Postado em 02/09/2021
No aeroporto de Munique, aproveito para esticar as pernas e caminhar um pouco após o voo de quase doze horas saindo de São Paulo. Um voo insone, preenchido com a leitura de fichas e projetos. Depois desta escala, mais um voo de pouco mais de duas horas, o mesmo tempo de carro e chegarei exausta no destino. Mais de um dia de viagem contando desde Foz do Iguaçu. Sem saber meia palavra de alemão, consigo me guiar com a ajuda das placas bilíngues em russo.
Meu russo não é perfeito, e apesar de ter seguido estudando após o segundo grau, tenho alguma dificuldade especialmente em conversação. Me disseram que não seria tão importante na área de Engenharia Ambiental, mas graças ao russo, e também a alguns estágios, consegui meus cargos no Ministério do Meio Ambiente, e agora no de Minas, Energia e Infraestrutura. E hoje viajo ao exterior pela primeira vez, substituindo às pressas o meu diretor. Me ligaram no meio da noite, ele tinha sofrido um infarto e estava hospitalizado, em observação. Em poucas horas arrumei a mala, peguei as anotações dele com a filha e corri para o aeroporto. Alguns dos projetos eu acompanhei de perto, e algumas propostas eu só vi por alto. A semana será longa.
A comunicação na lanchonete do aeroporto é um pouco mais difícil, seja pelo meu sotaque ou o do solícito caixa: um rapaz loiro de olhos claros como a maioria aqui. Eu sou a maior exceção com minha pele castanho-claro avermelhada, olhos castanhos e cabelo de um preto profundo, azulado, amarrado num coque. Entre palavras quebradas e mímica, consigo um copo grande de cerveja e um pão com linguiça. Antes de partir, fui alertada que enjoaria de comer pão e batata na próxima semana e parece que o cardápio já será este bem antes de chegar à União Soviética. No televisor, uma jovem repórter tem suas falas empolgadas intercaladas com vídeos da queda do muro de Berlim. Já se vão vinte e cinco anos e parece que 1989 foi ontem. Lembro de ainda criança ver no telejornal as imagens de como a Alemanha Oriental recebeu de braços abertos a Alemanha Ocidental no processo de unificação. Verificando a hora no grande relógio analógico acima da televisão, me apresso. Próxima parada, Kiev!
No aeroporto internacional de Kiev, um rapaz muito branco, moreno de olhos azuis e uniforme militar me aguarda com uma placa na mão: Dra. Lúcia Ferreira da Silva. Me identifico e ele se apresenta: Yakiv Nudylo, o motorista responsável por me levar até o destino. Pergunto a hora local para acertar o relógio de pulso e me adaptar logo, resistindo a fazer as contas de fuso horário. O céu está limpo, mas o brilho do sol ucraniano é insuficiente para espantar o frio. Mantenho o casaco que vestia no avião. O auge do verão soviético era pouca coisa mais quente que meus invernos.
Observo a estranha paisagem pontilhada de plantas desconhecidas no caminho para Pripyat. Leio as placas subvocalizando de forma discreta, e repasso mentalmente os detalhes das apresentações e a programação do evento: a VII Cúpula Mundial de Matrizes Energéticas. Todos os países alinhados à União Soviética enviaram representantes. Não sei se foi sorte ou azar eu ter vindo. A construção de mais oito usinas nucleares no Brasil está em jogo e precisarei ser habilidosa para convencer os soviéticos a cederem mais mão de obra e tecnologia. Meu objetivo tem uma margem de segurança: se fecharmos em cinco usinas está bom o suficiente. Pripyat, a Cidade do Átomo, se aproxima com seus icônicos conjuntos habitacionais padronizados. No Brasil, algumas cidades os adotaram com poucas adaptações devido ao nosso clima mais quente.
O cronograma é apertado, mas mesmo assim inclui visitas ao Museu Nuclear e à usina-modelo de Chernobyl, onde foi descoberto e aprimorado o modelo de usina C-123.47 e os reatores de terceira e quarta geração. Cresci ouvindo histórias sobre estes avanços e por pouco não me tornei engenheira ou física nuclear. De certa forma, fui um pouco para esta área em meu doutorado.
