Postado em 03/09/2021
Depoimento em primeira pessoa do período da peste. Sem identificação de autoria. Escrito em editor de texto virtual; registro descoberto após descriptografia do departamento de América Antiga. Língua: portuguesa do Brasil. Datado em calendário gregoriano (ciclo do Sol). Sem tradução conhecida.
Até agora.
4/1/21 - São Paulo
O único tempo que conhecemos é a viagem no tempo.
A única máquina do tempo é o cérebro.
(de um poeta e filósofo desconhecido que ainda não veio,
mas gostaria que viesse)
Descobri que vou morrer amanhã e que não vou morrer sozinho.
E inaugurei um novo sentimento, acho que é o ódio.
Senti, sinto ódio. Atravessei a vida como que bêbado de tanta calma e deixa pra lá. Entre ceder à taquicardia, à repulsa furiosa (ou até mesmo à ideia de lutar por uma certa justiça) e viver com a tranquilidade de quem prefere não (como Bartleby), prefiro ir deixando sempre pra lá.
A raiva não é estratégica. Eu acho, achei. Quando criança eu nunca consegui o que quer que fosse, me esgoelando. Mas se eu era amável, paciente, aí sim, a vida ia boa e eu não precisava correr, o que era meu vinha às minhas mãos.
Mesmo quando papai morreu, não senti raiva. Ou, simplesmente, preferi não sentir. Sentia falta dele, lógico. Ele se foi de repente sem despedidas, eu quis por muito tempo sentir raiva, mas preferia não. E um dia tive um sonho em que eu e meu pai explorávamos juntos ruínas antigas. Eu quis tanto ser arqueólogo. Queria até hoje. Mas sempre fiquei assim, querendo; passei a vida com a vontade, que não passou, mas só isso. A vida foi se impondo e foi virando outra coisa. Eu até esqueci que isso, tudo isso, tudo aquilo lá, tudo isso agora, é tudo vida.
Mas no sonho eu e papai estávamos vestidos como arqueólogos dos filmes e videogames, prontos para juntos decifrar o enigma de todas as línguas, desenterrar relíquias e artefatos mágicos de lugares que visitamos em livros. Atar o hoje e o ontem como se um quebra-cabeça de cinco mil peças que pai e filho nunca vão concluir (mas sem nunca abandonar o intuito). E dividir a emoção de descortinar o passado e descobrir juntos quantos passados existiram. Chegamos, eu e ele, à Pirâmide do Sol, a mais antiga de todo o México, construída cem anos antes de Jesus. Estanquei na trilha e sorri ao meu pai: “Que bom que você voltou”. Havia anos ele estava morto. E eu me lembro tão claramente de ser tomado pelo alívio de corpo todo; meu pai havia, enfim, retornado. Foi-se e voltou. Que bom.
Foi então que descobri que sonho ou realidade, para mim tanto faz, porque aquele sonho foi tão real quanto a raiva que eu deixei de sentir por sua morte.
Mas ao descobrir a minha própria morte amanhã: raiva. Uma raiva que não sei dizer. Eu descobri pelo acaso dos meus cálculos. Minha máquina do tempo me fez saber desse futuro em breve, no qual eu não existo; sei que não. Eu vou morrer amanhã e meu caso não é único, outros vão morrer comigo. E pela primeira vez que não consigo, não quero, deixar minha raiva para lá, de nada adianta ou adiantaria. O que só intensifica o sentimento.
Posso gritar, urrar, quebrar móveis, agredir pessoas, chorar como nunca antes: nada importa. Vou morrer. Daí eu escrevo, porque escrever é uma forma boa de controlar o tempo. De fazer o tempo durar mais, de encontrar tempo e espaço para aquilo que não cabe em nenhum lugar nem quando.
Há culpados pela minha morte amanhã e pelos que vão morrer comigo. O presidente é um deles, mas há outros, todos os Brás Cubas.
Brás Cubas foi, antes de tudo, um mentiroso. Brás Cubas se consola de não ter tido filhos, porque não deixou a ninguém “o legado de nossa miséria”. O desfecho é muitas vezes repetido como afirmação da condição humana miserável. Ser humano é uma coisa terrível. Existir é doer. Cubas o estaria constatando apenas, e a literatura se encerra com o assombro da verdade. Ah. Brejeiro.
Mas a Miséria é o Império de Cubas: Cubas tem filhos todos os dias desde que morreu. Os sucessores do reino da Miséria, do qual Cubas foi o governador, coronel, deputado, general, presidente, senhor. Criança, ele racha a cabeça da pessoa escravizada que não lhe deixou lamber o doce. Faz de gente montaria. Adulto, nada o interessa, senão o poder. E é tanta a sua pressuposição de que o poder lhe pertence, que esquece de se dar ao trabalho de conquistá-lo. Diz que morreu sem filhos. É mentira. Deixou vários que se reproduzem por mitose macabra de centelhas da história.
Eu talvez seja responsável também pela minha morte amanhã, não sei; mas sei que de nada presta culpar quem vai morrer. Taí outro sentimento que penso ser estéril: culpa. Prefiro sentir responsabilidade. Culpa é ego ferido, é coisa de quem quer ser perdoado e esquecer. Responsabilidade é de outra ordem, é aceitar e arcar com as consequências de nós mesmos, mesmo aquelas que foram imprevistas.
