Postado em 29/08/2021
LEGADO DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922
É FOCO DE DEBATE NO CENTENÁRIO DO EVENTO
A ruptura com o passado tem sido discutida como a marca da Semana de Arte Moderna, realizada na capital paulista em 1922. Pautada por um espírito em oposição à arte de teor conservador, que se dizia predominante no país, e em busca de um lugar num mundo em processo de renovação, reuniu participantes que tinham a intenção de abalar o status quo. Naquele ano, entre os dias 13 e 17 de fevereiro, escritores, artistas plásticos, pensadores, músicos e outros protagonistas da cena cultural da época procuraram chocar os mais provincianos ao levar ao Theatro Municipal de São Paulo propostas e formas de expressão com o intuito de debater a identidade brasileira. Prestes a completar 100 anos, a Semana de 22 ainda ressoa na sociedade e inspira reflexões.
“Se entendermos a Semana como um espelho, no qual o Brasil se olhou ao longo do século 20, e se olha até hoje, para pensar nossas possibilidades, nosso lugar no mundo moderno, nossas potencialidades, nossa capacidade antropófaga de nos alimentar do que há de bom e dispensar o que não há de bom na cultura mundial, se pensarmos também na necessidade de um país de herança colonial, na constituição de si mesmo dentro do mundo, a Semana de Arte Moderna se tornou uma poderosa aliada”, constata o historiador, crítico de arte e professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Alambert, um dos curadores do Seminário Diversos 22: Levantes Modernistas, que integra o projeto DIVERSOS 22 – projetos memórias conexões, realizado pelo Sesc São Paulo neste mês (leia boxe 1922 no plural).
Entre os protagonistas dessa histórica manifestação cultural, debatendo o rompimento com as tradições e a experimentação nos campos da literatura, das artes visuais e da música, estão Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia e Heitor Villa-Lobos, que estiveram presentes na Semana de Arte Moderna em São Paulo. Há ainda aqueles que não estiveram no rebuliço artístico que se fez no Theatro Municipal, caso de Tarsila do Amaral, que à época estudava em Paris, mas que tiveram grande importância para o movimento modernista.
Mesmo tendo “escandalizado” a sociedade por seu teor de vanguarda, o evento foi e ainda é alvo de críticas pela falta de reconhecimento de uma corrente modernista em outros estados brasileiros. Ou seja, por representar um certo “paulistocentrismo”, assim denominado por pesquisadores. “A exaltação da paulistanidade, muitas vezes em constrangedor ufanismo, sempre esteve presente no discurso e na propaganda dos rapazes modernistas. Num dos artigos da série para o Jornal do Commercio, por exemplo, Oswald insistia na tecla da vocação transformadora da cidade: (...) a capital do café, ‘cosmopolita e vibrante’, prestava-se em sua opinião, ‘como poucas cidades da América’, a acompanhar a revolução que se iniciava nas artes, nas letras e na música”, escreveu o jornalista Marcos Augusto Gonçalves no livro 1922 – A Semana que Não Terminou (Companhia das Letras, 2012).
Autor de obras que colocam a verve modernista carioca sob os holofotes, o escritor e jornalista Ruy Castro é um dos que contestam a ausência “de elenco e de obras” do Rio de Janeiro associadas ao modernismo. Ele defende: “Não há dúvida de que ninguém tinha feito música popular como o Pixinguinha antes do Pixinguinha (músico e maestro, 1897-1973). Ninguém tinha pintado como o Ismael Nery antes do Ismael Nery, nem tinha feito poesia como o Manuel Bandeira antes do Manuel Bandeira. E tudo isso não começou em 1922, mas em 1916, 1918, 1919, 1920, 1921. Ou seja, aquele ‘atraso’ que diziam haver em 1922 não é verdade. Porque já havia toda essa corrente cultural avançando em direção ao ano de 1922”, disse Castro em Depoimento publicado na Revista E nº 295, de maio de 2021.
Apesar dessa e de outras ressalvas, aqueles dias de 1922 são emblemáticos na história do Brasil. “A Semana de 22 foi vista como o marco inaugural do movimento modernista. O modernismo é a principal corrente de ideias do país no século 20. Por isso, é natural que se revisite a Semana e se reavalie o significado do movimento modernista”, destaca o filósofo Eduardo Jardim, autor de Eu Sou Trezentos (Edições de Janeiro, 2015), uma biografia de Mário de Andrade, e do estudo A Brasilidade Modernista: Sua Dimensão Filosófica (edição revista publicada em 2016, numa coedição PUC-Rio/Ponteio).
