Postado em 03/09/2021
Se um caminho para o melhor há
Ele toma uma plena visão do pior.
− In Tenebris II, Thomas Hardy
Em janeiro de 2037, o mundo despertou com uma fantástica descoberta. As primeiras ocorrências se deram na China, nos EUA e na Rússia. Nos meses seguintes, novos casos foram relatados com igual euforia em outros países, inflamando os ânimos da comunidade internacional. Um empolgado premier francês anunciou diante das câmeras que a França também estava a par de tão magnífico triunfo. A humanidade, como foi anunciado aos sete ventos em Paris, havia finalmente vencido a batalha contra a morte. Todos, a partir dali, poderiam se tornar imortais.
Um exagero, no entanto. O que havia sido descoberto não era ainda a tão desejada imortalidade − algo exclusivo a deuses e outros seres míticos − mas, sim, a amortalidade, o fim da morte por velhice. Graças aos milagres da biogerontologia, da terapia de genes, do reparo molecular, dentre outros ramos da medicina regenerativa, qualquer pessoa, munida dos recursos necessários, poderia ir a uma clínica e estender a própria vida ao infinito.
A surpreendente descoberta foi recebida com doses iguais de júbilo e reprovação, tanto na mídia como nas universidades e casas legislativas. Seus mais fervorosos defensores diziam que aquele momento era um divisor de águas na história da humanidade, um acontecimento que estaria no mesmo nível de grandeza da Revolução Agrícola e da Revolução Industrial. Já o grupo de acusadores, mais diverso e tão exaltado quanto os primeiros, abarcava políticos e cientistas que apontavam para os riscos sociais da descoberta (como uma potencial quebra dos sistemas de previdência ou até mesmo a divisão da humanidade em duas espécies antagônicas de mortais e amortais); líderes religiosos denunciavam, diante de fiéis amedrontados, a afronta que se cometia à natureza humana e à própria autoridade de Deus. Em um jornal matutino, um famoso médico trans-humanista censurou aqueles contrários à amortalidade de estarem praticando o mais vil bioludismo e disse, bem-humorado, que a seleção natural cuidaria de varrê-los para debaixo do tapete das espécies.
Apesar das diferentes opiniões, os primeiros anos após a descoberta da amortalidade foram anos de relativa paz. Era como se um estado de alívio semelhante ao vivenciado com o fim de uma guerra mundial houvesse se instaurado na maior parte do planeta. A economia prosperou, laços diplomáticos até então desfeitos foram reatados e diversos países iniciaram uma cooperação conjunta para difundir o mais amplamente possível as tecnologias que propiciavam a prodigiosa conquista sobre a morte. Alemanha e Holanda foram pioneiras ao inserirem programas antienvelhecimento em seus sistemas públicos de saúde. No Japão, o governo estabeleceu uma renda básica universal que beneficiaria tanto mortais quanto amortais. E, contrariando as tenebrosas projeções levantadas por especialistas, Noruega, EUA e Inglaterra viram sua população diminuir, mesmo com o acréscimo no número de cidadãos que se declaravam amortais. Houve mesmo religiões que mudaram seu discurso e começaram a tratar a amortalidade como o exemplo cabal dos planos divinos para a instalação do Paraíso na Terra. Porém, os limites da medicina regenerativa foram colocados em xeque quando um amortal sueco caiu de parapente em Saint-Hilaire, sofrendo quadriplegia e sequelas neurológicas permanentes. Na manhã seguinte, jornais do mundo todo apresentaram variantes de uma mesma manchete:
ETERNAMENTE PARALISADO
Os riscos da amortalidade
Outros problemas revelaram a peculiar contradição que era viver como um amortal. Temendo uma queda, um assassinato ou o inerente perigo de simplesmente atravessar a rua, muitos amortais se fecharam em seus lares, paranoicos e ansiosos, vivendo em um constante pavor da morte como verdadeiros Dâmocles do século 21. Casais de namorados esquivavam-se do casamento, incertos se o amor sobreviveria ao teste da eternidade (numa tentativa desesperada de controlar a queda vertiginosa de casamentos, o Papa decretou uma encíclica que concedia a amortais a graça do divórcio). Jovens recém-formados viam-se diante do dilema de enfrentar um mercado de trabalho em que boa parte das vagas eram ocupadas por amortais que permaneceriam sentados em sua cadeira supostamente para todo o sempre. O caso mais controverso dessa vitaliciedade foi o de Kim Jong-un. Em 2094, num discurso em Pyongyang, o ainda espantosamente jovem ditador assumiu que já há anos passava por tratamentos regenerativos, o que o tornava o primeiro político do mundo a estar no poder por oitenta e três anos.
Frente aos episódios que se seguiriam, um ditador no poder há tanto tempo se tornou o menor dos males. Cientistas contrários à amortalidade previam um crescimento demográfico descontrolado dentro de poucos anos, o que geraria efeitos catastróficos para todo o ecossistema do planeta. Esses céticos, difamados como bioluditas, viram suas estimativas levadas a sério durante a década de 2090, quando a população mundial chegou a quinze bilhões de pessoas. Defensores da amortalidade argumentavam que tal crescimento não possuía relação com a medicina regenerativa. Comprovação disso era o fato dos países com altos índices de amortais em sua população exibirem há anos taxas de crescimento próximas a zero ou negativas. No espectro oposto, Índia, Brasil, Nigéria e China mantiveram crescimento contínuo em sua população. Com um fator preocupante: todos os amortais recenseados em 2050 nesses países estariam, em grande parte, com plena saúde para serem incluídos nos censos de 2100 e vindouros.
