Postado em 03/09/2021
Nos trópicos, onde as estações não mudam, abril é o mais comum dos meses. Abril era como Landi e estava quase no fim. Ontem, ou no mês passado, havia sido verão na vida de Landi, pois ela foi ao centro da cidade e voltou como os rios, seca de tanta sujeira. Pediu água na padaria em frente ao ponto de ônibus e tirou uma foto da calçada onde flores de ipê-roxo esperavam desaparecer. Pediu chuva a Oya, mas era só um pedido entre bilhões de pedidos aos milhares de deuses que criamos. Landi, assim como o ipê, logo estará sem flores.
Ao entrar em casa, a primeira coisa que fez foi fechar as janelas que eram vigiadas por todos, vizinhos e drones.
Duas coisas, além de passeios e ipês, precisam ser ditas sobre Landi: nasceu do amor entre uma pessoa de outra dimensão e uma alienígena que perdera as asas, por isso precisava ser dócil para não parecer tanto com os daqui. Na Ladeira Porto Geral havia comprado um par de asas translúcidas e um capacete oxigenador adornado com orelhas pontudas e antenas.
− Já vem encriptado para burlar a Comarsu − dissera a vendedora, referindo-se à companhia de ar, empresa privada estrangeira que cobrava a taxa de respiração das pessoas dos estados do Sudeste.
* * *
Ao chegar em casa, não tendo nada a fazer pelo dia, que foi ontem, mas pode ter sido outra semana, sentou-se no chão em frente à janela fechada e esperou anoitecer para ir trabalhar.
− Como estão vocês, formigas? Passearam bastante sobre os restos do almoço?
− Nós não passeamos, cigarra, trabalhamos – responderam. − Para que essas asas inúteis?
− Asas não são inúteis, economizei com o capacete. – Sempre tinha uma desculpa para a falta de planejamento. – Vocês, formigas, não desperdiçam, por isso têm o que comer no inverno, eu sou a cigarra, a fome passa quando eu canto.
* * *
Os clientes rareavam com a ameaça de frio. A previsão do tempo falava de ocorrência de fomes esparsas para o dia seguinte. “Por que gastou todo o dinheiro com inutilidades?”
Landi esperava os clientes na calçada, rente à guia. Um carro parou alguns metros adiante. Desceu o vidro. Landi cantou:
− “Como pode um peixe vivo / viver fora dágua fria? / Como pode um peixe vivo / viver fora dágua fria? / Como poderei viver? / Como poderei viver? / Sem a tua, sem a tua, / Sem a tua companhia.”
O cliente pagou com uma paçoca e dois dinheiros. As quartas-feiras Landi reservava às cantigas de roda. As pessoas estavam muito solitárias, não podiam mais ouvir música ou cantar, além disso tinham perdido seus pais, tios, velhos amigos, para uma recessão interminável. Os cidadãos com mais de cinquenta caíram como folhas durante o outono: “Sem desperdícios para manter a economia funcionando”, havia dito o avatar do influenciador oficial repetidas vezes e de diferentes formas até que as pessoas compraram a ideia de que precisavam morrer antes de chegar aos sessenta para a salvação do país. Tudo continuou igual como antes: ruim. A proibição da música não teve uma explicação oficial, foi só maldade do governo.
* * *
Kellany caminhava sem direção quando viu Landi batendo palmas para um bolo que o cliente havia apoiado na janela do carro. Cantavam um animado Parabéns pra você. Ela também queria um aniversário. Se aproximou tomando cuidado para não ser notada, nem pelo cliente, nem por Landi; esgueirou-se rente à parede, roçando o cobertor imundo nas placas de madeira que cobriam as portas dos antigos estabelecimentos comerciais. As luzes dos carros se misturavam às dos drones de iluminação e vigilância que circulavam à noite pelo bairro do Brás. Kellany se escondeu num canto escuro, entre um tapume e a coluna do que havia sido uma grande loja de material esportivo.
A cliente de Landi cortou uma pequena fatia e, com lágrimas nos olhos, entregou-a como pagamento.
