Postado em 30/09/2021
O POETA E DIPLOMATA JOÃO CABRAL DE MELO NETO
GRAVOU EM PALAVRAS A ALMA DO SERTÃO
A concretude delineou seu ofício com as palavras. Avesso ao sentimentalismo na criação poética e antilírico por definição, João Cabral de Melo Neto era, no mundo, na vida, um homem sensível, de alma polivalente e profundamente interessado nas questões sociais brasileiras. O poeta pernambucano, considerado um dos nomes mais importantes da literatura em língua portuguesa do século 20, construiu com muito engenho uma obra marcada pelo rigor na composição, mas nem por isso afugentou as novas gerações. Pelo contrário: o autor, cujo centenário foi celebrado no ano passado, continua a atrair leitores, com a arquitetura cuidadosamente trabalhada de seus versos.
Foi nas cidades de Recife e Sevilha (no sul da Espanha), que ele enlaçou memórias e provou a plenitude existencial – nesta ordem. Nasceu em 1920, na capital entrecortada pelos rios Capibaribe e Beberibe, onde também passou a juventude. Parte da infância, João Cabral atravessou brincando nos engenhos da família, nos municípios de São Lourenço da Mata e Moreno, próximos à capital pernambucana. Os cenários de um passado colonial, que impulsionaram a economia açucareira nordestina por séculos, o acompanharam até o fim da vida.
Mesmo reservado, o pequeno João Cabral já dava mostras de uma personalidade singular. Em 1935, por exemplo, foi campeão juvenil de futebol pela equipe do Santa Cruz, embora fosse torcedor do Clube América, o alviverde recifense. Os gramados só perderam o promissor meio-campo para a diplomacia anos mais tarde, quando, já no Rio de Janeiro, ingressou no Ministério das Relações Exteriores. Serviu em Londres, Porto (Portugal), Genebra (Suíça) e Paris, entre outras terras.
SEVILHIZAR O MUNDO
Na monumental Sevilha, capital da região da Andaluzia, no sul da Espanha, João Cabral cumpriu funções diplomáticas rodeado por palácios de arquitetura moura, testemunhas dos séculos da presença árabe na Península Ibérica. Chegou no verão de 1958 e foi arrebatado. Era, até então, cônsul-geral do Brasil em Barcelona, na Catalunha (leste do país), e tinha publicado três de seus livros: Pedra do Sono (1942), Os Três Mal-Amados (1943) e O Engenheiro (1945).
Àquela altura, o poeta e diplomata – funções também desempenhadas por outros intelectuais latino-americanos, como o mexicano Octavio Paz (1914-1998), o chileno Pablo Neruda (1904-1973) e os brasileiros Raul Bopp (1898-1984) e Vinicius de Moraes (1913-1980) – já havia encontrado na Espanha o eixo de sua criação. “Outras geografias comparecem em sua obra, mas de modo bem menos intenso. Destacaria ainda os poemas equatorianos, dedicados não especificamente a Quito, mas à paisagem andina”, reflete o poeta, crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Antonio Carlos Secchin, estudioso da poesia cabralina há mais de quatro décadas.
AMIGOS DE UMA VIDA
Tempos antes, no período em que viveu em Barcelona, o jovem diplomata circulou entre o grupo da revista vanguardista Dau al Set, formada por artistas radicais e opositores do franquismo, regime ditatorial vigente na Espanha de 1939 a 1976. Entre eles, estavam nomes como o do pintor Antoni Tàpies (1923-2012) e o do poeta Joan Brossa (1919-1998). Essa atmosfera fez nascer uma duradoura amizade, iniciada em 1947, entre o pernambucano e o célebre artista catalão Joan Miró (1893-1983), pintor, gravador e escultor de linha surrealista.
Nos anos anteriores à sua morte, ocorrida em 1999, João Cabral saía pouco de seu apartamento no bairro do Flamengo, na zona sul do Rio. “Imortal” da ABL, também deixou de frequentar as reuniões da Academia. O exílio se deu por causa da cegueira, que o impedia de fazer o que mais lhe dava prazer – ler e escrever. O poeta se considerava uma pessoa cuja sensibilidade estava no campo visual, e por isso não conseguira se adaptar ao método de ditar os textos, como fez o colega argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que começou a perder a visão ainda na infância, por conta de um problema degenerativo herdado do pai.
O reflexo da relação do poeta com as artes plásticas, especialmente a pintura, permeou os rumos de suas composições e proporcionou um intercâmbio entre as duas formas de expressão. “Cabral considerava a pintura como a maior das artes. O caráter plástico de suas imagens é evidente. Ele escreveu, ainda, um excelente ensaio sobre Miró, em que, muitas vezes, parece estar falando de sua própria criação poética”, analisa Secchin. “Mas, pelo rigor da composição pictórica, é com [o modernista holandês] Piet Mondrian (1872-1944) que ele apresenta maior afinidade.”
