Postado em 02/09/2021
22. Éramos agora duas houris brancas descendo a colina em direção às ruelas escavadas no lixo do Tiropeon, indo se misturar às outras dezenas de houris que seriam oferecidas ao deus pai.
23. No vigésimo quinto ano da administração do Preste João sobre Jerusalém do Mataréu, estávamos vestidas de branco com outras dezenas de mulheres no topo da Torre da Alegria quando os céus se abriram e vimos deus. Veio um vento tempestuoso do norte, com lâminas de fogo em seu interior, e do meio das labaredas ele se manifestou em carne.
12. Encontrei Das Dor anos atrás, pendurada de cabeça para baixo numa árvore branca. Dizia estar ali meditando havia muito tempo, desde que seus inimigos a prenderam. Libertei-a e permiti que viajasse comigo.
19. O drone me mostrou os Puros inspecionando os ônibus e as carroças. Na caçamba de um trator havia um grupo de mulheres cobertas com burcas brancas sendo conduzidas pela entrada. E mais vinham atrás. E mais ainda.
− As virgens estão chegando − disse Das Dor. − Nosso tempo está acabando.
1. Eu me lembro de correr por tanto tempo que o ar sujo entrava pelas frestas dos dentes meio tortos ou abria caminho silvando pelo muco do nariz. Não era o fedor de carniça, enxofre e lama que transformava a respiração em suplício: era a humilhação de morrer numa lixeira do tamanho do mundo, espancada por enxertados que se pareciam com seu deus-porco. Jerusalém era uma cidade interessante.
14. Foi o lento desaparecer de ambas que nos aproximou. Primeiro, amigas. Ocasionalmente, amantes. Mas irmãs acima de tudo. Trocávamos muitas histórias sobre terras, mitos e lendas. Contei que Jerusalém do Mataréu, quase do outro lado do sertão, testemunhava a encarnação de um deus de tempos em tempos. O deus que havia criado o mundo e tudo o que nele havia. E que esse deus operava milagres para todos os que conseguissem sua atenção. O deus que podia criar chuvas com suas máquinas voadoras. Das Dor acreditou na história, embora eu mesma não visse nisso mais do que um conto.
17. − Somos impuras agora. Como faremos para entrar na cidade e subir até o topo da torre? − perguntei.
− Passaremos pela cerca. Deve haver falhas elétricas em diversos pontos. O contrabando e as migrações clandestinas criam uma membrana porosa que o povo do Tiropeon sempre atravessa − respondeu Das Dor. − É mais gente para entrar do que Puros para impedir.
Os Puros eram todos iguais. O mesmo rosto, o mesmo corpo. Diziam que o Preste João produzia dezenas de clones de si mesmo nos porões da prefeitura, usando máquinas enormes parecidas com aranhas e úteros, mas era apenas mais uma história. Não havia energia o suficiente para uma coisa assim.
− Não gosto do seu plano − eu disse. Abri a porta traseira do carro e puxei meu baú de madeira.
− Tu já disse isso. Muitas vezes — Das Dor olhava na direção da Torre da Alegria, as mãos em concha sobre a testa. O sol se derramava nas paredes douradas do zigurate e atirava raios ofuscantes. Mas, no topo, nuvens começavam a se reunir, pastoreadas pelo vento frio, dançando ao redor das antenas de rádio que transmitiam o catecismo diário.
Tirei o drone do baú. Era feito de lata, plástico, quatro motores recondicionados, uma bateria de lítio e duas lentes para espiar as curvas do mundo.
18. O drone pairou acima da cidade, observando a feira de especiarias, os balões que as crianças carregavam, as ruas cheias, os carpetes santos, os cenobitas em colunas, peregrinos rezando, Puros fazendo ronda, dançarinas do ventre balançando véus, sacerdotes aspergindo água, bandas enchendo o ar de frevo, senhoras vendendo quitutes em cestas de vime, punguistas, jogos de aposta, bancas com pombos e coelhos sacrificiais para os mais pobres e bois para os mais abastados, tecidos, fuzileiros nas ameias com rifles de agulha, donzelas nas janelas, putas nas portas, filas de penitentes entrando pelo Portão Pérola, caravanas inspecionadas, pessoas do Tiropeon penduradas nas cercas pedindo esmolas e doces, a Torre da Alegria indo até onde a vista virava. O drone enxergou tudo e transmitiu para mim. As imagens desfilavam pela tela como um sonho que escapa pelo canto da lembrança.
− Todos querem respostas e milagres − Das Dor tinha os braços cruzados sobre o peito, indício da impaciência crescendo. Ela era uma mancha de nanquim contra o céu laranja, as franjas da burca voejando.
11. O caranguejo cada vez mais come o que há na minha cabeça. Ele lateja dentro dela. Quando a dor é demais, caio tomada por convulsões, como se todas as almas dançassem em meu interior. Minhas memórias se fragmentam, e assim também a realidade. Dizem que existe uma máquina capaz de fotografar por dentro do crânio. Me pergunto qual seria a aparência do caranguejo aqui dentro.
