Postado em 03/09/2021
Escolheu o nome “Yukio” porque era o que estava na capa do livro. E apenas porque a máscara lhe perguntou.
Era uma máscara branca, de plástico, olhos e boca vazados como qualquer máscara, com furos nas laterais feitos para comportar um elástico que já não estava mais lá. A máscara não tinha expressão e, por isso mesmo, podia ter qualquer expressão. Ficava no topo de um manequim de costura, daqueles que têm só o tronco, encaixada em uma tira de madeira que irrompe do pescoço. O manequim estava vestido com um robe comprido em estampa floral. Pela silhueta, seria fácil enxergar ali uma pessoa. Mas não era uma pessoa.
Ficavam os dois, Yukio e a máscara, no camarim do teatro. De vez em quando, se arriscava (Yukio, não a máscara) a sair da coxia pelos fundos do prédio. O teatro velho tinha cheiro de mofo, entulhado de araras e antigos figurinos, objetos cênicos enfiados entre as fileiras de poltronas como barricadas de guerra, a poeira acumulada que Yukio gostaria tanto de limpar. A poeira atacava sua alergia, os espirros denunciavam sua localização. A perda de memória poderia também ter se estendido ao corpo, pensava Yukio, não só à mente, mas seu corpo se lembrava muito bem da sensibilidade à poeira.
– Por que não consegue parar quieto? – perguntou a máscara.
– Você diz isso porque não tem pernas – Yukio dava voltas pelo camarim pequeno, menor ainda devido ao entulho de antigas produções largado pelos cantos.
– Eu tenho boca e sou capaz de ficar calado.
– Ah, não é não.
– É você que não para de falar comigo.
– Por acaso sabe o que são essas cicatrizes no meu peito?
– Como eu vou saber? Talvez alguém tenha extraído seu coração.
– Dos dois lados?
– Vai ver tinha dois corações.
– Tá debochando de mim?
– Não importa. Agora não tem nenhum.
Yukio gostaria de extrair da máscara alguma informação realmente relevante. Ou quem sabe captar algo em sua expressão que lhe indicasse como tinha ido parar naquela situação, porém se tratava de uma máscara, não tinha expressão. Sabia apenas que o mundo lá fora estava silencioso, muito silencioso, e que, quando se arriscava e saía pelos fundos do teatro em busca de alimento, jamais encontrava outra pessoa.
Vivia também com Yukio e a máscara, dentro do antigo teatro, uma pantera adulta. Yukio a viu crescer e, no início, chegou a pensar que se tratava de um gatinho preto. O “gatinho” era carinhoso, apesar de um pouco bruto e, antes de se apresentar como uma ameaça ao território de Yukio, os dois mantinham uma relação cordial, quase uma codependência. O humano “caçava” e dividia com o animal filhote sua comida. De repente, Yukio começou a temer a pantera – não sabia exatamente quando ou como se dera essa mudança, mas havia se transformado em presa. Isso estava bem claro. O medo não deixa espaço para o benefício da dúvida.
Não demorou muito para que se tornassem inimigos.
O mais sensato seria abandonar o teatro e buscar outro território. O próprio Yukio não sabia precisar o que o tornava tão apegado ao teatro antigo, ao cheiro de mofo, aos ratos que caminhavam nas sombras e roíam figurinos velhos, ao tecido vermelho da cortina que demarcava a fronteira entre Yukio e a pantera, ao camarim de espelhos encardidos emoldurados por lâmpadas queimadas. A coxia era um lugar que lhe oferecia conforto. Não porque ali estivesse escondido, protegido, mas por representar um ambiente em permanente expectativa. Vivendo na coxia, havia a sensação de que o “espetáculo” começaria a qualquer momento, de que algo iria mudar. A coxia sempre oferecia uma promessa. Era mais fácil viver isolado se houvesse uma possibilidade em aberto.
