Postado em 01/07/2002
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Numa casa de três cômodos na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, moram Nair Prates dos Santos e nove de seus familiares. Há algum tempo, eles não conseguiam dormir à noite, devido ao barulho e ao medo de desabamento. O problema começou quando se instalaram sobre a laje da casa um bar de forró, uma creche e uma igreja evangélica. Esse amontoado de edificações, que desafia as leis da física, é corriqueiro nas favelas cariocas. Mas, no caso específico de Nair, os gritos das crianças da creche ou a música animada do forró não chegavam nem perto do incômodo e da preocupação causados pela igreja. Durante os cultos, os fiéis cantavam até uma hora da manhã e batiam os pés no chão, como sinal de devoção. Além de os gritos irritarem a família toda ela espírita , Nair tinha medo de que as pancadas comprometessem a estrutura da construção.
Assustada, ela procurou o pastor para uma conversa, mas, como seu pedido foi em vão, decidiu recorrer à Justiça. A juíza encarregada do processo mandou a Secretaria de Meio Ambiente medir o volume do som, mas os funcionários foram até lá num dia em que não havia culto. Sem o registro do barulho, não foi possível dar continuidade ao caso. Nair foi então ao Balcão de Direitos, uma espécie de escritório de advocacia que funciona dentro das favelas, com o objetivo de resolver conflitos locais, fornecer documentação e informar a população sobre direitos e deveres básicos, procurando, assim, diminuir a violência.
Nair explicou a situação aos advogados e estagiários, que marcaram uma audiência com ela e o pastor. Depois de muita conversa, não sem bate-bocas, ficou acertado que a igreja baixaria o volume do som durante os cultos e afixaria cartazes na parede com avisos de que era proibido bater os pés no chão. Um dos estagiários, crente, explicou ao pastor como fazer cultos sem usar o microfone. "Os advogados deixaram claro que, se eu desse novamente entrada num processo, a igreja perderia. Então eles perceberam o que era a Justiça e preferiram entrar em acordo", afirma Nair. Esse caso é um exemplo dos mais de 43 mil atendimentos efetuados pelo Balcão de Direitos em seus cinco anos de existência. O trabalho da instituição, feito gratuitamente, é simples e eficaz. Consegue soluções rápidas para questões que levariam anos na Justiça comum. Em vez de longos processos, utiliza o bom senso e o diálogo entre as partes envolvidas, no que é chamado de mediação de conflitos. Os resultados têm sido tão promissores que, além de ter obtido o patrocínio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, da Fundação Ford, da Embaixada Britânica e da União Européia, o projeto do Balcão de Direitos foi adotado pelo Ministério da Justiça para ser implantado em todo o país.
Embora eficaz, a estrutura da instituição ainda é pequena para atender as mais de 700 favelas do Rio de Janeiro. Mesmo assim, faz o que pode nas comunidades em que atua Morro da Babilônia, Chapéu Mangueira, Pavão e Pavãozinho, Complexo da Maré, Cantagalo, Rocinha, Santa Marta e Vila Pereira da Silva.
A proposta principal do Balcão é criar uma ponte entre a população, que não entende a linguagem jurídica, e a própria Justiça, que por sua vez ignora como é a vida nas favelas. Por isso, o trabalho de orientação não se limita a explicar às pessoas como a lei funciona. Busca-se também levar em conta a realidade local, atentando para o fato de que ali existem regras próprias e que a mediação e a resolução de conflitos precisam, necessariamente, passar por essa compreensão.
Confiança da comunidade
A idéia do Balcão nasceu na organização não-governamental Viva Rio, criada após o seqüestro do filho do presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), Eduardo Eugênio Gouveia Vieira. A entidade foi fundada com o objetivo de diminuir os índices de violência, mas, como surgiu somente depois que foram atingidos membros das classes mais favorecidas, era chamada nos morros cariocas de "Viva Rico". Para acabar com essa imagem, foi desenvolvido o projeto do Balcão, dirigido especificamente à população das favelas e que incluía a participação de representantes dessas comunidades.
