Postado em 31/08/2021
Alban Berg
Suíte da ópera Lulu
Rondó (Andante e Hino)
Antes de contaminar a história com a viva imagem do cadáver – e antes de contar como perdi Tudo –, direi uma palavra sobre a droga mais perigosa, que destruiu mais vidas que a guerra, mesmo as que ela mesma causou.
O amor, claro.
O que há de mais desejável e venenoso no Universo? Nascemos dependentes dele. Era uma vez uma coisa informe em uma esfera de líquido amniótico, incapaz de descrever-se e descrevê-la. Segundo Freud, o pensador que os neurocientistas queriam anular, ali já existe o elo que não termina com o corte do cordão umbilical. Não senhor. Para Freud, este é o papel dos espelhos. O reflexo é o instante em que a criança cogita ser um ente separado da mãe. Daí a mística sobre tudo que reflete ou projeta.
As formas de amor e desejo, e quero falar de um tipo único, mas universal, são coisa herdada. Mais antigas que o mais antigo antepassado de nossos antepassados. Porque o australopiteco de quatro milhões de anos tinha glândulas, eu, aos vinte e um, já não tenho futuro.
O fim começou com quinhentos milhões de espermatozoides em um oceano viscoso e ácido. Quinhentos milhões de possibilidades de existir e aqui estou eu. Era baixinho, tinha 2,7 milésimos de milímetro, e nadei contra a corrente em velocidade equivalente a mil e oitocentos metros por minuto. Superei a exaustão, sobrevivi à corrosão dos ácidos e à reação letal do sistema imunológico. Ao fim da jornada, no interior da trompa deparei uma esfera flutuante. Um planeta encouraçado oitenta e cinco mil vezes maior que eu. E de novo o amor, pois, seduzido pela química, me arrojei contra a superfície. Secretei uma enzima e transpassei a blindagem em vinte minutos. Penetrei o óvulo, implodi minha cabeça, derramei a informação genética do pai que sempre detestei sobre o material genético da mãe que me detestava. Nove meses mais tarde, quando o oceano materno se rompeu, um gesto inflexível causou a dor que transformou um peixe em um homem.
Foi assim para Michelangelo, que pintou o Juízo final. E para Hitler, que tentou consumá-lo. Foi assim pra você e pra mim, que aceitei o trabalho de Eurigânia: entregar o cubo holográfico que me arruinou. Sim, Eurigânia existe, eu a vi. E sim, a culpa é minha, assumo.
Na Idade Média o amor era compreendido como doença. Hoje, a enfermidade é a minha razão de viver: Madu. Se Platão e Nietzsche estão certos sobre o Eterno Retorno – no popular, que as coisas hão de se repetir algum dia, pois as infinitas combinações da matéria e energia do Universo são, de fato, limitadas – por que não supor o momento da perfeição?
Então, Madu.
Não posso descrevê-la. Os que existem em sonho às vezes sequer têm rosto. Mas no sonho a gente sabe, aquela é a pessoa mais resplandecente que já viveu, antes e depois de Platão. Madu é Tudo. Seria mesquinho tentar representá-la. Limitar o seu existir onírico a uma forma, um tom de pele, uma cor de cabelos ou de olhos.
Entrei em pânico quando avistei Madu pela primeira vez. Foi em uma festa controlada ao mesmo tempo por drones do Regime e da milícia. Ela vinha em minha direção fazendo rir a irmã de uma amiga, a cinco segundos de nosso primeiro contato. “O que eu digo, meu Deus? Qual é mesmo o meu idioma?” Do jeito mais espontâneo, Madu observou a prótese de minha mão esquerda e antebraço. A velha Fides modelo Vinculum. Eficaz, mas toda lascada, amassada e remendada com polímero termorretrátil. A tatuagem em b-neon eu mesmo fiz, disfarçando uma fissura impossível de soldar. Ao invés de virar o rosto, vomitar ou correr, Madu sorriu. E elevou a voz para se fazer ouvir acima do Berg’n’roll dodecafônico pesado.
– E você, quem é?
Eu poderia ter dito meu nome, que repetia há muitos anos sem gaguejar, mas fugiu. O chão, o teto e o céu estrelado acima de nós também fugiram. O que me veio – e veio por acaso – não era meu. Foi o disparo mnemônico do implante de controle do distúrbio neurovegetativo. Uma coisa que li e ficou armazenada no cangote.