Linhas concretas
ESCRITOR É EXALTADO COMO
UM DOS MAIORES DA POESIA BRASILEIRA
O poeta engenheiro fez parte, formalmente, da terceira geração modernista no Brasil, conhecida como Geração de 45. No entanto, como explica o crítico literário Antonio Carlos Secchin, semelhanças e assimetrias podem ser apontadas entre o pernambucano e seus pares. “Uma afinidade é a recusa ao que era considerado um vale-tudo facilitador do modernismo [o poema-piada, por exemplo]. Cronologicamente, Cabral pertence à Geração de 45. Mas, se todos se encontram no que rejeitam, os poetas se separam no que afirmam. O traço regionalista, a preocupação com a História, o apego ao concreto são marcas cabralinas pouco localizáveis em seus contemporâneos”, comenta.
Pertencem ao grupo, no campo da prosa, representantes de duas vertentes. A primeira, calcada na produção de viés psicológico, é exemplificada nas obras de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector (1920-1977). Como contraponto, há o trabalho de vasta reinvenção da linguagem e de ambientação sertaneja sintetizado na obra de João Guimarães Rosa (1908-1967).
Secchin ressalta ainda que, junto a Manuel Bandeira (1886-1968) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o autor de O Cão sem Plumas (1950) faz parte de um consenso literário nacional: “Cabral já é um clássico, integrando a ‘santíssima trindade’ da poesia brasileira do século 20. Nada podemos arriscar sobre a recepção do futuro, mas, hoje, Morte e Vida Severina é o livro de maior sucesso em toda a história de nossa literatura”.
Novos verbos
PESQUISADORA LOCALIZA 53 POEMAS INÉDITOS
E DISPERSOS EM MEIO AO ACERVO DO AUTOR
Nas pesquisas desenvolvidas para sua tese de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a professora e pesquisadora Edneia Rodrigues Ribeiro localizou materiais inéditos e dispersos no inventário do poeta João Cabral de Melo Neto. Os documentos – que se encontram no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMBL), da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro – constituem um “verdadeiro tesouro a ser escavado”, conforme explica a docente. “Concluímos que, além de uma conferência inédita [A Poesia Brasileira], havia artigos de jornal, programas de rádio, dezenas de poemas inéditos, alguns manuscritos de difícil entendimento e outros datiloscritos (textos redigidos com máquina de escrever) bem organizados, aguardando por leitores”, acrescenta.
Assim, esse material foi incluído na publicação Poesia Completa (2020), organizada por Antonio Carlos Secchin (leia boxe Lapidar a pedra). Ao todo, 53 poemas inéditos e outros dispersos vieram a público. “À medida que a pesquisa avançava, fui me surpreendendo com a quantidade de material [original]. Jamais poderia supor que um autor tão estudado ainda tivesse textos desconhecidos [do grande público]”, diz a pesquisadora.
Na condição de leitora apaixonada pelos versos de João Cabral, a descoberta dos poemas foi o que mais impactou Edneia. “Tanto pela quantidade quanto pelas temáticas abordadas. Em muitos deles, como em Poema Genealógico, Deus e a Natação, A Deus, Natural do Rio, São Paulo e Centro-Sul, e na série de quatro poemas intitulada Memórias de um Cônsul, por exemplo, surge uma faceta irônica e jocosa que o poeta sério e cerebral, muitas vezes, preferiu ofuscar”, pontua a professora.
Lapidar a pedra
OS TRABALHOS EMBLEMÁTICOS E AS HOMENAGENS
QUE DÃO NOVOS ARES AO LEGADO CABRALINO
A passagem dos 100 anos de João Cabral de Melo Neto, em 2020, reavivou os olhares para a obra do poeta pernambucano. Conheça seus principais livros e os lançamentos que celebram a data:
Joan Miró (1950)
A obra, ilustrada, é um ensaio-homenagem ao pintor e amigo espanhol. João Cabral tece observações sobre a obra de Miró, em uma época em que o artista catalão sentia na pele a perseguição da ditadura de Francisco Franco.
O Cão sem Plumas (1950)
O longo poema, publicado em Barcelona, leva para os versos a cidade natal do poeta, Recife. João Cabral afirmou ter composto o trabalho sob o impacto da notícia de que a expectativa de vida na capital pernambucana era de apenas 28 anos na época, abaixo até da Índia, onde tal índice era de 29 anos. Em 2017, a Companhia de Dança Deborah Colker criou o espetáculo Cão sem Plumas, baseado nesta obra.
