Postado em 30/08/2021
ARTISTA GOIANO SEMEIA OBRAS QUE FAZEM
REFLETIR SOBRE A RESPONSABILIDADE SOCIAL
DE SER E ESTAR NO MUNDO
“Eu lembro mais das coisas que pintei do que das coisas que vivi”, diz Siron Franco no documentário Siron. Tempo sobre Tela (2018), estreia da programação do SescTV. Dirigido por André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos, que costuraram a narrativa a partir do arquivo pessoal do artista e de filmagens que realizaram acompanhando-o numa temporada de trabalho em Londres, o filme joga luz sobre este que é um dos mais importantes pintores brasileiros de todos os tempos, nas palavras da crítica e historiadora de arte inglesa Dawn Ades. Nascido em 1947, na cidade de Goiás, Gessiron Alves Franco, conhecido como Siron Franco, é autor de pinturas, esculturas e instalações que contestam a violência, a degradação ambiental e outras questões sociais.
Reconhecido internacionalmente e premiado em bienais de arte, tem obras em museus, galerias, espaços públicos e no Acervo Sesc de Artes. Durante a pandemia, Siron Franco segue investigando novas formas, materiais e temas em seu ateliê na cidade de Aparecida de Goiânia (GO), onde reside. Foi de lá que ele participou, por videochamada, da seção Encontros e mostrou novos trabalhos, como uma série de pinturas rupestres em corpos humanos e a instalação Ressurreição (2020). “Eu não tenho pretensão. Acho que cada artista é tragado por alguma coisa que o leva. Ajo como cidadão. Acho que o cidadão, seja artista ou não, está aqui, está pagando imposto, ele está neste planeta, sendo alimentado por esta terra”, revela.
QUANDO MENINO
Vou começar com o dia em que nasci, em 1947, dia 25 de julho, na cidade de Goiás. Dois anos depois, minha mãe se mudou para Goiânia, mas meu pai não queria, porque Goiás é uma cidade muito bonita, cheia de igrejas e obras de arte. Então, nas férias escolares eu voltava para lá com a minha mãe e passava um mês, praticamente. Goiânia era uma cidade em construção, um art déco tardio, mas muito bonita, muito limpa, muito clean. Eu fui começando a ver uma diferença cultural (entre as duas cidades) a partir da arquitetura. Isso mexeu muito comigo desde menino. Fui muito cedo para a Escola de Belas Artes como ouvinte, na Pontifícia Universidade Católica aqui de Goiânia, e, em seguida, em 1968, comecei a mandar minha obra para as bienais. Naquela época, as universidades é que recebiam as fichas de inscrição. Daí ganhei um prêmio na segunda bienal nacional da Bahia, em 1968. Quando chegamos lá, antes de receber o prêmio, a polícia federal entrou, prendeu praticamente todo mundo que estava ali dentro, e só não fui preso porque falei que não me chamava Siron (o nome na carteira de identidade é Gessiron). Eu não gostava daquele nome, mas foi ele que me salvou.
PELO XINGU
A questão ambiental nasceu com meu pai. Ele era muito amigo de vários povos indígenas, em especial, dos Carajás. E tudo do meu pai era na base de planta. Ele achava que o negócio do remédio [alopático] ia matar. Ele me introduziu nesse universo indígena, com o qual fiquei encantado. Uma das coisas que mais me encantaram em contato com os Carajás, aliás, é que nunca vi um índio gritar com uma criança. Já presenciei cenas lá, quando fiz Xingu [Xingu, a Terra Mágica, série de dez episódios levada ao ar pela extinta Rede Manchete, em 1985, para a qual fez a direção de arte], como a de dois meninos com um machado furando uma mangueira. Os mais velhos abraçaram os meninos e o puxaram com delicadeza. Fiquei impressionado. A criança e o velho são tratados de maneira incrível. Teve um indígena de 92 anos que falou que até os 18 achava que o [homem] branco era um bicho. Fiquei impressionado. Acho que todo mundo devia ficar pelo menos 15 dias no Xingu para entender um pouco o que é uma criança. A criança é o que a gente tem de melhor.
