Postado em 02/09/2021
− Você vem ou não? Decida-se, Cleidir – insistem Nina e Lita, preocupadas. São menores de idade a quilômetros de casa, visitando o Lote XV, em Duque de Caxias, RJ, onde mora o amigo. Seria complicado explicar que são mestres Éèdì aprendizes dos Clãs de magos mais antigos e poderosos em África. Fora de questão. Por isso o nervosismo de Nina, que mora no Capão Redondo, em Campo Limpo, SP, e de Lita, do Bom Jardim, em Fortaleza, CE.
− Dois minutos, não… quatro – ele responde por áudio, no whatsapp.
Cleidir joga um copo dágua dentro do saco de sabão em pó que comprou no armazém da tia. Se afasta, diz o juju, e então o sabão começa a borbulhar sobre a cama, na horizontal, pois está concentrado no ato, no desejo firme de moldar na bolha crescendo… uma cópia sua dormindo.
− Feito! Agora me guiem – responde Cleidir.
Lita pega novamente seu celular e acessa o app DameDame, um GPS adinkrano mágico para localização entre magos. Ela o ativa e Cleidir recebe em seu aparelho a localização exata. E daí fica fácil, o celular se torna um objeto magicientífico que aponta em qual parede do quarto está o portal, para ele atravessar.
− Que demora. Eu disse pra você conjurar a bolha mais cedo – reclama Lita.
− Não tinha como, e vai durar cinco horas – responde Cleidir, que fica incrédulo com o objeto de transporte que elas providenciaram.
− Mas não tinha nada melhor que uma bicicleta motorizada, Nina? Poderia ter conjurado uma como a da Binti, flutuante…
− Claro! E chamar a atenção de todos aqui e lá. Esqueceu que estamos em avaliação remota, seu Cleidir? Não leu a parte das penalidades do nosso app de orientação? Não podemos conjurar tecnologia em tempos que ainda não a construíram, sob o risco de advertência e até expulsão?
− Ei… não temos tempo pra isso. E sobe logo! Aonde vamos, chamar a atenção não é uma boa ideia. Nem aqui. Vamos, sobe logo – insiste Lita.
Cleidir revira os olhos e se conforma em subir no terceiro lugar da bicicleta, que se estica para ele.
− Feira Noturna de Nabta Playa… aqui vamos nós! Coloquem os capacetes – fala, ao ter confirmada a localização, no app, de seu destino. O mesmo que não puderam conhecer pela segunda vez, devido à interrupção das aulas por questões da pandemia.
Assim que o app confirma, Nina acelera em direção ao portal, quatrocentos metros à frente, e então… “Vocês chegaram ao seu destino: Feira Mágica de Nabta Playa, localizada a um quilômetro do círculo de pedra Nabta Playa, o local astronômico mais antigo da humanidade”, informa o GPS.
Nina, Lita e Cleidir festejam a chegada e lembram das orientações dos colegas que visitaram a feira em segredo: estacionar a pelo menos quinhentos metros, não demorar, não usar magia ou chamar a atenção sob o risco do seu Clã ser notificado e tudo se tornar um pesadelo.
E o mais importante, não comprar nada mágico.
Essas foram as orientações dadas ao grupo, que se disfarça com túnicas de capuz amarronzadas, as mais comuns, e seguem a passos largos para a feira, com dinheiro local e muito animados.
A noite no deserto é fria, mas não afasta o público que está ali com um propósito firme e caminha de um lado para o outro entre as tendas iluminadas, com seus vendedores alardeando muitas ofertas que vão de artefatos antigos a eletrônicos magicientíficos, como palmtops e celulares que passam de objetos comuns a pontes Einstein‐Rosen para as bibliotecas dos Clãs mágicos (Mali, Axum, Núbia, Kemet etc.) e outros lugares, apenas mudando a opção do wi-fi que só funciona com magos e aprendizes.
