginar o outro pela novela e isso produz ódio, culpa, ressentimento, uma vez que quando as pessoas se encontram é choque, não é aliança ou solidariedade. Acho que nosso mundo está precisando de solidariedade, de conexão, de fazer pontes. Precisamos potencializar os afetos positivos, isso está faltando em nosso mundo.
Recentemente, você fez parte do seminário Ascensão e Queda do Paraíso Tropical, que vai virar um livro. Sobre o que trata?
Nesse seminário, nós reunimos 30 professores da USP, Unicamp e PUC-SP. Pessoas que têm trabalhos sobre essa imagem do Brasil como “paraíso tropical”. Essa coisa da “mulata sensual”, do samba, do carnaval. Só que, diante das questões atuais, houve um desmoronamento dessa imagem. Então, decidimos falar da queda do “paraíso tropical”. O Sesc São Paulo nos apoiou e nós fizemos, em 2020, uma parte do seminário pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e outra parte pela Unicamp. Agora estamos divulgando as publicações dos textos e uma parte vai sair pela Editora Intermeios com o mesmo título do seminário. É muito triste este momento pelo qual estamos passando e como a juventude está perdendo a conexão com o passado – quem é Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros personagens históricos? Essa memória está se perdendo. Não se trata apenas de uma perda no sentido de ignorância, de ignorar, mas de perder esse link do afeto e da tradição.
PRECISAMOS POTENCIALIZAR OS AFETOS POSITIVOS,
ISSO ESTÁ FALTANDO EM NOSSO MUNDO
Nascida em Manhuaçu (MG) em 1887, Maria Lacerda de Moura era filha de uma família de classe média, cursou a Escola Normal em Barbacena, tornando-se professora. Considerada uma das primeiras feministas do Brasil – ela se definia como intelectual, pacifista e feminista –, escreveu sobre (embora com ressalvas) os movimentos em que militou: o feminismo, por não acolher mulheres negras e pobres; e o anarquismo, por ser tão radical. Em 1919, no Rio de Janeiro, fundou a Liga pela Emancipação Feminina junto da bióloga Bertha Lutz, organização que lutava principalmente pelo sufrágio feminino. A partir de 1921, quando se mudou para a cidade de São Paulo e viu de perto as condições de trabalho e de vida do proletariado, aproximou-se ainda mais do movimento anarquista. Dentro da imprensa operária, escreveu em publicações anarquistas importantes, como o jornal A Plebe e a revista Renascença, que ela criou em 1923, além de colaborar com outros jornais independentes e progressistas, como O Combate e O Ceará. Nesses textos e em livros que publicou, Maria Lacerda discorreu principalmente sobre pedagogia e educação, denunciou a opressão sofrida por mulheres e crianças, além dos preconceitos sofridos pelas mulheres. Entre 1928 e 1937, viveu em uma comunidade fundada por anarquistas de origem espanhola, francesa e italiana em Guararema (SP). A escritora morreu no Rio de Janeiro, em 1945.
Fontes: Revista Cult, Blog Mulheres na Filosofia da Unicamp e documentário Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma Rebelde
Primeira professora da Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), Francisca Barreto Praguer nasceu em 21 de outubro de 1872, na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Filha de Francisca Rosa Barreto Praguer e Henrique Praguer, imigrante croata de origem judia, Francisca venceu o preconceito da época, segundo o qual era vedado às mulheres o exercício da medicina, e se matriculou aos 16 anos (em 1888) na Fameb. Além de exercer a especialidade obstétrica, quando casada – daí a adoção do sobrenome “Fróes” – continuou a luta contra as limitações impostas às mulheres e, a partir de 1903, começou a defender, publicamente, a emancipação feminina. Naquele ano publicou, na Gazeta Médica da Bahia, um artigo exigindo que as mulheres tivessem o mesmo direito dos homens nas faculdades de Medicina. Sua luta em favor do feminismo repercutiu em todo o estado, bem como no restante do país. Já em 1917, Francisca também defendeu o divórcio em outro artigo polêmico para a época. A médica ainda se tornou patrona da cadeira 24 da Academia Brasileira de Médicos Escritores (Abrames), fundada em 26 de novembro de 1987. Curiosamente, o escritor Euclides da Cunha prestou-lhe uma homenagem no soneto Página Vazia, de 1897.
Fonte: http://www.fameb.ufba.br/filebrowser/download/81