Postado em 30/08/2021
Como os adultos ao seu redor têm explicado a crianças e adolescentes quais são as consequências provocadas pela Covid-19? Ao lado de pais, mães ou outros cuidadores, essa grande parcela da população assiste pela televisão ou escuta pelo rádio notícias que parecem incompreensíveis e distantes do seu dia a dia. Pela internet, então, informações e desinformações se multiplicam em sites, redes sociais e outros canais que acessam de seus celulares e computadores. Afinal, como informar crianças e adolescentes neste cenário de excessos e de fake news?
“Essa reflexão sobre educação midiática deveria abordar a infinidade de assuntos que são publicados diariamente nas redes sociais e nos veículos de comunicação (segmentados ou não) e que nos afligem, nos angustiam e afetam nossa saúde mental, a ponto de esse excesso de informações já ter um nome: ‘síndrome da fadiga informativa’”, observa a pesquisadora Cristiane Parente, membro do grupo de estudos Educom.Jor e criadora do extinto suplemento do jornal O Povo (CE) que instituiu o primeiro Conselho Infantil de Leitores.
E quais outros obstáculos podemos destacar? “É notória ainda a falta das vozes das meninas e meninos nas reportagens jornalísticas. Ao tratar de assuntos relativos às crianças, os jornalistas comumente ouvem adultos, seus responsáveis, como se elas não fossem capazes de contar sobre sua rotina e opinar sobre o que ocorre em sua vida e no mundo”, observa a professora e pesquisadora sobre educação midiática Juliana Doretto, autora de Pequeno Leitor de Papel: Um Estudo sobre Jornalismo para Crianças (Alameda, 2013). Neste Em Pauta, Parente e Doretto, que participaram do Sesc Ideias Educação Midiática: Como Informar Crianças e Adolescentes em Tempos de Infodemia, disponível no canal do YouTube do Sesc São Paulo, levantam perguntas e reflexões sobre o tema.
JULIANA DORETTO
Podemos não perceber, mas as crianças estão tendo contato com as notícias o tempo todo. Quando ligamos o rádio em casa ou no carro, elas estão ao nosso lado e escutam o noticiário. Quando estamos
em frente à TV, assistindo ao telejornal, elas ficam conosco na sala. Mesmo se estiverem entretidas com brinquedos ou com o celular, elas estão ouvindo as notícias e também o que conversamos sobre o que está sendo noticiado. Se já fazem uso das redes sociais (mais comum entre os pré-adolescentes), encontram posts noticiosos ao percorrer a “linha do tempo” de seus perfis.
É claro que elas nem sempre compreendem o que consomem, já que essas formas de jornalismo não foram feitas pensando nelas: os temas abordados não são escolhidos a partir de suas trajetórias e contextos de vida, e a linguagem utilizada não leva em conta seus desenvolvimentos cognitivos. Mas, em minhas pesquisas, fica claro que elas acreditam que o jornalismo é importante para o seu cotidiano, pois as ajuda a entender “o que ‘tá’ acontecendo no mundo”, como algumas delas me dizem em entrevistas. Ainda assim, muitas vezes elas chamam o noticiário de “chato”, porque está sempre dizendo “a mesma coisa”, com muita “tragédia” e “morte”.
Temos, no Brasil, alguns veículos que praticam o jornalismo pensando nas crianças como seu público leitor. Destacam-se alguns materiais impressos (e com versões digitais), vendidos sobretudo em escolas – como o Joca e o Jornal da Criança, e as revistas Ciência Hoje das Crianças e Qualé –, além de alguns suplementos de jornais impressos. Estes últimos, aliás, eram a nossa principal tradição, mas foram um dos primeiros cadernos a serem descontinuados após a crise que atingiu os jornais nas primeiras décadas do século 21, pela migração da publicidade para o digital.
Há ainda podcasts como o Radinho BdF e o Revisteen CBN Joca, e o programa Rádio Animada, na rádio MEC. Não temos nenhum telejornal em canal aberto com abrangência nacional desde o fim do Globinho, no início da década de 1980. A TV Cultura, em São Paulo, exibiu o Repórter Rá Teen Bum até 2018.