Kellany interrompeu a primeira mordida de Landi no bolo de aniversário.
− Me dá um pedaço?
Kellany havia se esquecido de como estabelecer uma comunicação adequada, a única frase coerente que podia dizer começava com “me dá”. As roupas encardidas, o cobertor com o logo da empresa privada que administrava o serviço social, o cheiro de urina e suor tiraram o apetite de Landi, figurativamente, pois não havia construção social que derrotasse sua fome. Landi, na sanha alienígena, praguejava para si: “Os daqui que lutem para sobreviver quando invadirmos definitivamente o lado de cá”. Entregou o pedaço de bolo a Kellany. O trabalho estava indo muito bem, dando frutos e doces.
− Me dá sua alma?
− Não tenho, sou metade alienígena.
− Me dá seu capacete?
− Não posso, sou de outra dimensão.
− Me dá uma música?
Landi cantou Capelinha de Melão. Um cliente buzinou e desceu do carro, pagou bem pelo Currupio. Duas latas de leite condensado cozidas, mais de meio quilo de doce de leite. A cigarra Landi teria estoque para o inverno se não tivesse dado uma das latas para Kellany. “Tem sempre alguém mais pobre que a pobreza”, dizia sua irmã mais velha, cremada no ano passado aos cinquenta e dois. Landi tinha quarenta e nove e sabia de cor todas as canções de embalar, ninar, acalentar, confortar e algumas sobre amores desfeitos e amores perfeitos.
− Me dá te seguir – pediu Kellany.
− De longe, porque espanta os clientes. E não vou repartir tudo com você, o bolo e a lata estão de bom tamanho.
− Me dá – concordou, esfregando a ponta do cobertor na ferida da testa que coçava e depois de coçar doía e depois de parar de doer coçava de novo.
* * *
Os carros rareavam. Às duas da madrugada, Landi sentou-se na guia para esperar o movimento voltar ao normal, o que acontecia lá pelas quatro. Kellany, entediada, seguiu sem rumo. Seguir nenhum rumo ainda era seguir um caminho, para pessoas como Landi, que não era deste mundo, e Kellany, que era daqui mesmo, mas havia sido esquecida.
A solidão funcionava como o relógio analógico que Landi achou na lixeira de um prédio, os ponteiros parados, nunca se encontrando. Descobriu que o botãozinho atrás do relógio girava os ponteiros, mas quase morreu de aflição ao vê-los juntos.
− Deuses me livrem de viver com alguém o tempo todo.
O cheiro de Kellany acompanhou Landi até em casa, então Landi decidiu que era dia de limpeza. Passou pano com água e sabão em tudo.
− Não! Não, por favor − gritaram e choraram as formigas.
− Vocês são imortais. E não tá doendo, que eu sei, minhas antenas me contaram.
* * *
Sara estava cansada de andar, mas muito mais cansada da vida desesperada que levava. Ela tinha um trabalho, pelo qual deveria agradecer de joelhos, um marido abençoado com o qual ela não fazia sexo havia três meses e amor desde antes do casamento, duas crianças lindas, segundo a opinião de mãe, uma casa com três cômodos e comida todos os dias: uma vida perfeita. No entanto, alguma coisa quebrara dentro dela, como os ovos na sacola na volta do mercado e os dedos do filho mais velho na briga com o filho da patroa. Como os ossos de um pobre passarinho que o gato de rua triturava.
Ela, libélula sobre a piscina dos ricos, achando que era um lago vivo, sentou-se na calçada para observar a voracidade do gato e o desespero do pássaro. Ao seu lado, sacos de lixo, que igual a ela esperavam para ser resgatados e levados a um lugar comum, onde haveria outros sem serventia, despejados da vida, rasgados pelos carniceiros, aquecidos pela decomposição. Era maio, e maio dá essa sensação de não pertencer a nenhum lugar dentro do calendário, algum sol, alguma chuva, algum vento, algum frio.