− Que incrível – comenta Cleidir, entusiasmado com tanta coisa que nunca viu antes e todas aquelas vozes perguntando sobre esse produto e pechinchando naquele produto.
− Verdade. E é uma pena que não possamos comprar nada mágico – lamenta Lita.
− Fazer o quê? Fomos um dos últimos países a se mover para as vacinas e por isso também perdemos o passeio do primeiro bimestre. Então vamos aproveitar, ficar de olho nos itens, e na próxima visita compraremos o que nos interessa.
Os amigos concordam e sintonizam o ouvido nas conversas e apresentações de objetos incríveis, tipo a bússola de mundos paralelos e os totens para captar energimórias de grande espectro, como pirâmides e sítios arqueológicos, por exemplo. E por mais que tudo seja extraordinário, o item mais desejado e impróprio para aprendizes de primeiro nível está ali ao alcance dos olhos, mas só é permitido após a primeira formatura… punhais contra espíritos malignos. Só de olhar os objetos sendo manipulados, Nina fica animada com o dia em que terá o seu, o que a colocará num nível adulto de magia, com direito a tudo o que isso significa.
− Nina… pare de sonhar e vamos comer algo antes de finalmente darmos fim ao nosso passeio clandestino – avisa Lita.
− Concordo – comenta Cleidir. − E por mais que esteja adorando estar aqui, precisamos voltar para casa antes que nossos pais descubram as bolhas e nos matem. Ou, pior, nos impeçam de voltar aqui no próximo semestre.
Nina concorda e os três se dirigem a uma tenda de comida com valores que cabem em seus bolsos. O prato escolhido é um cuscuz marroquino, que é servido numa grande panela com uma porção suficiente para três pessoas. A comida está saborosa, bem quente, e espanta totalmente o frio.
− E o que compramos? – pergunta Lita, animada e já respondendo sua própria questão. − Comprei uma máscara de cor índigo pintada à mão. É muito linda!
− É mesmo. Já eu comprei um ornamento para quando voltarmos às aulas, quero aprender a separar moléculas – comenta Nina, que deixa todos curiosos e tira da sacola um adinkra de ferro: um funtummireku que tem o formato de dois lagartos entrelaçados pela barriga.
− Eita, que curioso. Já eu preferi algo mais simples e seguro, um rolo de pergaminhos antigos para as minhas histórias, e ganhei uma caneta que veio com uma pedra tinteiro original. Não vejo a hora de amassar e fazer a tinta – conta Cleidir, animado ao mostrar sua sacola.
− Então… conseguimos o que viemos buscar. Vamos embora, pois admito que estou com sono e esta semana iniciaremos nossa rotina escolar normal – comenta Lita, finalizando com um bocejo.
− Eu sou amanhã, seguindo a ordem alfabética. Mas não tenho do que reclamar. Meu colégio passou por uma reforma, fizeram pinturas e foi rebatizado com o nome da primeira engenheira negra do Brasil. Agora é o CIEP Enedina Alves Marques – comenta Cleidir enquanto caminham para o estacionamento. É hora de dar um até breve à feira e voltar para casa.
O dia seguinte é exatamente como a previsão do tempo informou: uma frente fria avança pegando o sudeste e com chuvas mais fortes no meio da tarde, mas Cleidir não está preocupado com isso. Sua manhã, que começou incrível, agora é um problema que ele não previu e terá que resolver de algum modo.
O jeito é pedir ajuda para as únicas duas pessoas que poderiam saber daquilo e guardar segredo absoluto, pensa enquanto vê colegas no refeitório sendo lambidos, experimentados como peças de carne.
− Lita! Nina! Deu ruim aqui, rápido. Eu fiz besteira, invoquei um Eloko não sei como. Venham para cá – digita Cleidir para as amigas, que imediatamente pedem sua localização no app DameDame e atravessam o portal.
− Ué? Mas que nevoeiro é esse? Cleidir? – sussurra Nina, preocupada.