MUNDO ADULTOCÊNTRICO
Esses veículos são sempre produzidos por equipes reduzidas, formadas, sobretudo, por mulheres, que enfrentam não apenas as dificuldades de sobreviverem no mercado midiático, mas também o preconceito dentro do próprio campo jornalístico. O noticiário produzido para (e com) as crianças é muitas vezes considerado pela chefia e pelos colegas como algo menor, banal e fácil de ser produzido.
Essa compreensão reflete algo maior, que estrutura o modo como as próprias crianças são vistas na nossa sociedade: vivemos num mundo dito “adultocêntrico”, em que os já crescidos (fisicamente) detêm a capacidade de decisão, ocupando, assim, um espaço privilegiado na sociedade, enquanto as crianças estão a eles submetidas. O dicionário também registra essa divisão. Retiro meu Houaiss da estante, edição de 2001, e encontro “infantil” como o que é “próprio de alguém que se comporta como criança; ingênuo, tolo”.
Mesmo algumas ações bem-intencionadas do jornalismo (até mesmo do que se destina a elas), que chamam a atenção para problemas ou melhorias nas condições de vida das crianças, acabam por vezes reiterando esse sistema social ao destacar os ganhos e perdas que meninas e meninos terão “adiante” – ou seja, quando forem adultos. Isso se espelha também no olhar para o jornalismo infantojuvenil como se fosse apenas um apoio pedagógico ao processo escolar (ainda que esse uso também seja importante). Assim, as crianças são consideradas “futuros cidadãos”, e o jornalismo atuaria aqui apenas como suporte para o seu desenvolvimento rumo à idade adulta.
É notória ainda a falta das vozes das meninas e meninos nas reportagens jornalísticas. Ao tratar de assuntos relativos às crianças, os jornalistas comumente ouvem adultos, seus responsáveis, como se elas não fossem capazes de contar sobre sua rotina e opinar sobre o que ocorre em sua vida e no mundo. Os cursos de jornalismo também ignoram o debate sobre os noticiários realizados para as crianças e sobre a importância da escuta delas na construção das matérias.
COMUNICAÇÃO COMO DIREITO
Esse cenário que descrevi até aqui não é apenas preconceituoso com as crianças e prejudicial a elas, como também viola a lei ao afrontar o tratado de direitos humanos mais ratificado até hoje em todo o mundo: a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Organização das Nações Unidas em 1989 e subscrita pelo Brasil no ano seguinte. O documento, ainda que sofra críticas por uma visão eurocêntrica em certos pontos, representou grande conquista para as crianças ao estabelecer que, além de proteção e provisão, elas também têm direito à participação. Vale destacar, infelizmente, que a adesão ao documento não significa seu cumprimento, mas claros avanços já foram sentidos nos últimos anos.
E a comunicação não escapou à Convenção, aparecendo com destaque em dois artigos. E o 13º garante o direito da criança à livre expressão e diz que isso “deve incluir a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo”. O 17º afirma que os países que ratificam o tratado devem “incentivar os meios de comunicação a difundir informações e materiais de interesse social e cultural para a criança” – o que, como pudemos perceber até aqui, é bastante ignorado em nosso mercado midiático de massa, que sofre ainda com a concentração de propriedade e a pouca presença de veículos públicos.
É FUNDAMENTAL COMPREENDER QUE É DIREITO DAS CRIANÇAS
RECEBER INFORMAÇÕES JORNALÍSTICAS DESTINADAS A ELAS,
CONSTRUÍDAS A PARTIR DA ESCUTA DE SUAS VOZES E DOS SEUS MÚLTIPLOS COTIDIANOS
CRIANÇAS EM ISOLAMENTO
No entanto, se o(a) caro(a) leitor(a) estivesse tendo contato com este texto antes da pandemia da Covid-19, poderia ter dúvidas sobre se de fato as crianças se preocupam com as notícias. Mas creio que, após tanto tempo com os meninos e meninas em casa, e com a grande ameaça à nossa vida que essa nova doença representa, fica claro que a separação forçada entre o “mundo adulto” e “o das crianças” não se sustenta.
As crianças, assim como os adultos, têm sentido as angústias, os medos e as tristezas deste período, e faz-se necessário explicar a elas como a pandemia tem tomado conta deste país, tão carente de políticas públicas concretas para o combate ao vírus – e à fome e ao desamparo acarretados. Assim, pude perceber que a imprensa, sobretudo no começo do isolamento social, multiplicou textos cujos títulos buscavam ensinar a “como falar sobre a pandemia com os filhos”.