Morte e Vida Severina (1955)
A obra mais social e popular do poeta. O auto de Natal regionalista retrata a condição de miséria e morte do retirante nordestino. Rendeu espetáculos para o teatro, como a premiada montagem de 1966, musicada pelo cantor e compositor Chico Buarque. Foi tema de um teleteatro musical realizado e exibido pela TV Globo em 1981 e dirigido por Walter Avancini. Também foi adaptado para o cinema por Zelito Viana em 1977 e ganhou uma animação realizada por Afonso Serpa em 2010.
Uma Faca Só Lâmina (1955)
Contém um único poema, que mantém igual estrutura formal. Publicado, originalmente, em Duas Águas, coletânea de obras do autor.
A Educação pela Pedra (1966)
Lançado em um período conturbado da história brasileira, com o endurecimento da ditadura militar. O poeta recebeu o Prêmio Jabuti pelo poema que dá título ao livro.
Museu de Tudo (1975)
O trabalho possui grande variedade temática e reúne 80 poemas aparentemente díspares, escritos em épocas distintas.
A Escola das Facas (1980)
Publicado enquanto João Cabral ocupava o posto de embaixador no Equador, abarca 44 poemas que trazem Pernambuco, o rio, o sertão, o povo e os canaviais como temáticas.
Auto do Frade (1984)
Na obra, o autor narra o momento em que Frei Caneca, símbolo máximo da Revolução Pernambucana (1817), é levado à execução, em 1825.
Agrestes (1985)
João Cabral escreve sobre Recife e Sevilha, além de relatar suas impressões como embaixador na África e na América Latina, entre outros temas.
Sevilha Andando (1990)
A obra, seu 19º livro de poesias, é uma ode ao encantamento com a região de Andaluzia, especialmente suas antigas ruas e a força da personalidade do povo sevilhano.
João Cabral de Ponta a Ponta (2020)
O crítico Antonio Carlos Secchin reúne um conjunto de textos dedicados ao poeta e produzidos ao longo de quatro décadas de pesquisas. A obra inclui, ainda, um estudo inédito.
João Cabral de Melo Neto – Poesia Completa (2020)
Para comemorar o centenário do pernambucano, a edição traz textos póstumos, dispersos e inéditos, organizados por Antonio Carlos Secchin e com colaboração de Edneia Ribeiro.
Fotobiografia João Cabral de Melo Neto (2021)
Reproduz, a partir de cerca de 500 imagens e manuscritos inéditos, a trajetória de João Cabral enquanto poeta, diplomata, pai, amigo e editor. Editado pela Versa Brasil, o livro foi organizado pelo poeta Eucanaã Ferraz e tem a coordenação geral da pesquisadora Valéria Lamego.
Fantasiar as palavras
A PAISAGEM ZERO, DISCO DE HELÔ RIBEIRO,
SE DEBRUÇA SOBRE A PRIMEIRA FASE DO ESCRITOR
Em seu novo álbum, A Paisagem Zero (Selo Sesc), a cantora, compositora e percussionista corporal paulistana Helô Ribeiro mergulhou nos poemas de Pedra do Sono (1942) e O Engenheiro (1945), de João Cabral. “Eles são fortemente visuais e passeiam por uma atmosfera onírica. Sentia que estava assistindo a um filme psicodélico ao lê-los, o que despertou em mim o desejo de musicá-los. O universo do sonho me fascina”, afirma a artista, integrante do grupo Barbatuques.
Ao propor esse olhar, Helô levou para o trabalho um clima predominantemente urbano e pop, criando uma mistura do nordeste cabralino com o cenário paulistano. Os dez poemas escolhidos e musicados por ela tiveram processos diferentes de composição. A música que dá título ao álbum, por exemplo, foi feita de uma só vez, com acordes que se repetem de forma circular e mântrica.
Sobre o processo criativo, a compositora detalha: “Assisti a uma entrevista em que ele diz que gostaria que seus leitores, ao lerem seus poemas, sentissem os solavancos de quem está andando de carro sobre uma rua muito esburacada. O curioso é que esses tais solavancos chegaram a mim como inspiração rítmica, e os versos já me sugeriam melodias e harmonias. Parecia que tudo já estava lá, nos poemas, subjacente às palavras, e que a mim cabia apenas desvelar um segredo ali escondido”.
A artista canta em todas as faixas, além de tocar flauta transversal, na companhia de Dustan Gallas (guitarras e teclados), Thomas Harres e Samuel Fraga (baterias), Cuca Ferreira, Amilcar Rodrigues e Douglas Antunes (metais), e Zé Nigro (baixo), que também assina a produção do disco.
Para ouvir A Paisagem Zero, de Helô Ribeiro, acesse: sesc.digital/colecao/apaisagemzero.