Sara coçava o braço onde ficava o implante do governo. Que desespero! Logo seu marido viria atrás dela e ela só queria um pouco de sossego, meia hora que fosse consigo mesma.
− É pedir muito?
− Você quer que te cante uma música? − perguntou Landi. − O movimento está fraco. Hoje é o dia das canções de paixões desenfreadas, não sei por que as pessoas não gostam. São as minhas preferidas. Vai ficar feliz, porque meu capacete vai dizer a você sobre a minha felicidade enquanto canto. − Apontou para as antenas telepáticas, coisa comum na outra dimensão, difícil de conseguir do lado de cá.
− Eu não tenho nada comigo − desculpou-se por não poder pagar, mas Landi entendeu o que Sara quis dizer.
− Nem eu. − Sentou-se na guia ao lado de Sara e cantou: − “Só me leve com você, amor / Não se esquece de nós dois / Eu sou o espinho do buquê, minha flor / Eu posso machucar você sem dor / Sua máquina de prazer eu sou / Vagabundo por lazer, voador”1 − cantou.
− Obrigada. Fazia tanto tempo que não ouvia uma música. Estou me sentindo melhor. Não estou bem… não bem… acho que nunca estive bem.
O marido de Sara caminhava apressado na direção dela, trazendo uma criança no colo e puxando a outra pela mão. Ele é uma benção, ela sabe. Por que ela quer fugir? O braço no local do implante estava em carne viva e ardia como o feijão apimentado que ela fazia, como a ideia de voltar para casa.
* * *
Landi dormiu sobre a cama por fazer. Um desperdício fazer a cama, os lençóis estavam limpos, ela trocara naquela manhã, ou na manhã seguinte. O relógio na cabeceira marcava antes do que devia e depois do que podia. Landi descobriu como dar corda, mas as engrenagens escapavam dos dentes, faziam o mesmo barulho da sua unha ao abrir a lata de sardinha que ganhou na noite anterior.
− Vou dar um pedacinhozinho de sardinha pra vocês, formigas. Mas só unzinhozinho, sem desperdiçar.
− Mão de vaca.
− Ontem eu encontrei uma pessoa igual a mim − foi contando entre uma garfada e outra na lata de sardinhas. − Mas ela tinha sido abduzida pelas pessoas humanas, nem conseguiu sentir felicidade. Queria dizer tadinha dela, mas tadinha é feio, o dó virou uma vergonha. Eu canto ré, mi, fá, sol, lá, si. E a clave de dó, será que pode?
* * *
Junho estava terminando, e o cachorro de cor nenhuma fuçava os sacos de lixo. As pessoas comiam até o último grão de arroz e feijão, lambiam o prato de canja de galinha, cozinhavam as cascas dos legumes e os ossos que lhes cabiam até virarem geleia, catavam as migalhas de pão com a ponta dos dedos.
Landi usava uma jaqueta fina demais para o vento gelado da madrugada. A cliente de Landi era uma pessoa rica, o carro era muito grande, os drones de vigilância tinham desviado à sua passagem, a cliente baixou o vidro completamente escuro, usava uma máscara preta e tinha olhos que pareciam de porcelana, brilhantes e duros. O cachorro desistiu dos sacos de lixo e foi comer um pouco de música, sentou-se − bom menino − na calçada, patas dianteiras juntinhas e focinho empinado.
− O que vai querer, senhora? Hoje é dia de remelexo, mas posso cantar outra coisa, dependendo, pois estou com fome, você sabe.
− Não me ofenda. É claro que não sei o que é fome, mas não quer dizer que não sofra. Estou de coração partido, minha namorada me trocou por outra, preciso de alguma coisa que tenha raiva e medo.
− “Quando olhaste bem nos olhos meus / E teu olhar era de adeus / Juro que não acreditei / Eu te estranhei, me debrucei / Sobre teu corpo e duvidei / Eu me arrastei e te arranhei.”2
A cliente foi embora sem pagar, como era coisa de rico fazer. Nem adiantou Landi falar que estava com fome.