6. Esse carro me ajudou a cruzar o sertão inteiro. Eu mesmo o projetei e construí, usando velhas placas de metal e canos de cobre para fazer funcionar o engenho movido a cordas, manivelas, molas, gasolina e um pouco de eletricidade. Era uma jamanta compacta e dura, avermelhada pelas cascas de metais, e na parte dianteira havia o par de chifres de um touro enorme.
8. Das Dor brandia sua peixeira prateada com a leveza de uma pluma. Ela fez voar cutelo, punho e antebraço num esguicho vermelho. Mais um giro, e o mesmo porco perdeu a perna logo abaixo do joelho, indo ao chão como uma árvore abatida. A lâmina girou mais uma vez e abriu um talho molhado na garganta de um, cortou fora o topo do crânio de outro e foi descansar enterrada na barriga do último. Das Dor limpou o sangue da peixeira e virou-se para mim.
− Você me salvou quando estive pendurada no Cipreste Branco − ela disse. − Você andou comigo por um caminho de loucos. Não posso deixar que vá embora assim, meu amor.
13. Durante as crises, Das Dor não saía do meu lado. Ela se sentava sobre as pernas dobradas e esperava.
20. Há muitos anos, os drones semeadores de nuvens deixaram de voar. A chuva parou de saciar a sede do solo. Os rios tornaram-se fios de água marrom, disputados por povoados e coronéis. Rebanhos desapareceram. A semente não brotava mais, pomar não dava fruto. Os sertanejos diziam que era deus bafejando ar quente na terra para expiar os pecados. Outros diziam que um pulso eletromagnético tinha fritado os drones e ninguém mais sabia consertar. Eu havia escutado essas histórias sobre a seca que grassava até as enchentes do Tucuruvi e Iguaçu cobrirem os desertos por meses, irrigando-os e fertilizando-os com os aluviões arrastados pelas águas. Esse fenômeno só era possível pela graça de El, que descia dos céus em sua balsa aérea na Festa da Teofania e abençoava o mundo com seu esperma sagrado depositado nas Virgens Sagradas, erguendo o Cetro da Vida.
− Você precisa provar isso − disse Das Dor, ao se aproximar. Trazia um lagarto assado em um espeto. Ofereceu-o a mim. Mordi um pedaço grande. Gordura quente me escorreu pelo canto da boca e pingou no embrulho que eu segurava. O gosto era bom.
21. Pouco me importava com os olhares de reprovação das velhas, a cara espantada das crianças pequenas que testemunhavam a nudez da louca, porque só podia ser louca a mulher que não se envergonhava da própria pele exposta. A seguir, um movimento oposto: desembrulhei a roupa que carregava nos braços, uma burca de linho tão branca quanto as nuvens. Ao vesti-la, tornei-me um fantasma suave, uma crisálida em cujo interior apenas se adivinhava a forma de mulher. De minha carne apenas os olhos apareciam, por trás de uma pequena fenda em V na altura do rosto.
Virei-me para Das Dor e perguntei o que achava.
− É um pecado que esconda seu corpo − foi a resposta.
Das Dor balançou a cabeça. Sua burca tornou-se completamente branca diante dos meus olhos.
− Como fez isso?
− Tem muitas coisas sobre mim que você não sabe − disse Das Dor.
Dei de ombros, sem paciência para frases ocas.
4. Eu me lembrava de ter perguntado como uma cidade santa cultivava tanta imundície ao redor de si. Entendia que o sagrado abominava o que não fosse puro. Disse isso para Das Dor, que gargalhou por baixo de sua burca. Não era fácil ouvir Das Dor rir. Nas raras vezes em que havia testemunhado isso, pensei que a gargalhada dela era como uma trovoada de verão abafada pelos panos pretos, uma segunda camada da pele que nunca se expunha ao sol.
− Só há sagrado se houver o lixo, menina. De que outra maneira o reconheceríamos? – Das Dor disse. Fiquei pensando nisso desde que chegamos à orla exterior de Jerusalém do Mataréu, dois dias atrás. Brigamos pouco depois disso, sobre uma colina de lixo fumegante apenas a Torre da Alegria por testemunha, quase invisível por entre a fumaça da cidade mais além. Eu queria desistir. Agora que estava diante da cidade santa, minha coragem tinha anuviado. Ouvira dizer que não era possível ver deus e sobreviver.
Mas Das Dor, aquela mancha negra e esguia cujas franjas quadradas nos antebraços balançavam vivas ao sabor do vento, insistiu para continuar.
− Melhor morrer implorando diante da glória do deus de Jerusalém do que ressecar devagar sertão afora, pequena Pelagea. Ou ter a carne lassa da cabeça lentamente devorada pelo caranguejo, não é?