– “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Entendeu? Refleti um poeta chamado Álvaro de Campos, espelho de um poeta chamado Fernando Pessoa. Em uma ciranda fora do tempo, a poesia nos tornou um. E o que faz uma garota de dezessete anos ao ouvir um nerd recitar um poema do século vinte?
Sim, ela também se apaixonou.
* * *
Todos os amores do mundo são um único amor. Depois de mil e uma histórias, a noite do rei Shahriyar e da rainha Shahrazad é a mesma dos Joãos e Marias. O Eterno Retorno. De novo, de novo e de novo.
Madu, a eternidade é pouco. Mas eu abreviei e destruí tudo.
* * *
Uma tia me criou. Ela é gerente de um bureau de impressão 3D com gel de cristais de carbono. Uma oficina modesta, de um só robô. Há uns cinco ou seis anos a máquina sofreu uma síncope. Eu tinha o kit de mecatrônica, mas não a habilidade. Perdi metade do braço, mas ganhei a prótese Fides Vinculum. Sem pretender fazer graça, de segunda mão.
Em segredo ou sob o sol neoplásico do meio-dia, todo mundo tem do que se envergonhar. Eu tinha a Fides. Agora, na retrospectiva de quem cancelou o futuro, entendo a futilidade de meu embaraço. Digo, percebo o ridículo do meu Eu de ontem, que caiu na tentação que me arruinou.
A torre em que eu e minha tia vivíamos é o modelo do Estado Mínimo. Uma zona de exclusão de cem andares. O cortiço ordinário ao Sul do Equador fincado no abandono dos distritos de lixo industrial e reciclagem. A gente se tranca em casa e reza para que o fedor, o gás e as toxinas não penetrem as frestas. E reza um pouco mais para que o aço bismarque da porta resista ao inesperado. Quando o mediaone no relógio vibrou o holo do Movimento 13 de dezembro, atendi antes de pensar em como descobriram meu linque. O Movimento é a milícia local. A dádiva do Rio ao desespero da região.
O rapaz no holograma era um ex-colega de escola. Em férias há quinze anos, mas a gente se esbarrava nos elevadores. Me chamou pelo apelido de infância.
– Fala, Calro, meu chegado. – E tossiu com tanto ímpeto que precisei esperar. – Não tenho… te visto…
– Fala, Jão, que tosse é essa? Vi tua mãe outro dia.
– Eu sei. Ela tava com a bolsa pesada… e tu carregou pra ela.
Mais tosse, outra espera. Decorrência de um sintético novo, bit-bit-ricochete. Efeitos colaterais graves, mas dependência controlável. Em tese seria possível parar, desde que parar fosse melhor que morrer. Nem sempre era.
– Calro, abre a mente. – Jão se apressou enquanto a tosse tomava fôlego. – Não esqueço de ti, nem da tua consideração pela pessoa da minha mãe. Ela sempre fala “Calro isso, Calro aquilo”. Então, guó wài, pintou uma prótese de mão esquerda. Venchuga. Coisa de rico, lincou? Uma dívida, não é da tua conta. O guó wài da prótese raqueou a Venchuga. Quer? É tua. Se tu der sorte, já sai daqui tirando meleca. Mas tem que falar com a patroa.
No que a tosse cobrou o intervalo, avaliei a questão. “Venchuga” era Wen-Chung à luz da evasão escolar. Um Cadillac de quatro Telencéfalos em forma de dedos e polegar opositor. Bernini não teve coisa melhor para esculpir o Êxtase de Santa Teresa, não sei como conseguiu. Isso significava algum abastado perdendo o Rolex e a mão que usava o Rolex. Eu quis a prótese como se a vida dependesse disso. E, naquela hora, dependia. Com a Wen-Chung eu conquistaria o mundo, tomando a mão direita de Madu como se fosse cristal ou algodão.
O problema era falar com a patroa. Eurigânia. Tão blindada e clandestina que, diziam, não existia. Era o nome de um Colegiado de gente de poder, do verdadeiro Poder, que habitava muito longe dos distritos de lixo industrial e reciclagem.
Aceitei antes do Jão parar de tossir.