− Por Sekhmet! Mas que diabos você fez aqui? – pergunta Lita, irritada, antes de ser tateada e puxada para o chão com Nina, por Cleidir. A névoa encantada do Eloko está a meio metro do chão, mesmo dentro da biblioteca.
− Eu não fiz nada, mas que droga! Eu só estava escrevendo uma história de terror para o concurso de contos, nas folhas do meu pergaminho. Só isso – enfatiza o garoto.
− Por Imhotep, então! Explica como você acabou com um monstro faminto no pátio de um CIEP? E não economize nos detalhes – avisa Lita enquanto procura na Wikijuju mais informações sobre a criatura Eloko.
− Certo… eu estava na sala de aula e comecei a escrever uma história…
“O relógio central mal havia marcado nove horas da manhã quando, por acaso, entre as conversas e risadas na sala de aula, ouvi ao longe o toque de um sino, muito baixinho. Eu ouvi e por algum motivo me senti incomodado, mas passou e a aula começou.
Algum tempo depois ouvi de novo, porém desta vez o toque soou como um eco que trouxe junto uma névoa que pairou ao redor do CIEP, dos corredores e salas. Foi quando percebi que não era o único a ouvir esse som. Toda a turma o ouvia, entretanto só eu não estava encantado. Eu era o único alerta, enquanto meus colegas sorriam e buscavam a imensa janela na esperança de ver de onde vinha o som do sino.
Eu também fui até a janela, e foi quando vi brotar uma árvore. Ela se abriu lindamente bem rente à curva do muro dos fundos. Suas flores vermelhas eram imensas, elas desabrocharam e perfumaram o ar. Foi quando tudo ficou realmente assustador.
Não acreditei nos meus olhos até sentir o medo virar suor frio… Do centro das flores desceram ganchos grandes e fortes. E do tronco saiu uma criatura verde, baixa e atarracada com gramas como barba, envolta em folhas e exalando cheiro de mata molhada. Naquele momento percebi que carregava algo que, sacudido, tinha o som de sino, mas não parecia metal.
E eu a reconheci… saído de meus medos, um Eloko, um canibal. Não quis acreditar, mas assim como eu sabia que ele estava ali, ele também sabia que eu estava e me encarou. Eloko entendeu de imediato que, antes de fazer sua ceia e estoque, precisava se livrar de mim, precisava me engolir e jogar os ossos fora.”
− Foi isso o que eu escrevi. Daí uma colega falou comigo e de repente começou a acontecer exatamente igual. Saí correndo, conjurei sei lá quantos tranca-portas e escapei pela janela da sala dos professores. Exatamente assim, e me escondi aqui na biblioteca do pátio.
− É… com certeza não é culpa do pergaminho… – fala Nina, olhando as cinzas das páginas no chão enquanto Cleidir concorda.
− Bem… a Wikijuju diz que Eloko não tem um bom nariz, exceto para farejar magos, e usa nevoeiros como armadilha. A solução é enfrentá-lo com armas mágicas, e objetos cor índigo naturais atordoam espíritos malignos como ele – comenta Lita pensativa. − A máscara de ontem… mas não dá para replicar a pintura.
− Pois é… Não temos armas, e em nosso nível sequer funcionariam. Então vamos focar na caneta e na tinta – comenta Nina, que complementa: − E onde estão?
− Na sala, na minha mochila, mas ele pressente meus atos, como escrevi, e fica à espera – fala Cleidir, ansioso.
− Bom… vamos derrubar sua vantagem e fazê-lo desaparecer – fala Nina, que bola um plano enquanto Lita pesquisa o que precisam saber.
É hora de agir.
Cleidir corre na frente de Nina para dentro do CIEP. A criatura percebe o garoto indo ao banheiro masculino após a primeira rampa. Essa é a deixa para Lita, mascarada, subir no telhado da biblioteca e transmutar a antena num anticondensador via wi-fi mágico. Seu celular gruda na parabólica e começa a procurar o modelo. E assim que sintoniza vira um circuito magicientífico adicional do objeto.