Não é mais possível ignorar a presença das crianças durante o telejornal. Portanto, é fundamental compreender que é direito das crianças receber informações jornalísticas destinadas a elas, construídas a partir da escuta de suas vozes e dos seus múltiplos cotidianos. É necessário haver pluralidade de veículos, de modo que meninos e meninas que vivem em diferentes contextos socioeconômicos possam ter acesso a esses conteúdos, e que esse material dialogue com seus diversos modos de ser criança. E que isso seja feito sem reduções ou banalizações: as reportagens para as crianças podem falar sobre quaisquer assuntos (racismo, sexualidade, política, economia) desde que as escutemos e procuremos fazer com que o jornalismo que consomem tenha sentido para elas. Esse, aliás, é sempre o melhor jornalismo que podemos fazer, para adultos e crianças.
CRISTIANE PARENTE
Quero começar este texto propondo uma reflexão. O que precisamos saber sobre o mundo para sermos pessoas melhores e atuarmos de forma mais consciente, tendo em vista um lugar mais saudável em seus mais diversos aspectos, seja social, econômico, psicológico, cultural ou ambiental?
E isso tem a ver com uma sólida alfabetização midiática e informacional, que deveria ser disponibilizada a todas as nossas crianças desde muito cedo. Isso contribuiria para a compreensão acerca dos direitos humanos, da comunicação, da cidadania, do respeito à diversidade e da ética; da nossa constituição e dos deveres que temos com o país; do Estatuto da Criança e do Adolescente, que mostra os direitos que as crianças podem e devem cobrar, inclusive os de participação, proteção e de terem uma mídia de qualidade que oferte programação para sua faixa etária.
Essa reflexão sobre educação midiática deveria abordar a infinidade de assuntos que são publicados diariamente nas redes sociais e nos veículos de comunicação (segmentados ou não) e que nos afligem, nos angustiam e afetam nossa saúde mental, a ponto de esse excesso de informações já ter um nome: “síndrome da fadiga informativa”. Ela também deve nos alertar para a necessidade de compreendermos a forma como funcionam as plataformas que usam nossos dados como mercadorias, os algoritmos. Além do sistema de concessão pública das emissoras de rádio e TV; o poder e os limites da publicidade; os bastidores do processo de produção de uma notícia e sua diferença para um texto opinativo; e a importância de uma imprensa livre, democrática e de informações de qualidade em meio à “infodemia” que vivemos.
EXCESSO QUE "INFOXICA" E DESINFORMA
Há pelo menos três exemplos que podemos encontrar na literatura sobre o excesso de informação (“infoxicação”, de acordo com o físico catalão Alfons Cornella) e sobre a ilusão de conhecermos tudo. Eles foram destacados pelo professor da Universidade de São Paulo (USP) Nilton José Machado, na Cátedra de Educação Básica. O primeiro: o escritor Jean-Paul Sartre tem um personagem na novela A Náusea que é o único na obra sem nome. Sartre o chama apenas de “autodidata”, por sua valorização excessiva do conhecimento e sua forma ingênua de acreditar que vai conseguir aprender tudo. Nesse sentido, ele cria uma estratégia que é estudar os livros por ordem alfabética, começando por todos aqueles que possuem títulos iniciados por A, depois por B e assim sucessivamente, até varrer todo o conhecimento humano. O que ele nem imagina é que antes de completar o ciclo da letra A, ele já terá morrido.
O segundo exemplo que nos mostra que não é necessário, nem possível, saber tudo, segundo Machado, vem do pensamento do filósofo e cardeal alemão Nicolau de Cusa, quando no século 15 escreve A Douta Ignorância e traz a metáfora de que tudo que ele sabe cabe nas próprias mãos. As mãos seriam a fronteira entre o que ele sabe e o que não sabe, que estaria fora delas. A ideia da metáfora é que, quanto menos eu sei, menos eu sei que não sei, porque, quanto menos eu sei, menor é a fronteira com o que eu não sei.
