Postado em 14/09/2021
Parte 1
O despertador tocou. Era 6h15. Um dia sempre começa normal se alguém não te liga de madrugada para dizer o contrário. Escovar os dentes, arrumar a cama, tomar café. Andar com a fé. Mais um dia e o tempo todo disponível não para mim, mas para os outros.
A caminhada começou. Era 7h15. Não se falava tanto, mas se ouvia muito. Muita buzina, muito barulho. O caminho era sempre longo, dava tempo de refletir. A proposta da mãe, o almoço com o pai, o vizinho de baixo e o problema no banheiro. Restaria tempo para tanta coisa?
O trabalho começou. Era 8h15. Até quando seria possível aguentar aquele chefe, a sala abafada, o telefone que não parava de tocar. Seria bom ficar em casa, ter um tempo de descanso. Tempo. Existe mesmo essa coisa de tempo?
Já era hora do almoço. 12h15. A reunião no fim, o negócio fechado, a luta diária para garantir um salário no fim do mês. Olho o celular. Nenhuma mensagem, de ninguém. Pudera, meu tempo vai todo para o trabalho. Queria eu ter tempo para encontrar alguém, fazer amigos.
Sem tanto tempo para o almoço. 12h30. A tarde seria longa, o almoço mal digerido, as despesas de casa, uma mensagem. Se eu iria ver hoje o vazamento no banheiro. Ah, o vizinho. Não quero saber de banheiro. Veja você. Não posso dizer isso. O vazamento vem de cima. É comigo. O encanador precisa ir em casa. Mas preciso estar lá. E não tenho tempo.
Hora de ir embora. 17h30. Queria eu sair do trabalho e chegar em casa como num passe de mágica. Mas não é assim. Vou caminhando. A tarde é pior que a manhã. Tem gente cansada. Tem muito mais buzina, muito mais barulho.
Preciso ver o banheiro. 18h30. Ligo para o encanador. Só amanhã, 15h. Não posso. Trabalho. Moro longe. Não consigo dar um pulo em casa para resolver o problema. Toc toc. É o vizinho. O banheiro. Negociei meu tempo, o encanador vem 9h.
Ligo para meu chefe. 21h30. Não tem jeito. Terei de faltar no trabalho amanhã pela manhã. Preciso do encanador. Desconto no salário. Sem vale-alimentação. 100, 200 reais. Ninguém faz nada de graça para ninguém. Estou literalmente vendendo meu tempo.
Vou dormir. 22h30. Tempo. Me faltou tempo. Amanhã vai ser diferente.
Parte 2
Despertador.
Trabalho.
Celular.
Caminhada
Escritório
Barulho.
Silêncio.
Casa.
Lockdown.
Computador.
Máscara.
Teletrabalho.
Pandemia.
De repente, havia tempo demais e coisas de menos.
Parte 3
E lá se foi um ano. O primeiro mês foi assustador. Depois, mais ainda, mas tivemos que nos acostumar com os absurdos de quem comandava o país. Já se morria muita gente no exterior, mas brasileiro demora para acreditar naquilo que não vê. Conseguiram politizar saúde, vacina, isolamento social. Vem da China, não vem. É de laboratório, não é. Sem consenso, padecíamos.
Aliás, padecemos. Se uma pessoa já é o suficiente para indicar uma derrota, quem dirá 500 mil. Irrecuperáveis. Tanto quanto o tempo que perdemos. Quem acordou na pandemia com 28, já tem 30. Tem gente que acordou solteiro e está casado. Outros, com pais e estão órfãos.
Quanto custou? Quanto vai custar? Parece que tiramos de férias mais de 14 meses de nossas vidas sem podermos aproveitar. Trancados em casa, apesar dos que saíram e aglomeraram.
Trabalho? Alguns puderam de casa, outros não. Desemprego. Economia ou a vida? Nem um, nem outro. O plano é acabar com tudo mesmo. Salve-se quem puder, neste nome a Globo acertou sem querer.
O tempo. Ah, o tempo. Não há mais. Nem tanto. Não importa quem se cuidou ou deixou de se cuidar. O tempo não volta. Tem tempo que nem chega em tantos casos. O vizinho, o chefe, o banheiro, o escritório, a casa ao lado, o almoço com o pai, a proposta da mãe. Teve coisa que deu tempo. Tem outras que não terão mais tempo.
E aí, o que a gente pode fazer? Viver com o que sobrou, é claro. Afinal, quem mais se importa conosco quando se pede propina em vacina?
Jorge L. P. de Freitas nasceu em Guaraçaí, interior do estado de São Paulo, em 23 de abril de 1993. É mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Franca), local em que também se graduou em Relações Internacionais. Freitas é funcionário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e autor do livro de suspense "Katherine", lançado em 2021, que pode ser encontrado em seu instagram @jorgelpdefreitas. Além disso, é apaixonado em ver e debater futebol. Suas centenas de crônicas esportivas podem ser encontradas nos sites ‘No Ângulo’ e ‘Meu Timão’.
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