Coincidentemente, quando trabalhava no esboço do Balcão, o Viva Rio recebeu do Ministério da Justiça um pedido para que elaborasse uma proposta semelhante. Foi assim que, em 1996, um grupo de 25 lideranças comunitárias uniu-se à ONG para estruturar um projeto que atendesse a seus anseios. "Imaginamos um programa de assistência jurídica e de documentação", lembra Pedro Strozenberg, coordenador-geral da área de segurança pública do Viva Rio e fundador do Balcão de Direitos. A entidade percebeu que as lideranças comunitárias acreditavam que um dos caminhos de combate à violência seriam os conhecimentos de direito. "Foi interessante descobrir isso, porque a favela tinha suas próprias regras, e não sabíamos que seus moradores davam tanto valor à Justiça comum", conta Strozenberg. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) sobre a atuação do Balcão confirma: a população dos locais atendidos pelo projeto tem como principal dificuldade o acesso ao Poder Judiciário. Depois, vêm o fato de que as pessoas não entendem a linguagem jurídica e problemas com o narcotráfico e a polícia.
Em 1996 a distância entre morro e asfalto era ainda maior do que hoje. Um oficial de Justiça tinha medo de entrar numa favela para cumprir um mandado judicial, o que fazia com que os moradores desses locais nem mesmo tomassem conhecimento de que deveriam comparecer a uma audiência. No entanto, é exigido que todos os brasileiros saibam de seus direitos e deveres. "Segundo nosso ordenamento jurídico, ninguém pode alegar desconhecimento da lei como defesa. É por isso que o Balcão se preocupa em dar acesso à Justiça formal e também em democratizar a informação", explica Cíntia Muniz, advogada e uma das coordenadoras do Balcão. Atualmente ela faz mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), e sua tese se baseia no projeto de que participa. É ela quem organiza os cursos de formação de agentes de direito, destinados a pessoas das comunidades.
Esses cursos, que já formaram 52 agentes, levam noções básicas de direito aos moradores das favelas, que mais tarde repassam o que aprenderam para vizinhos e amigos. Nas aulas, Cíntia se surpreende com o desconhecimento dos participantes, e estes se impressionam com as valiosas informações que recebem. Ficam admirados ao descobrir, por exemplo, que existe um Código de Defesa do Consumidor, e aprendem que determinadas atitudes de um policial podem ser caracterizadas como abuso de autoridade. Um bom aluno, que concluiu o curso e já utiliza seus conhecimentos na prática, é André Luís Gomes da Conceição, de 20 anos, morador do Morro da Formiga, na zona norte da cidade. Negro, franzino e pobre, André é o tipo de jovem que é abordado com violência pela polícia nas constantes batidas no morro. Ele está entre as 377 mil pessoas, entre 15 e 24 anos, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou, em 1996, como moradores das favelas do Rio de Janeiro, a maioria vivendo em constante situação de risco. "Nessas comunidades, o número de jovens que são ameaçados e não conseguem proteção, a não ser de amigos, é imenso", afirma Rubem Cesar Fernandes, antropólogo e coordenador-geral do Viva Rio. Depois do curso de agente de direito, André aprendeu a se defender. "Antes sofria muita discriminação e baixava a cabeça. Hoje uso o conhecimento como forma de segurança", diz ele, orgulhoso. Uma semana antes desta entrevista, André saiu de casa de shorts e sem camisa para cortar o cabelo. Foi abordado pela polícia, que o mandou correr. André disse que eles não tinham esse direito, como havia aprendido nas aulas. Em outra ocasião, foi ajudar a mãe nas compras no supermercado e percebeu que estava sendo vigiado pelos seguranças locais. "Eles disseram que já conheciam o pessoal do meu grupo e que sabiam por que eu estava ali. Respondi que não era de grupo nenhum e que tinha o direito de fazer minhas compras. E que, se eles não provassem que eu estava roubando, poderia processá-los", conta. Esse tipo de situação repercute nas comunidades de forma extremamente positiva, fazendo com que o abuso de autoridade e outras irregularidades, praticadas principalmente por policiais, se tornem cada vez menos freqüentes.