* * *
Eurigânia era uma Afrodite coberta de varizes. Quando me tiraram a venda, depois de um circuito de duas horas em curvas, me pareceu mais bela que as duas garotas seminuas aos seus pés – as Helenas de Eurigânia. Ela também me fez perguntas em curva, interrogando sem sair do lugar. Em resumo, havia um dronecar discreto, comprado segundo os costumes, que poderia ser guiado por uma criança. Como a criança chamaria atenção, lá estava eu, que fazia as entregas do bureau de impressão desde os dezesseis – sem um bit no registro de controle. Eu só precisava atravessar a cidade e entregar o cubinho holográfico em um distrito seleto. Um centímetro cúbico de vidro nanoestruturado, nada mais.
Saí pilotando o dronecar com a Wen-Chung, pronto para esculpir outro Moisés.
* * *
Voei em média altitude ouvindo Berg’n’roll dodecafônico. Respirando e pensando em Madu, dois processos involuntários que gravitam entre si. O que Madu estaria fazendo? Pensando em mim com igual intensidade? Por isso eu a sentia tão perto?
Distraído, dronecar no automático, não percebi o VTOL dos pretórios, a polícia aérea.
As forças do Regime me abordaram sem teatro. Solicitaram acesso, eu liberei, e o próprio VTOL me conduziu à plataforma de apoio duas milhas depois. A Wen-Chung era coisa fina, discreta, os guó wài nem repararam. Escanearam os registros do dronecar, minha retina, e desejaram um bom voo.
Eu esperava o sistema Circuito de Tráfego do Rio me realocar quando o líder notou o sangue que gotejava. Os pretórios abortaram o voo, abriram o bagageiro, me algemaram e apontaram o cadáver. Um homem nu, percorrido por linhas azuis ramificadas como relâmpagos e em relevo na carne. Inchado, drogado e torturado até a morte.
No toco do braço esquerdo, uma laceração horrenda confessava o roubo da prótese.
* * *
Escrevo a lápis em papel comum. O carcereiro vai entregar à minha tia a preço de ocasião. Impossível contrabandear um mediaone. Amanhã serei revistado com escâneres moleculares antes de seguir para o presídio. Onde, tenho certeza, serei recebido por associados do Movimento 13 de dezembro. Custei a compreender a profundidade em que afundei. O visível não é mais que um reflexo.
Repeti os fatos mais vezes que Shahrazad contou histórias. Não adiantou. A vítima era o herdeiro de um dos laboratórios químicos mais importantes do país. Fornecedor do Regime e, corre o boato, das milícias. Assim, concluiu o promotor, transferi milhões para uma conta que só existiu por meia hora. Roubei a prótese incriminadora porque sou ganancioso e burro. E calei os nomes dos meus comparsas por medo ou ambição, o juiz não decidiu.
No primeiro interrogatório, de madrugada, por um momento fiquei a sós com um tal “Inspetor Yin”, dá pra acreditar? Eu falava de Eurigânia quando ele me interrompeu – me chamando pelo apelido de infância.
– Calro, entenda uma coisa. Eurigânia não existe. É o código do grupo que controla a milícia.
– Como não existe? Eu falei com ela. Uma mulher nova e cheia de…
Ele sorriu.
– Eurigânia não existe porque é viva. Aprendeu muito cedo a dividir. Entendeu¸ guó wài? Acabou pra você. – E acrescentou, entredentes. – No budismo, a causa da morte é o nascimento. A gente não escolhe nascer, Calro. Mas se você escolher passar por isso que nem homem, as mulheres da sua vida vão viver muito mais.
* * *
Tudo é Nada sem Madu. A consciência de que nunca mais a terei me anestesiou. Só me permitiram falar com ela uma vez, pelo resguardo de alumina que fundia nossos reflexos. O desespero em seus olhos era maior que o meu. Nada nem ninguém já foi olhado assim. Nem o céu nem as estrelas. Nem antes nem depois do australopiteco.
Segundo o promotor, as razões que me moveram estavam no cubo holográfico. Imagens de Madu. Dias, semanas, meses de imagens de Madu que eu jamais gravei.
Espelhos do capricho de Eurigânia, que desejou outra Helena.
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Ricardo Labuto Gondim é teólogo e escritor. Autor dos romances B, Corrosão (Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2019) e Pantokrátor.
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Entrevista com o autor
Resenha - por Luiz Bras