10. A Torre da Alegria: único lugar onde deus toca o mundo, manifestando-se em carne a cada jubileu das sete vezes sete semanas de anos para abençoar o povo, lançar o esperma divino que faria a terra ficar verde, os rebanhos procriarem e as mulheres parirem crianças saudáveis pelas próximas décadas. E o povo dos lixos exteriores oravam ainda mais alto, gritando ao Senhor que olhasse por ele e permitisse que algumas migalhas caíssem do altar.
2. As cordilheiras de lixo do Tiropeon se espiralavam como uma serpente se protegendo do frio ao redor de Jerusalém do Mataréu, aquela que atirava seu zigurate para os céus, furava a carne do azul e resplandecia, orgulhosa e sagrada, sobre o sertão do qual brotava como um cacto. A diferença entre a primeira cidade do mundo e a última cidade do mundo é a esperança.
3. Lá vinham eles, os Adoradores do Porco, gente cujos enxertos de carne não deram certo e viraram tumores, próteses que infeccionaram, harmonizações que destruíram rostos. Os que não podiam ver carne de mulher. Guinchando e roncando, girando boleadeiras e pedaços de pau com pregos. Corriam farejando o ar, narinas porcinas se abrindo e fechando. Atiraram uma azagaia. Ouvi o assobio quando ela me passou bem perto da orelha e foi se cravar na parede de lixo logo adiante.
7. O porco guinchou de dor e botou sangue pela boca. Soterrada sob sua carne, eu não enxergava direito o que estava acontecendo, apenas um baile de pernas furiosas sendo forçadas a recuar diante de tecidos pretos esvoaçantes.
15. Peregrinos e comerciantes contavam diversas histórias sobre aquela cidade. Algumas nem um pouco lisonjeiras, como a do velho repentista que tocava teremim no oásis de Santa Maria do Chamego, que disse que a adoração em Jerusalém do Mataréu era originalmente dualista nos tempos da energia nuclear, mas que El se livrou da consorte Axera para reinar sozinho. Ou que na verdade existiam duas Jerusalém do Mataréu no sertão, uma delas sendo uma armadilha do tinhoso para desviar os romeiros de deus, que talvez nem mesmo habitasse esta mesma realidade consensual.
16. Eu me lembro do céu tomado por pipas, balões coloridos e drones. Alguns eram do próprio Tiropeon, os mais feios e pobres; a maior parte, entretanto, vinha de dentro da cidade. As pipas eram enormes e variadas: dragões, serpentes, pássaros, formas geométricas, milhares delas abaixo do azul de Jerusalém do Mataréu. As festas estavam começando.
9. − Precisa confiar em mim, Pelagea − Das Dor parecia frágil agora. − O deus de Jerusalém descerá na Torre da Alegria para receber os dons oferecidos, em breve. Ele vai nos conceder sua cura.
− Não podemos ver a glória de deus e viver. Morreremos como um sacrifício, se você estiver errada.
5. Foi a partir daí que as palavras ficaram mais duras. Na briga que se seguiu, Das Dor insinuou o cabo de sua peixeira de dezessete polegadas para fora do negrume da burca. Meu coração se partiu em mil pedaços, incapaz de acreditar no que via. Desci a colina de lixo tropeçando nos pés, enquanto Das Dor gritava meu nome lá em cima, implorando que a gente não se separasse agora, não agora, não tão perto.
24. O deus do sertão parecia esculpido em granito, o corpo de leão alado enfeitado com placas de esmalte. A cabeça quase humana, dois olhos negros, um nariz largo enfeitado com argola de ouro, boca emoldurada por uma barba cacheada, o barrete de feltro digno de reis, algo felino em sua expressão, algo que combinava muito mais com o corpo quimérico do que com o rosto humano. Talvez fossem os movimentos elegantes e precisos de gato.
Caímos de joelhos diante de deus.
Ele escaneou a fila de mulheres houris com uma grade de luz esverdeada que brotou dos olhos artificiais. Farejava cheiros entre oceanos de cheiros, escolhendo a primeira oferenda. Quando ele parou diante de Das Dor, um sorriso cheio de deleite por entre a barba, ela sacou a peixeira. Com um golpe seco, fez a cabeça do deus voar pelos ares num esguicho de sangue. Eu não sabia que deuses sangravam. Nem que eram produzidos nos laboratórios genéticos do Preste João.
− Axera está vingada − bradou Das Dor, a burca salpicada de vermelho.
+ + +
Cirilo S. Lemos nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Foi ajudante de marceneiro, pedreiro, sorveteiro e astronauta. Depois de muitas viagens sem sair do lugar, formou-se em História e acabou metamorfoseado em professor. Vive cercado de palavras, arcanos, melodias, desenhos, uma garota falante e dois pequenos aprendizes, mas não sabe fazer mágica. É autor dos romances O alienado, E de extermínio e Estação das moscas (ainda inédito), além de diversos contos espalhados por aí.
+ + +
MATERIAIS EXTRAS
Entrevista com o autor
Resenha - por Luiz Bras