Mas até que pessoas como André pudessem concluir o curso de agente de direito o projeto enfrentou muitos problemas. "Em 1996, grande parte do trabalho social nos morros era feito ou pela igreja ou por partidos políticos. Nossa maior dificuldade foi montar uma equipe que levasse a esses locais uma política pública que não fosse religiosa, eleitoreira ou assistencialista", lembra Strozenberg.
Pólo de atração
Há muito tempo Pedro Strozenberg sabe como é a vida nos morros da cidade. Morador do bairro da Glória, na zona sul do Rio de Janeiro, chegou a assustar a própria família quando, aos 17 anos, presidente do grêmio do colégio em que estudava, decidiu visitar favelas. Foi numa dessas ocasiões que conheceu Aílton da Silva Bichara, então com 25 anos, líder comunitário do Morro da Babilônia, que lhe mostrou muito da realidade dos favelados. A amizade dura até hoje, e Aílton transformou-se no subcoordenador-geral do Balcão de Direitos, onde sua opinião vale tanto quanto a de Strozenberg. Gente como Aílton, importante na comunidade em que vivia, que conhecia a realidade local e estava disposta a modificá-la, foi um trunfo para o projeto. "Esse pessoal teve uma participação fundamental, pois, além de conhecer as pessoas, não mantinha nenhuma ligação com o tráfico ou com qualquer outra forma de violência nas favelas. Foi através deles e da credibilidade de que dispunham que os moradores locais passaram a confiar no Balcão de Direitos", explica Strozenberg. Mesmo assim, os primeiros anos foram difíceis. Como convencer advogados e estudantes de direito a trabalhar nas favelas, locais tidos como perigosos? A estratégia foi recorrer aos contatos pessoais. Hoje, porém, o quadro mudou. Estudantes de direito procuram o Balcão para trabalhar como estagiários, recebendo R$ 250 por mês, ou como voluntários, ganhando o dinheiro da passagem.
Foi o que aconteceu com o aluno de direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Rullian Emmerick, de 28 anos, que conheceu o projeto através de um trabalho para a faculdade. Ele escreveu uma carta a Strozenberg falando de seu interesse em participar do Balcão. Começou como voluntário e hoje é estagiário no núcleo da Rocinha, que atende mais de 56 mil habitantes locais, segundo os dados do Censo 2000.
Rullian tem casos interessantes para contar, como o de uma velhinha que, para ter direito a pensão, precisava provar que havia sido companheira de um funcionário público já falecido. "A única prova da união era um seguro de saúde que o companheiro havia feito em nome dela. No fim foi tudo muito simples, bastou um telefonema para que a velhinha recebesse a pensão", diz ele. Há, também, questões que não podem ser resolvidas com mediação. Rullian lembra um caso de direito de família. O pai havia se separado da mulher e deixara com ela uma casa, além de uma quitinete para cada uma das três filhas. O registro e a divisão de bens haviam sido feitos na Associação de Moradores. "Uma das filhas procurou o Balcão, dizendo que a mãe as estava impedindo de tomar posse dos bens. Uma reunião de conciliação foi marcada, e então descobriu-se que as três filhas eram viciadas e estavam envolvidas com prostituição, e que por isso a mãe queria impedir que tomassem posse dos bens." Sem possibilidade de conciliação, o caso foi encaminhado para a Defensoria Pública.
O trabalho é feito de forma integrada com outros setores da sociedade, governamentais ou não. E essa rede de parcerias, principalmente com agências do Estado, é importante para facilitar a solução de conflitos. Quando não pode resolver um caso, o Balcão oferece orientação e indica a instituição que deve ser procurada.