– Um dia, não vai ter mais nada pra mim lá fora – ele se referia aos alimentos nas prateleiras dos supermercados abandonados.
– Você tem os ratos – respondeu a máscara. – E sua amiguinha felina.
– Quando isso vai acabar? – Mas ele não sabia exatamente o que queria dizer com “isso”. – Por que eu não consigo me lembrar de antes?
– Antes? – perguntou a máscara.
– Quando havia outras pessoas como eu por aí.
– E como sabe que não há mais?
Yukio se calou por pura raiva. Decidiu que não conversaria mais com a máscara, alimentar aqueles diálogos descabidos não o levariam a lugar algum, muito menos à compreensão da situação. Deveria procurar sozinho, em algum lugar dentro da própria mente, as memória fugitivas capazes de indicar o caminho.
– Caminho pra onde? – perguntou a máscara.
– Você é chato pra caralho. Já te disseram isso?
– Nunca falei com ninguém a não ser você. – Teria dado de ombros se tivesse ombros. E então mudou bruscamente de assunto: – Sobre o que é esse livro?
Falava do Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima, livro que Yukio tinha encontrado sobre a bancada do camarim, do qual havia tirado seu nome.
– Sobre um cara que usa uma máscara a vida toda. Não uma máscara como você, uma metafórica.
O livro tinha a lombada mordida por algum bicho, provavelmente a pantera quando filhote, e trechos marcados a lápis. Talvez pelo próprio Yukio antes de perder a memória. Talvez pelo próprio Yukio antes de se chamar Yukio. O enredo é centrado no amadurecimento de um jovem gay vivendo em Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial, na descoberta de sua sexualidade desviante e nas consequências que a sociedade impõe a quem transgride a norma. “Entregaram-me o que poderia chamar de cardápio completo das inquietudes da minha vida antes ainda que eu pudesse lê-lo” – o trecho sublinhado na página dezoito introduzia um episódio em que o protagonista, após assistir a um espetáculo num teatro de Shinjuku, veste-se como a ilusionista e grande estrela da noite Shokyokusai Tenkatsu. A reação da família ao ver o garotinho vestido de mulher é de puro desprezo, a mãe baixa os olhos, sequer suporta vê-lo, a criada o retira da sala e lhe arranca as roupas do corpo.
Um arrepio percorreu Yukio ao reler aquele trecho. Imaginar o menino eufórico vestido com roupas femininas lhe causou mal-estar. Olhou o robe florido sobre os ombros do manequim que sustentava a máscara. O corpo simulado na estrutura de madeira e metal tinha curvas, cintura fina, busto saltado, quadril largo. Muito semelhante a seu próprio corpo. A diferença era o peito liso. E as cicatrizes.
Ouviu-se um rugido. Aquilo não era incomum. O que Yukio não entendia era por que a pantera fazia questão de tantas afirmações de seu território se nunca se aproximava do palco, tampouco dos bastidores. Quase como se respeitasse os limites da área de Yukio, ainda que o animal pudesse subjugar o humano sem muito esforço.
– Ela não vai vir pra cá – disse a máscara.
– Como você sabe?
– Mas você quer ir pra lá.
Ele queria? Talvez.
Provavelmente.
– Acha que pode dominá-la?
– Com certeza, não.
– Não com a força.
Preciso da minha mente limpa. Não deve ser difícil construir uma armadilha ou uma arma. Mas por que eu não consigo pensar em nada? Estou andando em círculos, como a fera.
Lembrou-se de tentar fazer carinho num cachorro e levar uma mordida. “Ele tem mais medo de você do que você dele”, alguém tinha dito, talvez um parente. Uma pantera não é um cachorro. Uma pantera não sente medo.
Que bom, porque eu também não.
Lembrou-se. Talvez as lembranças estivessem começando a retornar.