Tal aumento levou o consumo no mundo todo a crescer de forma assombrosa. Em países emergentes, houve uma busca cada vez maior por recursos básicos, como água, comida, minérios e combustível. Já nas nações mais ricas, mesmo as taxas de crescimento populacional controladas foram insuficientes para frear o consumo. Os amortais, concentrados em sua maioria nesses países, provinham dos extratos mais abastados da população, constituindo uma aristocracia eterna que produzia lixo e consumia como nenhuma outra na História. Em lives na internet ou em programas de tevê, especialistas alertavam que se os níveis de consumo e produção permanecessem como estavam, seriam necessários pelo menos sete planetas Terra para atender a gargantuesca demanda.
Não tardou para que mudanças climáticas fossem sentidas: crescimento nos níveis de poluição do ar, da água e do solo fizeram a temperatura global aumentar espantosos dois graus célsius. Recursos básicos, como petróleo, grãos, fósforo e água acabavam a ponto de não acompanharem a demanda. Ondas de imigração começaram a se espalhar em áreas do continente americano, Europa Central e África, onde grupos de pessoas, muitas vezes aos milhões, abandonavam seus lares e países, saindo em uma busca aflita por locais onde as condições de vida ainda não tivessem deteriorado. Tornou-se comum a disputa por água e comida terminar em tumultos ou conflitos armados. Entre 2093 a 2095, pogroms ocorridos na Lituânia terminaram na perseguição e no massacre de duas minorias étnicas.
O radicalismo, nesse momento, ganhou cada vez mais vozes, especialmente nos países ricos, que se viam encurralados pelas ondas de imigrantes e pelas forças da natureza. Em um vídeo que viralizou na internet, um ambientalista italiano defendeu o bombardeio de países pobres como medida profilática para controle populacional. Slogans como “Salve o planeta. Mate um amortal”, “Queimem o Brasil” ou “Bombardeiem o Sudão” começaram a aparecer pichados nos muros de Berlim a Lisboa. Enquanto isso, atentados coordenados por grupos ecofascistas foram perpetrados contra clínicas e hospitais que ainda praticavam medicina regenerativa. Em Tóquio, uma bomba explodiu em uma farmácia, e em Londres uma influenciadora amortal foi assassinada com um tiro à queima-roupa enquanto estacionava o carro em sua casa. Um gigantesco programa de esterilização em massa foi implementado na China como resposta aos conflitos que por quase dois anos engoliram países da Ásia Central e Ásia Oriental, colocando fim a uma longa disputa por fontes de água e terras cultiváveis. Na Páscoa de 2099, o chanceler alemão se reuniu com parlamentares para ouvir propostas de um projeto que alguns apelidaram de o Lebensraum do novo milênio. A inquietante pergunta feita por uma revista de Buenos Aires,
TERRORISMO E XENOFOBIA
Que outros perigos a amortalidade nos reserva?,
foi relegada a um breve editorial.
Quatro meses antes do ano-novo, surtos de doenças até então erradicadas começaram a assolar países ocidentais e orientais indiscriminadamente: cólera, varíola, sarampo e até mesmo casos de peste bubônica espalharam-se rapidamente. Novas doenças, variantes da SARS, do tifo e da tuberculose, transformaram-se em uma pandemia. Os primeiros casos dessas doenças surgiram nos inúmeros mega-acampamentos de refugiados criados ao redor do planeta − como os do Maracanã, dos Jardins des Champs-Élysées ou em Zaryadye Park −, locais cuja aglomeração de pessoas vivendo em precárias condições de moradia e saneamento possibilitou uma rápida propagação e mutação de vírus e bactérias. Como as guerras, essas devastadoras doenças atingiram mortais e amortais sem levar em conta a lacuna genética que os separava.
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2115. Após dezesseis longos anos de guerras e pestes, quatro quintos da população mundial foram erradicados. O planeta − agora com apenas três bilhões de pessoas − recupera-se do traumático estresse provocado pelo inchaço humano; animais considerados extintos começam a ser avistados e terras antes devastadas voltam aos poucos a florescer.
Os cidadãos do mundo, amortais ou não, miram o passado com temor respeitoso. O futuro, entretanto, ainda um mistério, com petulante curiosidade.
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Michel Peres nasceu em Matozinhos, Minas Gerais, em 1982. Formou-se em História e Engenharia e possui especialização em Artes. Escreveu artigos para o site Obvious, teve poemas publicados no site Ruído Manifesto, participou de coletâneas como Mitos modernos (Penumbra Livros), Realidades cabulosas (site Leitor Cabuloso), Cyberpunk: registros recuperados de futuros proibidos (Draco). Tem contos nas revistas Avessa, Mafagafo, Nove Amanhãs, Trasgo e Somnium. Seu primeiro livro individual é a coletânea de contos HiperHelix, lançada pela Patuá Editora.
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MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com o autor
Resenha - por Luiz Bras