Por decisão dos idealizadores, a atuação do Balcão de Direitos não inclui questões criminais. Limita-se a emissão de registros e carteiras de identidade e de trabalho, problemas familiares, trabalhistas, de direito cível e do consumidor. Eles também garantem que não existe a menor relação, comprometimento ou diálogo entre pessoas ligadas ao tráfico de drogas e as da instituição. "Se mantivéssemos esse tipo de contato o projeto se inviabilizaria rapidamente. Teríamos de escolher um lado: ou os traficantes ou a polícia", afirma Rubem Cesar Fernandes. Aílton Bichara concorda, mas não descarta a possibilidade de, a médio prazo, o Balcão passar a resolver problemas criminais.
Predominância feminina
Depois de cinco anos de projeto, impressiona o fato de que são principalmente as mulheres que procuram a instituição. Em sua grande maioria, elas têm entre 25 e 35 anos, primeiro grau incompleto, renda entre dois e quatro salários mínimos e possuem casa própria, embora não seja regulamentada pela prefeitura. Também no Balcão as mulheres são em maior número: compõem cerca de 75% da equipe. "Elas têm mais disponibilidade e sensibilidade", afirma Strozenberg.
Das três equipes que formam a base do projeto Informação e Pesquisa, Formação e Atendimento , duas são coordenadas por mulheres. Laura Olivieri acompanha o andamento do Balcão através de pesquisas constantes e responde pela comunicação interna. Cíntia Muniz é responsável pela formação dos agentes de direito, enquanto Rodolfo de Noronha coordena a equipe de atendimento, acompanhando o trabalho dos advogados e estagiários que lidam diariamente com a população. Todos são recém-formados.
A coordenação geral do projeto está nas mãos da advogada Adriana Aloé Botafogo, de 26 anos. Segundo ela, a instituição está mudando a roupagem do direito. Enquanto o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e o Ministério Público atuam de forma apenas técnica, no Balcão os profissionais agem também como formadores de opinião e de cidadania.
E essa experiência já chegou também às faculdades, através do projeto Balcão Universidade, cujo objetivo é levar as atividades do Balcão de Direitos para reflexão acadêmica. Com essa finalidade, foi firmado inicialmente um convênio com a Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio). Também na rede pública de ensino a cultura de paz da instituição está presente, por meio da Escola de Mediadores, que visa formar jovens na prática de mediar conflitos.
Idéia em expansão
Pedro Strozenberg, que vem atuando como consultor da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, para a instalação do projeto em outros estados brasileiros, diz que cada local tem suas especificidades e que a instituição deve se ajustar a elas. No Pontal do Paranapanema (SP), por exemplo, as questões relativas à posse de terra são as mais recorrentes. Já no Acre, existe um programa chamado Cidadão, que reproduz o que o Balcão fazia no Rio de Janeiro no início de suas atividades: fornecer às pessoas os documentos básicos. Até 1996, cerca de 60% da população daquele estado não tinha certidão de nascimento, ou seja, não existia aos olhos do governo.
Paulo Sérgio Pinheiro, titular da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, um dos patrocinadores do projeto, considera o Balcão uma das grandes realizações do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos. "A instituição promove a cidadania daqueles que antes viviam sem o registro de nascimento. Hoje a certidão é gratuita e pode ser considerada um título de cidadania. Através da documentação, essas pessoas passam a ter direito a uma série de benefícios sociais do governo, como por exemplo a bolsa-escola", afirma ele.
Prova disso é o caso de Ana Cristina Ribas. Aos 40 anos, com nove filhos, sete netos, e grávida de gêmeos, apenas neste ano ela conseguiu, através do Balcão de Direitos, a certidão de nascimento de cinco de seus filhos. "Meu marido não queria registrar porque diz que não é o pai das crianças", conta ela.
O registro, porém, era necessário para que os filhos fossem matriculados na escola e a família pudesse ter direito ao cheque-cidadão, um programa do governo do estado que fornece cestas básicas. Quem convenceu o marido, o pedreiro Augusto da Silva, a mudar de atitude foi o coordenador do Balcão no núcleo da Rocinha, Gustavo Vasconcelos de Sá.