No dormitório, me apresentam a minha colega de quarto dos próximos dias: uma física tchecoslovaca baixinha e com óculos grossos chamada Vlasta Svoboda. Trocamos poucas palavras em russo enquanto nos preparamos para a cerimônia de abertura.
O desfile militar é rápido, mas nem assim prende a minha atenção: estou mais interessada nas arquibancadas, em identificar entre o público os membros do comitê que precisarei convencer.
Seguimos para o auditório, onde uma apresentação do Coro do Exército Vermelho antecede aos discursos das autoridades locais. Enquanto as vozes potentes dos cantores trazem os últimos acordes da Korobeiniki, um painel com um imenso mapa-múndi é desfraldado ao fundo do palco. Nele, coloridos em vermelho, todos os países signatários do Pacto de Pripyat, e em laranja os observadores. A América do Sul me enche de orgulho: a área vermelha engloba Brasil, Chile, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela e Guiana. Sonho com o dia em que o Paraguai esteja também colorido. Na África, o vermelho cobre boa parte das costas oriental e ocidental e alguns países do Norte. Isso me lembra da mesa redonda de que participarei com os companheiros de todos os países lusófonos, com exceção de Portugal. Mais uma mesa para a qual não me preparei. Serão dias difíceis, espero que bebam café por aqui.
No percurso do auditório ao refeitório, observo os reflexos dourados e avermelhados do pôr do sol e imagino que seja algo entre seis e sete da noite. O relógio me diz que já são quase nove, a ardência em meus olhos que é alta madrugada e o buraco em meu estômago que é a hora do almoço.
Na minha mesa, se sentam alguns cientistas soviéticos, chineses e do sudeste asiático. Sou a mais nova. Não da mesa, mas do refeitório. Incapaz de acompanhar a conversa de nativos e de lidar com sotaques carregados, participo com monossílabos e frases curtas e me concentro na comida. Pra piorar, estou em uma mesa de entusiastas de energias alternativas e ditas renováveis. Como primitivos, se encantam com o vento e o sol, enquanto já domesticamos o urânio e logo nos encaminharemos para o stellarator ou a fusão a frio. Se tivesse ficado na mesa dos camaradas africanos, poderia conseguir algum apoio para pressionar os soviéticos, ou ao menos uma conversa mais descontraída em português.
Resistindo ao impulso de desabotoar a calça, raspo o molho do strogonoff do prato com um pedacinho de pão e me deixo esticar na cadeira. O vozerio das mesas preenche o salão com animadas conversas em russo. Cansada do esforço de entender e me fazer entender no idioma estrangeiro, e zonza com tanto vinho, solto num suspiro quase inaudível:
− Nossa, comi que nem padre.
− Come padre? O que significa isso? − pergunta com sotaque carregado a cientista russa sentada ao meu lado, que tinha passado quase toda a noite calada.
− Ora, você fala português? − Me aprumo na cadeira, prestando nova atenção à minha vizinha, a engenheira eletricista Yekaterina Azarova, enquanto tento explicar a ela as expressões idiomáticas brasileiras de origem católica.
Satisfeita com minha explicação, ela desenrola muito bem o português, apesar do sotaque. Me explica que já foi casada com um brasileiro e chegou a morar um tempo no interior de Minas Gerais. Quando a conversa vai para o trabalho, encontro logo algumas divergências. Yekaterina é entusiasta da energia hidrelétrica e a depender dela seu país incorporaria mais hidrelétricas na matriz, ao passo que eu… vivo as consequências de Itaipu. Além de todo o impacto ambiental direto da cobertura das águas, também perdi meu avô aos três anos de idade no acidente da ponte no Salto de Sete Quedas causado pelo enchimento da represa. Se tivéssemos acesso às usinas C-123.47 naquela época, quem sabe a hidrelétrica não seria desnecessária e eu poderia ter meu avô ainda aqui?