Por outro lado, quanto mais eu estudo e aprendo, mais aumenta a fronteira com aquilo que não sei; por isso, fico mais ciente daquilo que não sei. A Douta Ignorância, título da obra, é justamente esse saber de saber-se consciente do tanto que não sabemos. É a humildade, o reconhecimento do tanto que não sabemos e da impossibilidade de conhecermos tudo. Quanto mais estudo, mais alargo meus conhecimentos e, por outro lado, enxergo o que não sei.
Por fim, o terceiro exemplo. No conto Funes, o Memorioso, o escritor argentino Jorge Luis Borges narra a história de Funes, um rapaz que após cair e bater a cabeça ganha a estranha capacidade de guardar tudo o que vê, lê e estuda, mesmo sem querer. Tudo passa a ficar guardado em sua memória nos mínimos detalhes, sem que ele tenha feito o menor esforço. Ele lê um livro e guarda tudo, olha para uma árvore e depois lembra de cada um de seus detalhes, assim como de seus sonhos ou de uma nuvem no céu. E com essa overdose de memória, ele incapaz de pensar, porque, como o professor Nilton José Machado nos lembra, pensar é fazer escolhas, e para Funes tudo é importante. Incapaz de pensar, Funes fica incapaz de agir. E no livro ele morre entupido, talvez por tanto guardar informações.
UMA SÓLIDA ALFABETIZAÇÃO MIDIÁTICA E INFORMACIONAL DEVERIA
SER DISPONIBILIZADA A TODAS AS NOSSAS CRIANÇAS DESDE MUITO CEDO.
ISSO CONTRIBUIRIA PARA A COMPREENSÃO ACERCA DOS DIREITOS HUMANOS,
DA COMUNICAÇÃO, DA CIDADANIA, DO RESPEITO À DIVERSIDADE E DA ÉTICA
CONHECER É SIGNIFICAR
Isso nos lembra que, apesar da necessidade de conhecimento, ele não significa um acúmulo de dados, mas informações selecionadas de forma a fazer sentido em nossas vidas. O que precisamos, então, é de um mapa. Uma bússola para navegar nesse mar de dados e de informações produzidas diariamente e que nos chegam em uma velocidade que não nos permite processá-las de forma reflexiva.
Precisamos entender a tecnologia digital não apenas como uma ferramenta, mas como uma cultura, uma linguagem. Precisamos nos instrumentalizar eticamente, inclusive, para buscar o conhecimento, compreendendo que nem tudo é necessário e que a liberdade que temos de buscar e produzir informação nos traz ao mesmo tempo a responsabilidade da autoria, do cuidado, do respeito ao que é diverso e da responsabilidade com o compartilhamento de informações, porque quem compartilha endossa.
Ler e produzir a palavra, a imagem, o texto sobre o mundo é aprender a fazer escolhas. Caso contrário, padeceremos como Funes. E sem selecionar, sem esquecer, sem pensar, sem agir, ficaremos “infoxicados”!
Aprender a argumentar, a lidar com as emoções, a separar opiniões de fatos é também estar preparado para atuar de forma mais consciente no mundo, inclusive em uma eleição; para não compartilhar fake news, evitando se contaminar por polarizações ou confundindo a liberdade de expressão e o discurso de ódio; evitando cair nas armadilhas do mundo virtual e cuidando dos nossos rastros em uma vida cada vez menos cindida em on/off-line e cada vez mais “on-life”.
Esse exercício de curadoria das informações, da responsabilidade de uma autoria que quer falar de si e não que falem de/por si, da compreensão do poder e da beleza da palavra e do respeito à diversidade, pode e deve ser trabalhado desde a infância, a partir da educomunicação e de experiências de alfabetização midiática e informacional. Para isso, é preciso mais experiências de programação infantil e veículos voltados a esse público e, principalmente, feitos COM ele, como os projetos da Fundação Casa Grande, de Nova Olinda (CE), e o jornal comunitário Voz da Comunidade, do Complexo do Alemão (RJ), que começou a partir da ideia de um menino de 12 anos; projetos como os pioneiros Joca e a revista Ciência Hoje das Crianças. Mas, acima de tudo, é preciso que haja nas emissoras de rádio e tevês abertas do país programas que valorizem a inteligência, a ciência e a diversidade da cultura brasileira e das infâncias e adolescências brasileiras, porque esse é um direito de crianças e adolescentes, um direito da sociedade brasileira e um dever dos meios de comunicação.