A exemplo do que acontece nos morros do Rio de Janeiro, onde o Balcão de Direitos trabalha para levar noções de cidadania às comunidades carentes, São Paulo e Porto Alegre iniciaram programas similares, que depois foram implantados em outras localidades do país. São os cursos de promotoras legais populares, nos quais cidadãs comuns têm aulas em que aprendem a promover e defender em suas comunidades os direitos garantidos em lei, especialmente os das mulheres.
Na capital paulista, o curso, criado em 1994, se repete anualmente e já formou mais de 700 promotoras, por iniciativa da organização não-governamental União de Mulheres de São Paulo. Em outros estados, há mais 1,3 mil fruto de um projeto coordenado pela Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre, com apoio do Ministério da Justiça.
Therezinha de Jesus Conceição luta para ser uma delas. Todos os sábados, acorda cedo, pega ônibus e metrô para chegar às 9 horas à Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, no centro da capital paulista. Em um dos salões do suntuoso prédio cor-de-rosa, reúne-se com mais cem mulheres vindas de diferentes pontos da cidade. Com idades e histórias variadas, elas dividem o desejo de conhecer melhor seus direitos, entender o funcionamento das leis e da Justiça e levar essas informações para seus bairros. São todas alunas do 8º Curso de Promotoras Legais Populares.
Com 73 anos de idade, nove filhos, 21 netos, dez bisnetos e mais de 25 anos de atuação comunitária, Therezinha não perde uma aula. "Estou aprendendo muita coisa que não sabia. E é um direito nosso ter esse conhecimento." Apenas com a quarta série primária completa, ela participou de cada uma das conquistas do Movimento de Defesa dos Favelados em seu bairro e agora espera aperfeiçoar ainda mais esse trabalho.
Sua amiga Durvalina Santos também tem uma bagagem valiosa: 62 anos de idade, cinco filhos, 11 netos e 19 anos de presidência da Associação das Mães Cidade Alta Santa Luzia, na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo. "Acho que sempre fui promotora de direitos, mas decidi fazer o curso para saber mais sobre as leis e poder agir melhor", diz.
Ambas são ouvidas com atenção pelas colegas, que reconhecem ter um longo caminho pela frente. É o caso de Maria Regina do Nascimento Severino. Em 1999, ela começou no quintal de sua casa um trabalho com senhoras e adolescentes da vizinhança. No início distribuía leite, depois conseguiu organizar um cursinho preparatório para vestibular e já sonha com uma oficina de costura e aulas de alfabetização de adultos. "Não queremos apenas dar comida. As pessoas precisam ter acesso às informações que afetam sua vida. Por isso, quero ser promotora: quando a gente conhece, não se intimida", diz ela, que tem 44 anos e seis filhos.
Totalmente gratuito, o curso dura oito meses. No programa há disciplinas que tratam de temas jurídicos básicos, como Introdução ao Estudo do Direito, Organização do Estado, Direito Constitucional, Direito Previdenciário, Direito à Saúde, Direito de Família, Estatuto da Criança e do Adolescente e Direito Ambiental. Há também matérias em que se discutem assuntos atuais, como Globalização e Direitos, Orçamento Participativo e Violência de Gênero. Para a maioria da turma, tudo é novidade. Afinal, embora sejam de conhecimento obrigatório e necessário na conquista da cidadania de todos, esses ensinamentos continuavam restritos às faculdades de direito. Para romper esse isolamento, advogados, juízes, promotores, delegados e ativistas de direitos humanos são convidados a ensinar como voluntários no curso e abrir suas instituições às alunas para visitas-estágios.