Enfadada após tantos voos, eventos e vodca, me despeço de Yekaterina antes que nossas discordâncias gerem atrito, e sigo para o alojamento. Desorientada entre as horas e fusos, penso em ligar para o Brasil, mas nem sei como fazer isso e muito menos as horas lá. Escovo os dentes e observo a água escoar pelo ralo. É isso, tenho que aproveitar esta oportunidade! O sono me abandona e dá espaço a uma ideia que percorre meu corpo como uma corrente. Uma ideia ousada, talvez tão ousada quanto as dos pioneiros da Cidade do Átomo. Preciso fazer cálculos e projeções, e tem que ser agora. Minha colega de quarto ressona com o vigor de quem bebeu dois ou três copos de vodca a mais do que deveria, e para não incomodá-la sigo para a área de convivência com meu notebook. Na falta de um bom café me contento com a alternativa local, um chá preto bem forte. Para acompanhar, mapas, diagramas e planilhas.
O nascer do sol indica um novo dia, mas ainda faltam algumas horas para o café da manhã ser servido. Corro para a cama com a cabeça a mil, mas com a esperança de dormir três ou quatro horas antes do primeiro compromisso da manhã. Preciso de no mínimo catorze usinas. Deveria falar com Brasília, mas não é prerrogativa do cargo ao qual represento algum grau de autonomia? Durmo decidida a pedir perdão ao invés de permissão. Seja o que Deus quiser.
Talvez o meu russo travado na noite anterior fosse excesso de sono, falta de costume ou ausência de vodka e chá preto. Ou de um forte objetivo. Ou tudo isso. Sou outra mulher: navego entre os eventos e mesas, deslizando de um círculo a outro no primeiro dia de evento. Apresento os relatórios e a atual estrutura de nossa matriz energética com poucos deslizes, e sou elogiada por todos. Enfatizo a necessidade de uma estrutura descentralizada com usinas de pequeno porte devido à extensão territorial brasileira. Assim lanço a semente dos argumentos que retomarei amanhã para defender a liberação da instalação de um número expressivo de usinas no Brasil.
Para recobrar a insônia da noite anterior, evito a confraternização no fim do dia. Com o céu ainda claro fico na cama imaginando conversas futuras. Em dois dias terei conversas cruciais e uma resposta que poderá alterar radicalmente a minha região, o Brasil e sua relação com países vizinhos.
No segundo dia já consigo identificar com facilidade as pessoas com quem posso contar. Cheguei a comentar detalhes do meu plano com os companheiros de Moçambique e Angola após nossa mesa redonda, atraindo a simpatia de um e a desconfiança do outro. Estou escalada para o grupo que fará as visitas guiadas hoje, e aproveito cada momento para gastar meu russo e minha simpatia com os representantes de outros países. Amanhã apresentaremos nossas propostas, e pedirei dezessete usinas. Catorze mais a margem de segurança.
Chega o grande dia, e com ele a assembleia. Todos os países tentam tomar um pouco dos recursos humanos e tecnológicos da URSS para si. Eu não sou diferente em minha defesa apaixonada da energia nuclear e de como é essencial ao desenvolvimento do Brasil. Insisto no rótulo de país continental, algo que não impressiona em nada os soviéticos ou os chineses, mas comove com facilidade os delegados de paisecos sem território ou população relevante. Enfatizo a implantação de grande quantidade de usinas como algo vital ao povoamento de regiões isoladas e à criação de polos biotecnológicos, que por sua vez beneficia a comunidade socialista internacional. Apresento a preservação ambiental não como antagônica ao progresso, mas complementar se facultada pela energia nuclear.
Sigo falando de forma sutil de nossa influência na América do Sul e nos países lusófonos da África. E de forma menos sutil do Paraguai. A noite mal dormida e os ensaios mentais a cada intervalo entre reuniões, palestras e refeições mostram seu resultado e consigo mostrar com segurança os mapas, tabelas e projeções. Minha demanda são vinte usinas. A contrapartida são o aumento de nossa influência no Paraguai, enfraquecendo a sua matriz energética, e a reversão de impactos ambientais de hidrelétricas, especialmente Itaipu. Finalizo com um vídeo antigo do Salto de Sete Quedas, cujo restauro pode ser um presente nosso para o mundo. Afinal de contas, o turismo é uma indústria sustentável, reforço sem acreditar muito.
Quebrando o protocolo, alguns camaradas aplaudem. Percebo Yekaterina revirar os olhos. Apesar da pressão dos delegados, somos apenas um corpo consultivo, e quem decide são os soviéticos, a portas fechadas. A tarde de espera será longa.