− Você teve sorte com o lixo, cachorro?
− Não. Somos dois com fome.
* * *
A primeira vez que Landi pensou em voltar à sua dimensão original e talvez reencontrar vida por lá foi em julho.
− Onde eu e minha irmã vivíamos não havia flores. Pode ser difícil de imaginar, mas era pior do que aqui. Acham que as guerras são exclusividade dos seres humanos? Não são…
As formigas haviam encontrado uma migalha e não prestavam atenção em Landi, que continuou contando sobre os medos da sua infância.
− Os nanorrobôs processavam os biomas até sobrar energia pura para as naves alienígenas e não deixavam o que comer para os vivos. Foi uma morte lenta para a maioria. As máquinas nascem mortas, esse é o poder delas sobre nós. O tempo passa como uma mentira para os vivos, blefamos o tempo inteiro que estamos apaixonados, doloridos, ocupados, conscientes, responsáveis. Mas quê… Meus pais nos empurraram para cá, mas esta é só uma reencarnação da realidade. O mundo também reencarna, sabiam?
As formigas tinham se recolhido sem dar boa-noite para Landi. Ela apoiou os dois cotovelos na mesa e cantou para si. Não pediu ajuda aos deuses, não disse palavras mágicas, não fez nenhum gesto, só cantou baixinho sem pensar em nada. A passagem para a sua dimensão se abriu, iluminada como um dia de verão. Landi queria dar só uma espiadinha do outro lado, mas acabou ficando.
* * *
Kellany dormia sob a marquise da loja de materiais esportivos do Brás. Setembro a assaltava com pesadelos sobre superstições imbecis e nenhuma esmola.
− Você quer uma bolacha recheada? O cliente me deu duas. − Ela chacoalhou Kellany e repetiu: − Você quer bolacha recheada, moça? Quer?
Kellany reconheceu Landi, a pessoa que lhe dera doce de leite um tempo atrás.
− Me dá − respondeu, arrancando a bolacha da mão de Landi.
− Você viu a Sara? Preciso falar pra ela voltar. Se a vir, me avisa, tá?
Kellany assentiu. Sara era aquela que fugiu e acabou voltando. Kellany foi como Sara, família e filhos, só que decidiu não voltar.
− Tudo bem com você? Eu estou na mesma. Quer dizer − sentou-se no chão ao lado de Kellany −, fiquei fora um tempo, visitando a família, mas decidi voltar. E você?
− Me dá família.
− Alguns primos, o resto morreu, mas eles estão bem, está tudo bem, a fase ruim passou. Lá é bem melhor que aqui.
− Me dá lá.
− Você não pode, não é de lá, e mesmo que pudesse precisaria lembrar como veio pra cá e repetir.
− Me dá lembrar.
− Não posso, porque não consigo ler seus pensamentos, mas posso te dar uma canção. Eu voltei porque aqui as pessoas precisam mais da minha música do que eu preciso de comida.
− Me dá música.
Landi deu a outra bolacha para Kellany e cantou:
− “Quando o inverno chegar / Eu quero estar junto a ti / Pode o outono voltar / Que eu quero estar junto a ti / Porque é primavera…”3
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1. Xamã: Câncer
2. Chico Buarque: Atrás da porta
3. Tim Maia: Primavera
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Claudia Dugim é professore, escritore, nb e bissexual. Publicou contos pelas editoras Buriti, Draco, Chá e Patuá, nas revistas Trasgo, Pulp Fiction e Contos Sonoros. Organizou duas coletâneas de ficção científica pelo Coletivo Singularidades: Cobaias de Lázaro e Retrônicos. Para a Coleção Futuro Infinito, da Patuá Editora, organizou a coletânea Violetas, unicórnios & rinocerontes, só com autores LGBTQIA+. Foi duas vezes finalista do prêmio Argos na categoria contos e três vezes na categoria coletânea. Publicou seu primeiro romance, a space opera Matando gigantes, pela Patuá Editora.
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MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com a autora
Resenha - por Luiz Bras