O direito de cobrar
O projeto do curso de formação de promotoras legais populares nasceu de uma iniciativa do próprio movimento de mulheres. No início dos anos 90, algumas feministas brasileiras conheceram a proposta, já desenvolvida em outros países latino-americanos, como Chile, Peru e Costa Rica. "Percebemos que era um caminho para fazer valer os direitos que havíamos conquistado na Constituição Federal de 1988", conta Maria Amélia de Almeida Teles, presidente da União de Mulheres de São Paulo. Desrespeitadas em sua cidadania, muitas brasileiras nem sabem que seus direitos estão sendo violados e que há possibilidade de defendê-los. Observou-se que as promotoras populares poderiam ajudar, em especial, a enfrentar a rotina de violência.
Ao ser ameaçadas pelo marido ou ter um filho preso, muitas mulheres dependem do Poder Público, mas em geral não podem contar com ele, porque ou está ausente ou vira as costas para a população especialmente quando se trata de pessoas de baixa renda e pouca escolaridade. São raras as que conseguem entender o funcionamento das delegacias, juizados, defensorias e procuradorias. Portanto, o papel das promotoras seria justamente o de decifrar o mundo do direito e abrir as portas da Justiça para a comunidade. "Elas aprendem que têm poder e podem exercê-lo", resume Maria Amélia.
Sua maior satisfação é ver as mulheres se transformando. Muitas vivenciavam a violência dentro de casa e finalmente, através das informações do curso, conseguiram reverter a realidade. Descobriram que têm voz, voltaram a estudar, lançaram-se em novos projetos. No bairro de São Miguel Paulista, por exemplo, um grupo de promotoras criou o Centro Maria Miguel para atendimento de mulheres em situação de violência, ligado à Associação de Mulheres da Zona Leste. Entre elas, Emerenciana de Jesus Custódio.
Antes de fazer o curso, Emerenciana nunca tinha lido a Constituição Federal. Nascida no interior de Minas Gerais, conheceu o trabalho na lavoura ainda menina, e parou de estudar na terceira série primária. Com seus oito irmãos, foi criada pela mãe e, já casada, mudou-se para São Paulo após o nascimento do quarto filho. Na capital, pagou aluguel durante 12 anos, até ser despejada. Então se mudou para uma casinha nos fundos da igreja que freqüentava. Por pura necessidade, engajou-se no movimento de luta pelo direito à moradia e conquistou a casa onde vive atualmente.
Apesar do longo caminho de atuação comunitária, Emerenciana não hesitou em aceitar o convite para fazer o curso de promotoras legais populares, na capital paulista. Hoje, aos 61 anos, ela se orgulha dos conhecimentos que adquiriu: "É incrível, mas muitas vezes não sabemos que não casamos para ser saco de pancada nem precisamos ceder aos nossos maridos quando estão bêbados". Foram descobertas tão importantes que ela decidiu participar da fundação do Centro Maria Miguel.
"Depois de lutar por água, creche, escola, posto de saúde, escola... precisamos enfrentar a violência", completa sua amiga Maria Madalena dos Santos, de 72 anos, também promotora legal popular. Nascida e casada em Alagoas, migrou para São Paulo em busca de uma vida melhor. Já em 1962 mudou-se para a zona leste, onde vive até hoje, no bairro de Itaim Paulista. Como Emerenciana, ela participou da organização das mulheres no bairro e, hoje, dedica-se a conscientizar outras pessoas sobre seus direitos. "Para muitas vizinhas, a delegacia ou o juiz são bichos-de-sete-cabeças. Elas têm seus direitos desrespeitados pelo marido, que, por exemplo, não paga pensão ou estupra a filha, e não sabem o que fazer." É nessa hora que as promotoras fazem muita diferença.
Também já estão sendo colhidos frutos na Grande Porto Alegre, onde o trabalho é coordenado pela Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Ao lado da União de Mulheres de São Paulo, a Themis foi pioneira na formação de promotoras legais populares, e multiplicou a experiência em muitos estados do país.
Novos valores
Não se contentando com sua capacitação, as promotoras gaúchas impulsionaram a criação de seis Serviços de Informação à Mulher nas próprias comunidades. Seja numa escola, posto policial ou centro comunitário, elas realizam plantões semanais, acolhendo e encaminhando denúncias de violação dos direitos das mulheres.