Jardim também participará de uma das mesas do Seminário Diversos 22: Levantes Modernistas. “Vou considerar o movimento modernista nos anos 1920, que comporta dois momentos diferentes de se conceber a modernização da produção cultural no país. Também vou abordar a virada nacionalista do movimento e examinar duas de suas vertentes”, adianta o pesquisador.
REVISTA DE ANTROPOFAGIA
A Revista de Antropofagia foi a publicação mais importante do modernismo, responsável por reunir ideários do movimento. Foi nela que o modernista Oswald de Andrade (1890-1954) publicou, em 1928, o Manifesto Antropófago. Com oito páginas, a revista teve dez edições, entre maio de 1928 e fevereiro de 1929. Após uma lacuna de 30 dias, retornou em março como uma página semanal do Diário de São Paulo, com o título Antropofagia – 2ª Dentição, que durou 15 edições, de 17 de março a 1º de agosto de 1929, segundo lembra o escritor Jason Tércio, autor de oito livros, entre eles a biografia de Mário de Andrade Em Busca da Alma Brasileira (Estação Brasil, 2019). O escritor e editor Pedro Spigolon (revista Intempestiva) contextualiza a importância dessa e de outras revistas para a criação literária do país. “É nelas que, historicamente, os textos mais radicais são publicados pela primeira vez. É nelas que os principais embates e debates se formam e ganham corpo, seja iluminando inovações e criações literárias, seja confrontando e repensando a tradição”, destacou em artigo publicado na seção Em Pauta da Revista E nº 296, de junho de 2021.
MÁRIO DE ANDRADE (1893-1945)
"Mário criou, de fato, um projeto de modernização cultural para o Brasil, que incluía um mapeamento das culturas tradicionais originárias. Ele fez disso uma prática política, criando o Departamento de Cultura em São Paulo e, depois, participando, no Rio de Janeiro, do Ministério da Educação: repartições do início das estruturas modernas da Cultura, próprias de um estado democrático. Ele também foi o primeiro grande crítico da Semana em 1942, criticando a si mesmo e o movimento." - FRANCISCO ALAMBERT, historiador e crítico de arte
Leia artigo sobre a atuação de Mário de Andrade como gestor de políticas públicas culturais na seção Em Pauta da Revista E nº 294, de abril de 2021.
DE LÁ PRA CÁ
Mas e hoje? O que a Semana de 22 tem a nos dizer? Fora do Brasil, os modernistas são redescobertos e, finalmente, reconhecidos. “Seja em exposições sobre Tarsila do Amaral e Lygia Clark no MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova York), seja quando Mário Pedrosa (crítico de arte) ganha uma exposição no Museu Reina Sofia (Madri, Espanha), ou quando os tropicalistas (que beberam do legado modernista, principalmente oswaldiano) voltam à moda”, exemplifica o historiador e crítico de arte Francisco Alambert.
Quanto ao Brasil, são muitas as reflexões sobre os ecos daquela semana no presente. “Podemos chegar à conclusão, inclusive, que ela não tem nada a dizer. Isso se, de repente, o Brasil perdeu esse lugar utópico – e a utopia é uma questão muito importante para o modernismo – de se tornar essa nação moderna, nacional e internacional ao mesmo tempo”, provoca Alambert.
Ou justamente quando a Semana completará 100 anos, acrescenta o historiador, “e as suas propostas vitais de cultura, de nação, de integração parecem ter sucumbido – algo que os modernistas tinham à vista sempre, mas que não imaginavam que pudesse acontecer –, a Semana de Arte Moderna de 1922 talvez tenha muito a falar”.