– Eu sei por que quer fazer isso – declarou a máscara. – Está entediado. As horas são todas iguais. Sua vida não tem o propósito ilusório que os outros seres como você construíram ao longo dos anos. Deve ser uma maldição acordar todos os dias com a lembrança dos anteriores. A pantera não. Ela não tem a vivência da rotina, cada minuto é novidade. Você tem inveja, por isso “perdeu a memória”.
– Acha que perdi a memória de propósito? Como isso é possível?
A máscara sorriu e Yukio pensou que estivesse louco. Como pode uma máscara sorrir?
– Você criou seus mecanismos, Yukio. É isso que seres como você fazem. Dessa forma, asseguram sua sobrevivência. O instinto da pantera, seu rugido, suas garras: vocês simulam tudo isso com essa faculdade interessante que é a inteligência. Mesmo assim, tanto instinto quanto inteligência partem de uma mesma memória e, ainda que diferenciados, um cria artifícios para compensar a falta do outro, para simular o outro.
– E você, que tipo de mecanismos cria?
– Acho que já sabe a resposta.
– Estamos andando em círculos.
Como a pantera.
– Não crio, eu sou um mecanismo – disse a máscara. – Não sou capaz de criar nada pois não tenho memória.
Memória. Por mais que se esforçasse, era como se sua vida pregressa nunca tivesse existido. Contudo, caso não tivesse, como ele seria capaz de lembrar os significados das palavras e se expressar? Como sabia que um copo servia para beber água, por exemplo? Que as roupas que usava deviam lhe proteger do frio e que a nudez, caso alguém pudesse vê-lo, seria indesejada? Não era isso também memória?
– Vou lá fora. – Yukio se levantou.
– Lá fora? Na rua? – perguntou a máscara.
– Não, no palco.
– E a pantera?
Yukio não respondeu. Se estavam ambos presos ali, seria inevitável que um dia ela o devorasse. Ergueu-se da poltrona rasgada em que se afundava nos momentos mais tediosos, olhou os pés descalços, imundos, comparou-os com a base de metal do manequim feminino: o manequim não tinha pés. A coxia era escura, mesmo de dia. Seus corredores se fixavam no espaço como um labirinto, mas ele os conhecia bem de tanto que tinha vagado por ali. Ergueu-se um som familiar através da cortina, do outro lado, não o rugido da fera: a cacofonia do público quando adentra o teatro. Uma lembrança, certamente uma lembrança, não havia a menor possibilidade de existirem pessoas reais ali. Yukio estava sozinho no mundo. Mas não desde sempre.
Afastou com cuidado o tecido vermelho, não por medo, não por nervosismo, apenas em busca do mistério, da antecipação que seu gesto podia gerar, porque se colocar no palco é atrair os olhares todos para si, criar uma diegese própria, um fascínio devorador. Ele era a presa. Caminhou com tranquilidade até o centro do palco.
A fera lhe encarava, parada no meio do corredor, seu olhar não apresentava a aura de perigo que se espera de um grande predador. Uma expressão cansada, quase entediada, num corpo pesado. Para um caçador inato, caçar é um ato banal. Os jogos de poder são emocionantes apenas para nós, que inventamos nossa própria natureza, pensou Yukio.
A pantera bradou um rugido arrastado e saltou em direção a Yukio, com os dentes à mostra.
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Puri Matsumoto é formada em Produção Cultural pela UFF e em Roteiro pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Seu primeiro livro, Conto noturno da Princesa Borboleta, foi finalista do Prêmio SESC de Literatura, Edição 2011-2012. Publicou os romances Ball Jointed Alice: uma história de amor e morte (Draco), O infinito no meio (Draco) e Anunciação (Independente), a coletânea de contos Às vezes eu ouço minha voz em silêncio (Independente) e o livro de poesia A verdade é que eu fiquei tão tonta que pensei que fosse cair (Urutau). Além de escritora, é drag king, aprendiz de pole dancer e pós-graduanda em Filosofia.
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MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com a autora
Resenha - por Luiz Bras