Os profissionais de direito envolvidos no curso também não passam imunes. "Se, por um lado, queríamos despertar as mulheres como sujeitos da cidadania, por outro, precisávamos enfrentar os preconceitos arraigados nos profissionais atuantes na área", diz a advogada Virgínia Feix, coordenadora da Themis. Ela adverte: grande parte dos policiais, advogados, juízes, delegados e promotores atende as mulheres reproduzindo preconceitos históricos. Comumente, ao denunciar seus maridos agressores, elas ouvem comentários do tipo: "Não se preocupe. É só a senhora voltar para casa e caprichar no jantar que tudo melhora". Ou ainda se deparam, em caso de violência sexual, com a típica pergunta: "Mas a senhora tem certeza de que não provocou?"
Por essa razão, o projeto das promotoras também tem como objetivo interferir na formação dos profissionais. Ao serem convidados para dar aulas às mulheres, eles entram em contato com outro ponto de vista e repensam seus valores e preconceitos. "É preciso sensibilizá-los para enfrentar o mito da neutralidade e igualdade perante a lei", completa Virgínia, que já tem motivos para comemorar. Além do crescente interesse individual dos profissionais, já foram firmadas parcerias institucionais com a Escola do Ministério Público Federal, do Ministério Público Estadual e da Magistratura Federal.
O sucesso da experiência animou o Ministério da Justiça a expandir a idéia pelo país por meio do projeto Agentes Multiplicadores de Cidadania, cuja primeira fase aconteceu em 1998. No total, dirigentes de 22 entidades, em sete estados diferentes, foram capacitados a realizar projetos piloto em sua área de atuação. Além das organizações de mulheres, foram envolvidas entidades que defendem os direitos das crianças e adolescentes, homossexuais e negros. No ano seguinte, foram formados mais de 700 promotores e promotoras e sensibilizados mais de 150 profissionais da área do direito. Já em 2000, a multiplicação aconteceu em 12 municípios do Rio Grande do Sul, atingindo diretamente cerca de 300 mulheres e 80 profissionais.
Justiça na comunidade
Este ano, o ministério decidiu lançar uma nova fase do projeto. Desde maio, está sendo avaliado o impacto do trabalho realizado nos anos anteriores. A idéia é saber como andam os cursos e quais os resultados alcançados. Também serão capacitadas novas entidades em estados onde o projeto ainda não existe. Deverá ser articulada uma rede nacional de promotoras legais populares, sensibilizando os Conselhos de Direitos da Mulher a implementar projetos de formação de novas promotoras. No decorrer de um ano, estão previstos investimentos de R$ 245 mil através da Secretaria Nacional dos Direitos da Mulher e da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, ambos ligados ao Ministério da Justiça.
"O principal objetivo", explica a pedagoga Carmelina dos Santos Rosa, chefe de gabinete do secretário de Direitos Humanos, "é criar as bases para a construção de uma política pública de ampliação do acesso das mulheres à Justiça." Isso não significa apenas disseminar a experiência, mas fazer com que sua ação seja reconhecida pelos diferentes órgãos do governo. É inegável o sonho de transformar as promotoras legais populares em verdadeiras agentes comunitárias de justiça, a exemplo dos bem-sucedidos agentes comunitários de saúde.
Há mais de dez anos, o Ministério da Saúde conta com os agentes comunitários de saúde como instrumento de prevenção e promoção de saúde básica nas comunidades pobres. Eles recebem por seu trabalho e atuam em parceria com médicos, enfermeiros e outros profissionais da área. "Da mesma forma, os agentes comunitários de justiça poderiam identificar violações de direitos humanos, disseminar conhecimento, além de prevenir conflitos e acompanhar a eficácia das decisões judiciais", explica Virgínia, da Themis. Num primeiro momento, sua ação seria enfocada na promoção e defesa dos direitos das mulheres. A realidade pede esse sonho.