− Belas palavras, mas ouso discordar de você em diversos pontos. − Yekaterina se aproxima de mim durante o almoço, compenetrada. − Uma diversificação da matriz poderia ser mais interessante do ponto de vista estratégico.
− A represa da usina seria esvaziada, mas ela continuaria lá. Poderia ser reativada caso necessário. Na época das chuvas o lago se encheria em poucos dias. − Largo o garfo ainda espetado em uma batata no prato.
− Interessante, mas não é bobagem abrir mão desta produção de energia neste momento? − Ela puxa uma cadeira e se senta de frente para mim.
− Creio que o retorno no turismo e o efeito positivo na recuperação da área de represa compensará com sobra. Eu projetei uma área para reflorestamento e outra para agricultura de forma a tirar proveito do solo fértil, rico em sedimentos. Eu não apresentei todos os dados hoje pela restrição de tempo − blefo, já que este desdobramento eu apenas teorizei, mas em momento algum estimei as consequências de forma quantitativa.
− Mas o número de usinas necessárias é muito elevado e…
− É exatamente este o objetivo − interrompo −, descentralizar a rede e ter uma dependência menor de linhas de transmissão a longas distâncias. Isso inclusive torna o sistema mais robusto em caso de ataques. Com a Argentina nunca se sabe.
A conversa se desenrola por quase meia hora. Não me recordo da última vez em que fui envolvida em uma conversa tão intelectualmente estimulante, acho que foi na minha defesa de tese. Se ela não sair convencida da minha proposta, pelo menos entenderá meu ponto. Trocamos contatos para que eu envie a ela uma cópia de minha tese sobre a comparação dos impactos de usinas nucleares, hidrelétricas e termelétricas, e quando digo que parto no dia seguinte, juro que percebo um certo ar de desapontamento.
À tarde, consolidamos os relatórios dos grupos de trabalho, mas minha mente insiste em vagar até a sala onde se reúnem os soviéticos. Alguns colegas vêm me parabenizar pela proposta da manhã e por meu afinco na defesa da energia nuclear. Minhas idas ao banheiro são a desculpa para observar a porta da sala de reuniões.
Pouco depois das dezesseis horas, as portas se abrem e me surpreendo ao ver Yekaterina saindo de lá. Enquanto seguimos todos para o auditório, me aproximo dela e pergunto em português:
− E aí? Aprovaram minha requisição?
− Eu fui voto vencido − ela diz, resignada, e me entrega um cartão com um número escrito à caneta vermelha. − É meu celular pessoal, me escreva assim que a cerimônia de encerramento acabar. Quero conversar com você. Sem conflito de interesses. − Ela pisca e se afasta conversando alto, em russo, amenidades com os outros membros do comitê.
Me sento no fundo do auditório lotado para acompanhar a comunicação das propostas contempladas e o plano de desenvolvimento para os próximos três anos. Se Yekaterina foi voto vencido, negaram minha concessão, a não ser que ela tenha votado contra. Não consigo decifrar a fisionomia dessa mulher e muito menos sua piscadela. De qualquer forma, a procurarei. A palavra Brasil ecoa nos alto-falantes e corta minha linha de pensamento.
− Brasil. Concedida permissão de transferência de tecnologia e emprego de mão de obra soviética para a implantação de quinze usinas.
Quinze. As catorze que precisava e mais uma de brinde. Aplausos entusiasmados. Um passo importante e definitivo em direção à conversão total de nossa matriz à energia nuclear será dado em poucos anos. Adeus, hidrelétricas! Procuro os olhos de Yekaterina na bancada, e quando eles cruzam com os meus, ela sorri e faz um gesto de telefone de forma sutil. Sorrio de volta, sinto minhas bochechas esquentarem e aponto para o meu telefone. Agora sim, sem conflito de interesses.
Meu avô, esteja onde estiver, deve estar sorrindo também.
Demorou, mas vou devolver o Salto de Sete Quedas a ele.
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Thiago Ambrósio Lage é um professor e cientista mineiro, hoje morando no Tocantins. Ele escreve textos de fantasia e ficção científica que já foram publicados em sites, na primeira edição da Eita! Magazine, e na coletânea de contos de ficção científica de autores LGBTQIA+ intitulada Violetas, unicórnios & rinocerontes, lançada pela Patuá Editora.
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Entrevista com o autor
Resenha - por Luiz Bras