− Não vai ser assim tão fácil, idiota! – grita Cleidir de dentro do banheiro, antes de sair pela janela. O Eloko quase crava suas garras nele e então para, fareja o ambiente e corre rampa abaixo. Lita está em ação: o nevoeiro continua instável, rareia bem e a árvore, agora exposta, está carregada de elétrons éèdi, que provocam estática e embaçam a vista do Eloko.
Nesse momento, Nina, escondida atrás da porta do banheiro feminino, pode se mover. Seu rastro é disfarçado pelo de Cleidir, que se junta à Lita no telhado e adiciona vento à confusão.
O caminho está livre. Nina não pode emitir sons. Ela corre descalça pelas rampas até a sala no terceiro andar, entra e passa pelos alunos em transe, zanzando. Nina os tira do caminho e encontra a mochila com a caneta e a tinta. Tenta queimá-las, mas algo dá muito errado. Nada acontece, e para piorar, a tentativa deixa os alunos histéricos. A porta está aberta e eles correm gritando rampa abaixo.
− Eloko tem fome! Eloko precisa comer!
− Não! Parem! – grita Nina, sem efeito.
− Pela Deusa Nut! Olha! Os alunos estão correndo em direção ao Eloko! – grita Lita, aterrorizada, ao ver a criatura abrindo a boca.
− Só o dono da magia pode desfazê-la. Queima! – grita Nina do janelão da sala, jogando a mochila para Cleidir, que a pega segundos antes de assistir a um colega sendo engolido.
− Não! Chega!!! – grita em desespero, ao colocar fogo na mochila com caneta, tinta, tudo dentro, sem hesitação. − Queima! Queima!
O Eloko tamborila satisfeito sua barriga, mas ao tentar engolir outro aluno se contorce e regurgita. Cleidir conseguiu vaporizar os objetos, a tinta estava enfeitiçada. E dá certo, o resto de nevoeiro começa a retroceder para a árvore, que fecha suas flores de gancho.
A criatura, nesse momento, se vê aspirada para dentro do tronco da árvore, não aceita e tenta puxar um aluno. Lita o impede, jogando sua máscara na cara do Eloko − um improviso certeiro − e assim monstro e árvore desaparecem. Somem do mesmo jeito que apareceram.
De repente, uma chuva muito bem-vinda começa a cair.
Alheios, Lita e Cleidir comemoram. Nina chega logo em seguida para festejar.
− Conseguimos! Acabou! Acabou!
Os alunos acordam do transe, zonzos. Os do pátio não lembram por que estão ali e os trancados nas inúmeras salas não entendem, assim como seus professores e funcionários, como isso aconteceu.
Os três amigos estão definitivamente de alma lavada, mas não será tão simples escapar das consequências. Nina recebe uma mensagem via DameDame e bufa após ler. É destinada aos três amigos:
“Bom trabalho, aprendizes, vocês defenderam o Clã e nós contornamos a mídia, relatando que foi apenas um nevoeiro altamente atípico. Mas temos que conversar sobre as devidas responsabilidades. Aguardamos a presença dos três no Salão Octogonal da Biblioteca do Mali (Maali). Um semestre atribulado de estudos, muita limpeza e arrumação de livros vos esperam.
Att. O Conselho.”
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Lu Ain-Zaila é pedagoga. Autora afrofuturista das obras Duologia Brasil 2408: (In)Verdades e (R)Evolução, Sankofia, Ìségún e de contos publicados em diversas coletâneas. Escreve afrofuturos entre periferias metaforizadas ou não, mixando ancestralidades, cultura e história negra com a contemporaneidade das existências negras, incluindo artigos, ensaios e pesquisas.
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MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com a autora
Resenha - por Luiz Bras