Eu não quero morrer. E me importa quem é responsável pela minha morte, e sinto raiva. Eu, eu queria continuar. Queria saber como vai estar. O mundo no ano de 2346, o que será?
Eu queria estar lá no dia quando o primeiro extraterrestre disser “olá”. Queria ver quando, quantas e quais fronteiras vão se transformar em nossos mapas. Queria ver as cidades suspensas no céu, navios nas nuvens, pessoas nas naves. A criação de robôs que são gente. Queria saber o que vem depois do capitalismo tardio, da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos; da greve da Greta Thunberg. Qual é o destino de Myanmar? A Síria existirá ainda? Queria ler o próximo livro do Haruki Murakami, e mergulhar com os tubarões centenários da Oceânia. E queria visitar Machu Picchu, onde o tempo para pra sempre. Eu queria ver o Brasil inteiro, finalmente, inteiro de si mesmo e não das lorotas que se diz. Saber como vai ser, testemunhar esse tempo todo. Eu queria. Queria ir até o último segundo do mundo, do universo e tudo mais, e viver esse segundo como se uma semana. Queria saber como tudo termina e como tudo começa.
Não consigo chegar lá, nada sei, porque vou morrer amanhã. Me restou o passado, como restaram os sonhos com meu pai.
Minha raiva imagina como seria bom se caísse um raio no presidente, filmado para todo mundo ver. Há duzentos mil mortos no Brasil, incluindo eu, e ele passeia de jet-ski na praia. E, então, um raio. Iansã, deus, ou o acaso. Um raio cai e condena. “Uma mensagem divina, só pode ser”, a gente pensaria e seguiria em frente pra outro tempo, talvez um tempo em que eu não morro.
Minha raiva imagina: e se alguém, que não sou eu, se desse a tacar pedras no presidente. Pedras que estouram seus supercílios, seu nariz, sua testa. Em live. Até que batem naquele lugar exato entre a vida e a morte que os filmes nos dizem que são as têmporas. E ele morre. E não eu.
Minha raiva então inventa um dramático desfecho de novela das nove, em que o próprio filho do meio lhe assassina nas rampas do Planalto, antes de se matar, na frente de todas as câmeras de todos os jornais, influencers, fãs e eleitores. Um choque, mas no fundo, que beleza, todo mundo pensaria, um folhetim do jeito que a gente gosta.
Eu vou morrer. E não quero morrer amanhã, queria morrer lá longe, depois de muita coisa.
Minha raiva inventa que os seguranças do presidente se cansam disso tudo e tomam para si a iniciativa de uma nação e, então, sequestram o presidente, à la filmes do Kléber Mendonça. Sequestram o presidente, o levam de carro para os desertos do centro-oeste, enterram ali mesmo. E fogem para a fronteira feliz mais próxima.
E se aquele imigrante do Haiti, aquele tão seguro, tão tranquilo, que apareceu na Alvorada para dizer que “você não é mais presidente”, e se ele fosse como eu, onironauta dos tempos, e foi até ali no passado, porque sabia do futuro, só para o anúncio do glorioso porvir. Não supôs, sabia. Aqui, depois, quando passou isso tudo, você não é mais presidente. E eu voltei do futuro só para informar.
Minha raiva imagina: e se todo mundo ateasse fogo em tudo até que todo mundo fosse feliz? E se ele morresse do vírus, como eu vou morrer? E se morresse de um câncer silencioso que se espalhou para além da medicina? E se morresse num acidente em um de seus jet-skis? E se tivesse, em uma madrugada há um ano, cambaleado no escuro e tropeçado num degrau qualquer, rachado o fêmur e morrido de infecção hospitalar?
E se tivesse morrido há décadas, naquele acidente de paraquedas, em que colidiu com um prédio na Barra da Tijuca e se estatelou, mas sobreviveu? Será que eu ainda assim morreria amanhã? Quem estaria vivo amanhã se ele tivesse morrido antes, qualquer que fosse o antes?
Mas eu quero morrer humano, quero morrer gente. Quero morrer a criança que fui, que viveu encantada com tudo que era vivo, com o existir no mundo desvendando seus tempos, como aprendi com meu pai.
E para isso, nessas últimas horas de minha vida, como nela inteira, vou ter que deixar minha raiva para lá. Prefiro não sentir. Só prefiro não. Eu não queria meu fim agora, mas
[Ilegível]
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Naná DeLuca é escritor, mestre em Letras, jornalista e educador popular (não necessariamente nessa ordem). Revisou a Antologia Trans e é um dos trinta poetas que a compõem. Publicou o romance O sexo dos tubarões (Patuá Editora), prosa poética que explora o tensionamento da linguagem a partir do gênero. Trabalha há dez anos em cursinhos populares de São Paulo, dando aulas de redação e literatura. Hoje atua como professor de linguagens no Cursinho Popular Transformação, voltado para a população T. É também membro da Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da USP (ACEPUSP). Atualmente, trabalha como jornalista na Folha de S.Paulo.
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MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com o autor
Resenha - por Luiz Bras