SEMINÁRIO, CURSOS, EXPOSIÇÕES E OUTRAS ATIVIDADES
JOGAM LUZ SOBRE AS MÚLTIPLAS FACETAS DO EVENTO-MARCO DO MODERNISMO
"A efeméride de 100 anos da Semana – e, na sequência, de 200 anos da Independência do Brasil – constitui, portanto, oportunidade valiosa para realizarmos uma reflexão profunda sobre o que somos, sobre como o passado se relaciona com o presente e nosso papel enquanto agentes culturais que colaboram para futuros possíveis (e utópicos)”, contextualiza o Diretor Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda. Tendo em vista esse cenário, o Sesc coloca em ação o projeto DIVERSOS 22, que tem início em setembro e se estende até o próximo ano, composto por exposições, apresentações artísticas, debates, publicações e reedições de obras. “Este conjunto de iniciativas se baseia na convicção de que a amplitude de experiências estéticas e a fruição reflexiva devem estar a serviço da democracia, da liberdade e das condições de autonomia”, complementa.
Neste mês, o Seminário Diversos 22: Levantes Modernistas, sob curadoria do historiador Francisco Alambert e do Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, apoia-se nos conceitos de modernidade (a época das mudanças), modernismo (a busca de uma linguagem transformadora e libertária para esse mundo novo) e modernização (as transformações do capitalismo) para pensar no legado da Semana de Arte Moderna 100 anos depois.
“O nosso seminário quer pensar, sobretudo, 2022 [um ano importante também para a política brasileira, com eleições presidenciais]. Para isso, vamos recorrer às construções do passado para chegar aos dias de hoje: o que significa o centenário da Semana para o Brasil nas condições atuais?”, questiona Alambert.
Também começa em setembro o ManiFesta Digital 22 na Encruzilhada, conjunto de ações digitais que reunirá artistas, criadores, realizadores e produtores. Dessa programação faz parte a criação de conteúdos para as redes sociais, uma espécie de manifesto que vai abarcar olhares e reflexões plurais sobre os significados da Semana de 22 e do bicentenário da Independência. Confira a seguir alguns destaques da programação:
DIVERSOS 22: PROJETOS MEMÓRIAS CONEXÕES
SETEMBRO
Seminário Diversos 22: Levantes Modernistas
Além da abertura, prólogo e conferência de abertura, o Seminário Diversos 22: Levantes Modernistas é composto de quatro mesas que visam discutir criticamente a Semana de 22, sob curadoria do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e do historiador e professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Alambert. A proposta é dividir o século 20 em décadas e observar como a narrativa sobre a Semana foi sendo construída a partir das consciências possíveis de cada época, para buscar compreender o que a Semana de 22 e o modernismo têm a nos dizer sobre 2022. No dia 28/9, às 11h, o prólogo fica por conta da filósofa e escritora Marilena Chauí, e a abertura tem a participação do Diretor Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda. Em seguida, os pesquisadores Christian Dunn (EUA/Berlim), Andrea Giunta (Argentina/Paris) e o historiador Francisco Alambert participam da conferência de abertura Modernismo e Utopia. Entre os palestrantes confirmados para as quatro mesas estão: Graziela Naclério Forte, Eduardo Jardim, Celso Favaretto, Ligia Ferreira, Francisco Foot Hardman, Lilia Moritz Schwarcz e Sergio Vaz. (As mesas serão realizadas nos dias 28 e 29/9 em dois horários: das 16h às 17h30, e das 17h45 às 19h. O seminário será transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo).
OUTUBRO / NOVEMBRO
Curso Música e Modernismo no Brasil e em Portugal: Diálogos Possíveis entre Mário de Andrade e Fernando Lopes-Graça
Neste curso ministrado por Flávia Camargo Toni, doutora em Artes e professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e, por Guilhermina Lopes, doutora em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os participantes terão contato com um estudo dos contextos e das relações entre os meios musical e literário brasileiro e português na primeira metade do século 20, a partir de aspectos da trajetória artística, intelectual e política de Mário de Andrade (1893-1945) e Fernando
Lopes-Graça (1906-1994). Ao todo serão quatro aulas pagas, entre os meses de outubro e novembro de 2021 (26/10, 9/11, 16/11 e 23/11).
NOVEMBRO / DEZEMBRO
Curso O Século da Semana
Ministrado pelo historiador e professor Francisco Alambert, o curso pago pretende dar continuidade ao olhar crítico sobre a Semana de 1922, tendo como prisma o século 20. Cada aula se apoia em um dos seguintes temas: Ser moderno em São Paulo no século 20; A Semana e aqueles três dias; Da antropofagia ao concreto: a Semana segundo Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Mário Pedrosa; e A Semana no século da Semana. (Dias 10, 17, 24/11 e 1º de dezembro, das 15h às 17h).