IMPERMANÊNCIA
Meu trabalho foi mudando naturalmente, não tem como você não querer mudar. As viagens que fiz foram muito importantes. Por exemplo, quando ganhei como prêmio uma viagem à Europa, quis fazer também um levantamento de peças antropológicas brasileiras no Museu Nacional de Antropologia e no Museu da América, Espanha, em Madri. Aí, fiquei tão encantado que não fui ver arte moderna. O que mexeu com minha cabeça foi a produção desse período pré-cabralino no Brasil. E lá tive a ideia de criar um grande mapa do Brasil. Quando eu era garoto, tinha uma moeda com um desenho do mapa do Brasil, sempre achei aquela coisa emblemática. Fiquei [com essa ideia na cabeça] de 1977 até 1992, quando consegui fazer um monumento gigantesco [Monumento às Nações Indígenas]. Depois, destruíram 500 colunas com reproduções de objetos indígenas. Teve gente que achava que aquilo era contra o cristianismo, enfim, fizeram uma confusão danada. Mas estou refazendo [a obra], e vou doá-la para a prefeitura de Aparecida de Goiânia. Outro monumento que fiz, e que é um trabalho que desde garoto me fascina, é inspirado nos desenhos rupestres do Planalto Central, de oito, nove mil anos. Fiz um grande monumento, uma instalação permanente em Salvador. Eram 474 peças fundidas em alumínio e roubaram tudo: 17 toneladas de alumínio [o painel reproduzia em alumínio fundido pinturas rupestres e foi um presente do artista à cidade quando ela completou 454 anos]. Agora, querem que eu faça novamente, só que em pedra. Acho que pedra não vão tirar.
SER APRENDIZ
Já tive grilo de pensar que eu não tinha personalidade. De manhã, eu faço uma coisa; de tarde, faço outra. Por isso, digo que sou aprendiz. Na pandemia, fiquei mais compulsivo criando. Criei as pinturas Branco de Medo, que só se revelam para você com um metro e meio de distância, como aqueles retratos que estão apagando e você quase não consegue ver, é um branco sobre branco. Depois, eu comecei a fazer essa instalação, Ressurreição. Tem dia que é muito estranho, aí comecei também a fazer escultura em ferro porque tem hora que bater ferro faz bem. Estou com três exposições esperando [a pandemia acabar]. E essa instalação composta por 365 figuras é uma ressurreição e, ao mesmo tempo, uma celebração à vida. E ela tem uma característica que vim perceber depois: à noite, ela é muito dramática. De dia, outra instalação acontece debaixo [dos manequins], quando as sombras das roupas fazem uma projeção por causa do sol.
DE MANHÃ, EU FAÇO UMA COISA;
DE TARDE, FAÇO OUTRA. POR ISSO, DIGO QUE SOU APRENDIZ
MATÉRIAS-PRIMAS
Quando garoto, antes de ter ido para a escola, eu lia muito as biografias, tinha Tesouro da Juventude [enciclopédia originalmente inglesa, voltada para crianças e jovens], e tinha alguns livros interessantes que falavam de pigmentos. Eu me interessei por isso, porque, ao ler a biografia dos artistas da Renascença, você sabia como era feito cada pigmento de cada artista. Então, por exemplo, eu tenho uma amiga que é uma grande restauradora e ela me contou como você identifica um Caravaggio: ele tinha um azul que era de uma determinada pedra. E eu sempre quis trabalhar com a tradição do ponto de vista da durabilidade, então procuro madeira, mas ela tem que ser boa; o pano tem que ser linho. Sempre fui ligado nessa parte técnica, de fazer a tinta. A série Césio 137 (1987) talvez tenha sido a produção em que mais fundo fui. Eu trabalhava em pintura sobre papel com uma tinta prateada que eu mesmo fazia aqui [no ateliê], com pigmentos alemães de altíssima qualidade.
SOBRE A TELA
Eu estava morando em Londres, fui para fazer uma série de trabalhos e aí o André [Guerreiro Lopes] e o Rodrigo [Campos], juntamente com a Malu Viana, que é dona de uma produtora de vídeos, queriam acompanhar o período em que eu estivesse lá. Eles filmaram tudo aquilo, depois vim para o Brasil e, de vez em quando, a gente se falava. Aí, em 2017, eles me ligaram e disseram que, finalmente, arrumaram uma grana para fazer daquele material um longa-metragem. O documentário tinha aquele caráter mais biográfico, entrevistas com colecionador, museu. Aí, viram o arquivo que eu tinha aqui [no ateliê], e tudo mudou. O nome antes era O Olhar do Camaleão, e quando viram meus vídeos – levaram umas 200 e poucas fitas VHS e umas 30 Super-8 para São Paulo –, mudaram tudo e deram o nome de Siron. Tempo sobre Tela. E todas as pessoas que deram depoimento dançaram, até o Ferreira [Gullar]. Eu estava pintando o retrato dele e tinha a mania de documentar todo mundo que vinha no ateliê. Eles tiveram a paciência e o amor de pegar todas as fitas e criar a narrativa deles. O filme ficou muito interessante.
Assista aos vídeos deste Encontros com Siron Franco no YouTube da Revista E.